Do fundão do mar
Em recente madrugada álgida e petrificada de cristal, como
é da época e de lei, derivando eu não acompanhado pela avenida deserta das seis
da manhã, aconteceu um fragmento de folha de jornal vir, à maneira de famélico
cão perdido, aninhar-se-me aos pés. Toda a vida tenho tropeçado em lixo (do
humano inclusive), pelo que não liguei e segui em frente, rumo ao Café onde
diariamente procedo ao desjejum de cafeína, nicotina & versos.
– Olhe o senhor
Daniel que traz aí qualquer coisa agarrada às canelas – avisou-me, maternal como sempre, a
D.ª Lena, como sempre reiterada pelo olhar da senhora Ermelinda, que quando
olha para os homens nem é para as canelas que olha.
Toda a vida tenho olhado para baixo (mas não quando é
gente que olho), pelo que accionei a grua do pescoço no ângulo descendente: era
o pedaço de jornal. Rezava assim:
“(…) revelaram
tratar-se de uma pessoa com ‘superficialidade afectiva, ausência de remorsos,
manipuladora e com elevado grau de reincidência’”. Mais nada.
Reli o trecho não sei quantas enésimas vezes: “revelaram tratar-se de uma pessoa”
enquanto tilintava a colherinha no rebordo da chávena; “com superficialidade afectiva” enquanto abafava na faringe o
delic(i)ado arrotinho a açúcar torrado; “ausência
de remorsos” enquanto buscava e rebuscava o nómada do isqueiro em todos os
bolsos menos no certo; “manipuladora”
enquanto fumegava a melhor passa do Camel
de enrolar, por ser a primeira do dia; “e
com elevado grau de reincidência” como este mesm’O Ribatejo, periódico que, à imagem dos melhores casamentos de
longo curso e média duração, ainda se dá uma (vez) por semana.
Por padecer da incontornável e irredimível mania de me ver
como espécie de escritor, fiquei perplexo de propósito ante tal papelucho.
Qui-lo ominoso. Qui-lo código de qualquer coisa mística, como a besta do Dan
Brown, o inenarrável Paulo Coelho e essa fotocópia sem toner de ambos chamada Zé Rodrigues dos Santos. Fiz até de conta
que às canelas se me tinha vindo prostrar o pedacículo que faltava aos Manuscritos do Mar Morto. Ou que era,
mais grave e mais especiosamente ainda, a única genuína evidência documental da
entrada “Miguel Sousa Tavares” no Dicionário da Não-Literatura Portuguesa dos
Tristes Editoriais Dias da Contemporaneidade. Ou, ainda, que se tratava de
alguém a dizer mal de alguém só para ter alguém de quem dizer mal a ponto de
ser também considerado alguém, coisa que sempre me repugnou, como é disso
cavalar prova cabal esta crónica mesma. Decidi indagar.
Paguei a bica a prestações, esmaguei a segunda metade do
cigarro e, sempre de papeleta nas unhas roídas por causa dos nervos, rumei ao
quiosque jornaleiro do meu distinto e anónimo Amigo, que se chama Gervásio e
não se distingue. Herdou do pai a banca e, como o pai, lê todos os dias, à
frente de toda a gente, aquela porra toda, menos as revistas com gajas de mamas
expostas ao sol e à chuva porque a Sé é ali mesmo ao lado da traquitana dele –
e já se sabe que isto de sexo & religião é como álcool & condução.
(Dizem eles, como abaixo se não verá.) Mas adiante. Eu assim para ele:
– Ó Gervásio, de que
jornal, de que data e sobre quem há-de ser este bocado de prosa?
E ele assim p’ra mim:
– Há-de ser, não: já
foi. Se está escrito, já foi. Só há-de ser p’ra sempre se estiver bem escrito e
for bem lido. Deixa cá ler.
Eu deixei. Ele leu. Então o Gervásio, que é uma maravilha
de óculos como ele há poucas, que devia mas era ser director da Biblioteca
Nacional como o foi aquele Carlos Reis professor que nos lixou a todos com a
bênção do abort’ortográfico, o Gervásio, dizia eu, disse-m’assim:
– Diário de
Notícias, 3.ª feira, 3 de Dezembro de 2013, pág.ª 4, Ano 149, n.º 52 829, 1,10
€.
E então eu, aflito de propósito e numa ânsia de
investigadorzeco à maneira do Jaime Coiso do Montalbánzito de cá, vulgo
Chico-Zé Viegas, eu então assim:
– ‘tá bem, pá, mas
isso é sobre quem?
E ele, esvurmando-me as ganas que eu tinha de que fosse o
Passos, o Portas, o Cavaco, o Sonasol ou o SuperPop, sentenciou:
– Pá, tem pouco
interesse, é o costume, um padre e crianças masculinas tudo-ao-molho-e-fé-em-Deus,
é só a avaliação psiquiátrico-pericial daquele que era vice-reitor do Seminário
do Fundão e abusou de meninos.
Fiz finca-pé cá na minha:
– ‘tá bem, ó
Gervásio, ‘tá muito bem, mas o gajo, por viol’ipendiar crianças, apanha dez
anos. Já os outros (o SuperPop e o Sonasol) de que te falei, os
superficialmente afectivos, os sem pinga de remorso, os manipuladores e
altamente reincidentes, nem um ano apanham por abusarem de dez milhões.
E não apanham, como eu do chão apanhei um pedaço de jornal
que, dizendo pouco afinal, afinal tudo diz – tanto do “fundão” como do
mar-morto em que este País deixou que o tornassem.
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