Acabar com o parque-de-merendas
Estar
pobre e ser miserável são dois mundos antagónicos mas coevos no comum mundo
tristonho nosso. O pobre – acha-se sempre provisório. O miserável – sabe-se
para sempre definitivo. É por isso que a pobreza usa certos ouros só dela. E é
por isso que a riqueza excessiva é sempre miserável. Aliás: como é que,
fundamentada na multitudinária miséria alheia, uma fortuna colossal poderia
alguma vez deixar de ser mais miserável ainda do que o húmus humano em que
farpeia raízes? Não poderia. Nem pode. Nem jamais há-de poder. É ver o caso de
Angola. É ver o nosso caso.
Qualquer
nababo da Banca me parece sempre a lustral versão pós-sauna do chulo navalhista
(no tempo do Eça, um faia) de
cachucho no mindinho escarafunchando com a unhaca respectiva a cera do
orelhame. Qualquer sanguessuga vitalícia do Estado me obriga a ver em sua
figura a mesma do tarado perpétuo e impune que, à mesa do Café como na cadeira
da sala-de-espera do posto médico, mirona lúbrica e sorrelfamente o seio da mãe
que amamenta seu petiz em candura.
Disse-Vos
ainda, acima, que, ainda assim, a pobreza
usa certos ouros só dela. Disse-Vo-lo bem. Nenhuma nota de cem no bolso
vale, como ali em cima (como agora mesmo) no céu de um azul-ferrete que o Sol
estende em ampla colcha de seda, a castelar nuvem toda neve, de um branco que
evoca a nata bem batida. Nenhum maço das de vinte enroladas em cartão à
feirante vale para mim o que vale a parlapiação dos homens quando no barbeiro,
ocasião em que essa espécie de mulherio masculino, mui geriátrica e
pausadamente, estabelece cartilhas morais à
la Jornal de Notícias. Nem nenhuma ceia no Tavares Rico puxa mais salivação pré-palatal do que as tábuas de
parque-de-merendas, sobre que os pobres estendem o afinal linho, a cambraia afinal,
da toalha de algodão aos quadrados grossos encarnados e brancos para que
rescendam a divino a capitosa sopa-da-pedra que fumega, o bacalhau enroupado de
cebola e ungido de azeite que crepita, o honesto pudim-de-pão que confirma a
pançada saloia e a taçada simples de nêsperas frescas que a água da fonte quase
vitrificou.
Temo
todavia que a Troik’ASAE venha ainda a proibir, ó mein führer!, a garfada da mesma vasilha de pimento assado às
tiras. Isto numa primeira fase. Na segunda, que se proíba até a reunião pura e
simples de mais três pobres, assim exterminando para sempre a lamentação
fadista e o jogo-da-sueca. O dominó há-de porém resistir, quero-o bem crer.
Era
oxioma litúrgico-salazarista que “quem dá
aos pobres, empresta a Deus”. Sabemos hoje que só o contraponto a esta (i)moralidadezinha
de sacristia espuriamente caritária é que é verdadeiro: quem rouba aos pobres,
é sócio do Diabo.
Ou
então é como, num instantinho, irmos ali a Angola sem precisarmos de sair
daqui.
*
**
Uma maneira de dizer
Julgo
de razoável precisão certa memória minha, eu teria o quê?, os meus cinco anos.
Foi no Largo da Portagem, Coimbra, terra inicial minha. O céu desse dia era
(como) este de hoje sob que Vos escrevo: um cartão-de-caixa-de-sapatos, uma
folha-de-Flandres aluminiosa, glauca, catarata-de-olho. Não sei já se Mãe ou
Pai me acompanhavam então, como ainda hoje, defuntos ambos embora, o fazem.
Olhei esse céu de Coimbra, mirei esse rio que dá fados como dá quelhas
arbustivas – e pensei assim: E se nada
existisse?
Nada.
Nem céu, nem rio. Nem cidade, nem ser de Pai ou Mãe. Nem pobreza, nem
bicicletas. Nem violência doméstica, nem abandono de animais (ou de filhos).
Nem polícia, nem recifes. E nem sequer Deus a precisar tanto do Diabo. E se nada, o Grande Nada?
Curto
filósofo de um metro, a auto-pergunta inquietou-me o resto da vida. Até hoje.
Hoje, sento-me neste café a fazer duas colunas de prosa para um jornal decente
feito por gente decente para um leitorado decente. Sou o gajo do blusão verde,
duas mesas atrás dessa gente toda. Folheio as conversas alheias em digitação: é
como se paginasse o papel oral dos meus Portugueses. Digo: a gorda de blusa
roxa e unhas lacradas a carmim que comenta a Casa dos Segredos; a de cabeleira amarelo-açafrão cujas mamas
exsudam o soro do leite amamentador à boca do pequenito de dois meses; o
capataz de ar sueco que aloira os cilícios dando ordens; e a sombra da minha
mão direita fazendo-se tinta num papel a que nem sempre sei responder. Como
aliás não soube, dessa talvez-manhã de talvez-1969, responder ao Big-Brother:
– E se nada fosse, existisse ou houvesse?
Domingo
passado, 20 do corrente, fui ver-ouvir um concerto-encontro de bandas
filarmónicas. De uma, a minha Primeira-Filha era a linha-da-frente. As respostas
acabam sempre vindo, percebo-o já bem enquanto, por encanto, escrevo:
– Tudo
há no que é.
Tranquilo
finalmente, não tenho cinco anos já.
Tenho
menos.
Um
dia morro, um dia nasço – baralha & torna a dar. E o rio sob o céu: página
a página.
Até
hoje.
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