02/11/2013

Duas crónicas para O RIBATEJO - n.ºs 331 e 330 da série ROSÁRIO BREVE - de 31 e 24 de Outubro de 2013, respectivamente

Acabar com o parque-de-merendas

Estar pobre e ser miserável são dois mundos antagónicos mas coevos no comum mundo tristonho nosso. O pobre – acha-se sempre provisório. O miserável – sabe-se para sempre definitivo. É por isso que a pobreza usa certos ouros só dela. E é por isso que a riqueza excessiva é sempre miserável. Aliás: como é que, fundamentada na multitudinária miséria alheia, uma fortuna colossal poderia alguma vez deixar de ser mais miserável ainda do que o húmus humano em que farpeia raízes? Não poderia. Nem pode. Nem jamais há-de poder. É ver o caso de Angola. É ver o nosso caso.
Qualquer nababo da Banca me parece sempre a lustral versão pós-sauna do chulo navalhista (no tempo do Eça, um faia) de cachucho no mindinho escarafunchando com a unhaca respectiva a cera do orelhame. Qualquer sanguessuga vitalícia do Estado me obriga a ver em sua figura a mesma do tarado perpétuo e impune que, à mesa do Café como na cadeira da sala-de-espera do posto médico, mirona lúbrica e sorrelfamente o seio da mãe que amamenta seu petiz em candura.
Disse-Vos ainda, acima, que, ainda assim, a pobreza usa certos ouros só dela. Disse-Vo-lo bem. Nenhuma nota de cem no bolso vale, como ali em cima (como agora mesmo) no céu de um azul-ferrete que o Sol estende em ampla colcha de seda, a castelar nuvem toda neve, de um branco que evoca a nata bem batida. Nenhum maço das de vinte enroladas em cartão à feirante vale para mim o que vale a parlapiação dos homens quando no barbeiro, ocasião em que essa espécie de mulherio masculino, mui geriátrica e pausadamente, estabelece cartilhas morais à la Jornal de Notícias. Nem nenhuma ceia no Tavares Rico puxa mais salivação pré-palatal do que as tábuas de parque-de-merendas, sobre que os pobres estendem o afinal linho, a cambraia afinal, da toalha de algodão aos quadrados grossos encarnados e brancos para que rescendam a divino a capitosa sopa-da-pedra que fumega, o bacalhau enroupado de cebola e ungido de azeite que crepita, o honesto pudim-de-pão que confirma a pançada saloia e a taçada simples de nêsperas frescas que a água da fonte quase vitrificou.
Temo todavia que a Troik’ASAE venha ainda a proibir, ó mein führer!, a garfada da mesma vasilha de pimento assado às tiras. Isto numa primeira fase. Na segunda, que se proíba até a reunião pura e simples de mais três pobres, assim exterminando para sempre a lamentação fadista e o jogo-da-sueca. O dominó há-de porém resistir, quero-o bem crer.
Era oxioma litúrgico-salazarista que “quem dá aos pobres, empresta a Deus”. Sabemos hoje que só o contraponto a esta (i)moralidadezinha de sacristia espuriamente caritária é que é verdadeiro: quem rouba aos pobres, é sócio do Diabo.
Ou então é como, num instantinho, irmos ali a Angola sem precisarmos de sair daqui.

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Uma maneira de dizer

Julgo de razoável precisão certa memória minha, eu teria o quê?, os meus cinco anos. Foi no Largo da Portagem, Coimbra, terra inicial minha. O céu desse dia era (como) este de hoje sob que Vos escrevo: um cartão-de-caixa-de-sapatos, uma folha-de-Flandres aluminiosa, glauca, catarata-de-olho. Não sei já se Mãe ou Pai me acompanhavam então, como ainda hoje, defuntos ambos embora, o fazem. Olhei esse céu de Coimbra, mirei esse rio que dá fados como dá quelhas arbustivas – e pensei assim: E se nada existisse?
Nada. Nem céu, nem rio. Nem cidade, nem ser de Pai ou Mãe. Nem pobreza, nem bicicletas. Nem violência doméstica, nem abandono de animais (ou de filhos). Nem polícia, nem recifes. E nem sequer Deus a precisar tanto do Diabo. E se nada, o Grande Nada?
Curto filósofo de um metro, a auto-pergunta inquietou-me o resto da vida. Até hoje. Hoje, sento-me neste café a fazer duas colunas de prosa para um jornal decente feito por gente decente para um leitorado decente. Sou o gajo do blusão verde, duas mesas atrás dessa gente toda. Folheio as conversas alheias em digitação: é como se paginasse o papel oral dos meus Portugueses. Digo: a gorda de blusa roxa e unhas lacradas a carmim que comenta a Casa dos Segredos; a de cabeleira amarelo-açafrão cujas mamas exsudam o soro do leite amamentador à boca do pequenito de dois meses; o capataz de ar sueco que aloira os cilícios dando ordens; e a sombra da minha mão direita fazendo-se tinta num papel a que nem sempre sei responder. Como aliás não soube, dessa talvez-manhã de talvez-1969, responder ao Big-Brother:
E se nada fosse, existisse ou houvesse?
Domingo passado, 20 do corrente, fui ver-ouvir um concerto-encontro de bandas filarmónicas. De uma, a minha Primeira-Filha era a linha-da-frente. As respostas acabam sempre vindo, percebo-o já bem enquanto, por encanto, escrevo:
– Tudo há no que é.
Tranquilo finalmente, não tenho cinco anos já.
Tenho menos.
Um dia morro, um dia nasço – baralha & torna a dar. E o rio sob o céu: página a página.
Até hoje.


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Canzoada Assaltante