Mea non vestra culpa
Já uma vez aqui mesmo Vo-lo disse, pelo que é mesmo aqui
que Vo-lo reitero: há três décadas e meia que PS e PSD, com o ocasional
penduricalho do CDS-PP, alternam à boca do tacho da desgovernação da Pátria –
portanto a culpa é minha.
É minha – mas não é dos circunstantes com quem compartilho
o usufruto cafeíno do café-galeria onde todos os dias, a partir das seis da
manhã, matino os ossos, o lápis e o meu olhar de papel. Estes homens e estas
mulheres são todas e todos de uma dignidade que não merece, nem de perto nem ao
longe, ser amesquinhada como anda a sê-lo com mais agravo do que apelo.
Não duvideis: estas pessoas são como Vós e como eu
pretendo ser, a compostura delas é a Vossa mesma, que reflectir pretendo.
Permiti-me, pois, que Vo-las descreva com o, sumário embora, apuro possível:
– o Quarteto de
Mulheres-da-Limpeza: começaram, crianças ainda, a contribuir para pão &
sabão em casa; pouca escola lhes deram; batidas ora pelos maridos como pelos
pais outrora; por luxo único, esta chávena quente e parlamentar de cada
madrugada; sei quando recebem o pouquíssimo que lhes pagam: é quando se
permitem a extravagância mensal do pastel-de-nata; acho-as bonitas a todas, uma
por uma; e considero-as não menos do que princesas reais. Ou canoas respiratórias
ancoradas na precária angra do pão-de-cada-dia.
– o
Assentador-de-Pavimentos: é rapaz que não vai para criança, por isso mesmo
que já cinco décadas e meia de nascido o coroam; gosto das mãos dele:
parecem-me estrelas-do-mar capazes de tornar coral a pedra-pomes da
subsistência; já o espinhaço batido se lhe adunca em fadiga óssea, é certo –
mas certo é por igual não ser ele homem para desistir de merecer o que come,
amailos filhos e a mulher, amanhã.
– a
Estagiária-de-Farmácia: era para ter sido médica, pelos sonhos de prestígio
social que por ela e em vez dela tinham os pais e os avós, mas uma certa
desvocação escolar para as Ciências interditou-lhe a formação clínica, pelo que
se vinga em xaropes e supositórios do que nem Esculápio nem Hipócrates quiseram
dela; é delicada como uma gardénia revestida a seda; namora um barbudo que mete
música afro-brasileira numa espelunca de alterne aqui perto; enternece-me
sempre muito o modo como, cedinho, esparge derredor si os bons-dias: como se
francamente no-los desejara; mas, à boca-pequena, já se comenta que a
directora-técnica da farmácia lhe lancetou que lugar efectivo, no fim do
estágio, nem pensar.
Mais exemplos titulares vos escreve(da)ria, mas para tal
são poucas as colunas que o Jornal me dá. Valham-Vos os supra-alinhados por
paradigma, ainda assim.
O Tempo é o Rio que a todos nos usa por margens. Saibamos
ao menos, como Ele, viver em moção, prescindindo ou desistindo jamais da
fundamental dignidade que é a de não morrer sem ter vivido.
Há pelo menos trinta e cinco anos que Vós não cuidais
muito disso, eu sei. Nem Vós, nem aqueles de “lá de cima”.
Como aliás sei que a culpa de tal é minha.
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