© Walker Evans – Roadside Stand near Birmingham, Alabama (1936)
128. EM VINDO SEGURANÇA
Há por aqui sossego, ainda é o que vale. O tempo que hoje fez (e se desfez) nada teve a ver com o de ontem. O de ontem foi tormentoso, até trovoada meteu ao barulho entre muito vento e muita chuva. Mas hoje não é ontem e não há-de ser amanhã, embora tudo me pareça idêntico, por causa talvez do sossego. Estou aqui parado (menos a mão direita). Também as pessoas passam paradamente. Isto não é Norwich nem Bruges. É outra mesma coisa, por assim dizer. Não posso (poder, posso, mas não devo) ir já para a cama. Tenho de cansar a vista e esvaziar a cabeça primeiro, operações que levam o tempo que o tempo mesmo demora a levar-se, não o tempo como o de ontem mas o tempo-tempo, o tempo do vazio que tudo preenche. Aponto a cara ao papel-cenário, avizinho os adereços desta parte do mundo, deixo-me estar enquanto o guarda (agora diz-se “segurança”) me não enxota daqui para a rua. É até agradável, quando as moedas dão para um café. De resto, espera-se vez pelo jornal, há sempre velhotes que demoram no pasquim os olhos aguados, mas mais meia hora menos meia o jornal fica disponível, também nem cinco minutos o demoro eu, valha a verdade (que, aliás, ele nem sempre traz). O nosso tempo é o do esvaziamento, valores, ideias, honras, projectos, tudo enfim parece marcar passo à beira das furnas, não sei bem o que seja isto, marcar-passo-à-beira-das-furnas, mas assim surgiu e assim vai. O valor moral ausente, ainda o sossego é o que vale. Lá fora, sem pressa nem parança, os fumadores pinguinam ao frio vai-vem-trás-frente o tempo de chegar à fímbria do filtro. Cá dentro, senhoras chaleiram e biscoitam conversações de celofane, lá está, não sei bem o que seja tal, chaleirar-e-biscoitar-conversações-de-celofane, mas assim vai por assim ter surgido. Isto não é a Libéria nem a Finlândia, mas isto e isto mesmo. Posso sempre escolher uma dormência visora, como se estivesse na cama – e então deixar aqui o corpo e dar alas a alamedas chilreadas a frechas de sol suspensoras de pólen, perto a respiração de um rio ou de uma lagoa verde, as árvores sem cartazes pregados, as bermas sem ossos de animais, um quase frio nas badanas sem sinopse do nariz. Casais oxidados como trincos de arrecadação de museu, ei-los em suspensão de cristal pela galeria, parecem gostar das lojas mas nunca entram, gostam mas não gastam. Isto não é Birmingham nem Ottawa, Baltimore ou Macau, é o que tem sido enquanto puder ser e para, senão de, alguma coisa valer.
Há por aqui sossego, ainda é o que vale. O tempo que hoje fez (e se desfez) nada teve a ver com o de ontem. O de ontem foi tormentoso, até trovoada meteu ao barulho entre muito vento e muita chuva. Mas hoje não é ontem e não há-de ser amanhã, embora tudo me pareça idêntico, por causa talvez do sossego. Estou aqui parado (menos a mão direita). Também as pessoas passam paradamente. Isto não é Norwich nem Bruges. É outra mesma coisa, por assim dizer. Não posso (poder, posso, mas não devo) ir já para a cama. Tenho de cansar a vista e esvaziar a cabeça primeiro, operações que levam o tempo que o tempo mesmo demora a levar-se, não o tempo como o de ontem mas o tempo-tempo, o tempo do vazio que tudo preenche. Aponto a cara ao papel-cenário, avizinho os adereços desta parte do mundo, deixo-me estar enquanto o guarda (agora diz-se “segurança”) me não enxota daqui para a rua. É até agradável, quando as moedas dão para um café. De resto, espera-se vez pelo jornal, há sempre velhotes que demoram no pasquim os olhos aguados, mas mais meia hora menos meia o jornal fica disponível, também nem cinco minutos o demoro eu, valha a verdade (que, aliás, ele nem sempre traz). O nosso tempo é o do esvaziamento, valores, ideias, honras, projectos, tudo enfim parece marcar passo à beira das furnas, não sei bem o que seja isto, marcar-passo-à-beira-das-furnas, mas assim surgiu e assim vai. O valor moral ausente, ainda o sossego é o que vale. Lá fora, sem pressa nem parança, os fumadores pinguinam ao frio vai-vem-trás-frente o tempo de chegar à fímbria do filtro. Cá dentro, senhoras chaleiram e biscoitam conversações de celofane, lá está, não sei bem o que seja tal, chaleirar-e-biscoitar-conversações-de-celofane, mas assim vai por assim ter surgido. Isto não é a Libéria nem a Finlândia, mas isto e isto mesmo. Posso sempre escolher uma dormência visora, como se estivesse na cama – e então deixar aqui o corpo e dar alas a alamedas chilreadas a frechas de sol suspensoras de pólen, perto a respiração de um rio ou de uma lagoa verde, as árvores sem cartazes pregados, as bermas sem ossos de animais, um quase frio nas badanas sem sinopse do nariz. Casais oxidados como trincos de arrecadação de museu, ei-los em suspensão de cristal pela galeria, parecem gostar das lojas mas nunca entram, gostam mas não gastam. Isto não é Birmingham nem Ottawa, Baltimore ou Macau, é o que tem sido enquanto puder ser e para, senão de, alguma coisa valer.
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Tenho a ambição de esgotar a memória a ponto de só poder lembrar-me do futuro. Acho que isso se tenta escrevendo, mas como o envelhecimento consiste tanto na capacidade de não sofrer nem surpresas nem de certezas, não sei – o que me não surpreende, é claro.
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