É, deveras e de facto, como ouvir música, isto de ler a Grande Poesia. Da Clepsidra, de Camilo Pessanha, música assim:
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, – meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
Depois, a segunda quadra reforça o tom de indignada tristeza:
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, – tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
– Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…
A chave (a clave, pois, porque música) está oculta nos tercetos finais:
Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe. Não andes mais à neve,
De noite a mendigar à porta dos casais.
Camilo era filho ilegítimo de um filho ilegítimo. Acabou sendo, na impossibilidade de casar-se com o amor da sua vida (a excelente senhora chamada Ana de Castro Osório), ele próprio pai de filhos à margem da lei, em Macau. A dor pelo estatuto da Mãe (amante/governanta do Pai) nunca o desamparou. Por a senhora ser de extracção popular, Francisco António Pessanha (n. 28 de Fevereiro de 1845, mesmo ano do nascimento de Eça de Queiroz) nunca deu com ela o passo matrimonial. Vale que a levou consigo sempre, ou quase, dela tendo, além do primogéni(t)o Camilo, mais quatro filhos: Madalena (menina que morre aos cinco anos), Francisco, Madalena da Purificação (note-se o pormenor de uma outra filha também Madalena, nascida dois anos depois do óbito da primeira, mas seguida de “Purificação” – Camilo fez poema com este leitmotiv onomástico) e Manuel Luís (cuja neurastenia o levou alguns tempos ao hospício de doenças mentais e nervosas). Estes dados, escrupulosamente respigados por António Quadros na exegese introdutória que referi supra (entrada anterior, de 11-06-10), iluminam de outra luz (sombria, é certo) o sétimo soneto da 1.ª edição da Clepsydra (que saiu em 1920, publicada em vida ainda do Poeta e por ele sancionada, após colaboração que teve da amada – mas intangível – Ana de Castro Osório e de seu, dela, filho, João de Castro Osório. A este propósito, veja-se (e leia-se, e leia-se) o belíssimo O Amor de Camilo Pessanha, do grande enorme gigante António Osório (Edições Elo, em data a determinar).
Dá de sua graça (17h41m) o Grande Rá, herança melhor e maior que nos legou o Antigo Egipto dos faraós e dos escravos e dos escribas e dos sacerdotes. Um pouco-quase-nada de Sol – e é quanto basta para cada um(a) se aperceber da comum raridade de se estar e ser vivo(a). Acrescidas a mornidão digestiva da sopa, a chávena de café e meia-dúzia de cigarros, mais e melhor a herança solar da tarde.
Senhoras e senhores, topai-me as tremendas (e tenebrosíssimas) beleza & força & evanescência & Poesia dos cinco versos que encerram, de Camilo Pessanha, a Clepsidra:
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.