17/04/2010

Quatro Dias do meu Futuro Recente - I

I

Pombal, fim da manhã e tarde de 12 de Abril de 2010

A derradeira frescura da manhã cede terra e ar e luz e arvoredos à ilusão do meio-dia. É segunda-feira na nossa vida. Cumprimentei o Zé da Redinha, o Amadeu do Mercadinho, o Adriano do Talho e um rapaz de neurónios amolgados de quem me não ocorre o nome. A manhã foi bonita a ponto de doer nos olhos. Ao pé do tribunal, passa uma mulher de cu alto como uma prateleira de cozinha. A seguir, deparo com um casal septuagenário de boníssimo semblante: ele, de rosto muito claro, óculos de aros de ouro, o nariz aparafusado à cara por miríades de veias miniaturais; ela, de cabelo de um negro retinto, de uma treva forte, saia-blusa de chita garrida: uma velhota gaiteira e provavelmente feliz.
Amanhã, terça-13, vou à Pedrulha ao funeral do pai do meu Amigo Fernando Jorge Pereira Fernandes, o senhor Carlos “Pintor”. Morreu na noite de sábado para domingo, incapaz de resistir mais dias ao cancro. Vai ser hora de reencontro com o Jorge e os irmãos dele: Carlos, Victor e Paulo. Os funerais dos pais dos amigos são amêndoas (amargas) que devolvo aos poucos pelas recebidas na hora do meu Velho, já lá vão (faz este dia 24) dezasseis anos.
Entretanto, aproveito o dia. Sinto-me vaidoso da meteorologia da nossa terra: este azulejo alto e lavado da tarde que nasce, este ouro florestal manicurando os dedos das ruas, esta profusão de perfumarias (as mulheres que passam, as mulheres melhoradas pela solidariedade solar de suas carnações, seus vestidos etéreos aéreos), a bondade dos cães livres, o realejo perpétuo das crianças, a lentidão dos professores reformados, os sapos de barro com que alguns lojistas afugentam alguns ciganos, os leitores de jornais à porta das sapatarias, o advogado que bebe uns copos com o jornalista local. Isto é tudo muito bonito, às vezes é uma pena morrer. Um rapaz de camisola de alças branca, a pele muito branca sarapintada de acne vermelho como bolas de árvore-de-natal. Já fuma. Alguns dezasseis, dezassete anos. Olhos azul-claros, nervoso como uma ventoinha de pé. Carros cinzento-metalizados como tubarões de lata dormem ao longo dos lancis. Então, para meu usufruto e por minha atenção, decorre uma casada de excelentíssima bacia parideira, larga de ilíacos e de tíbias fortes, de nádegas a’bunda’ndo em firmeza, a boa saia de ganga juntando as partes em um todo fértil, harmonioso, potente. Uma cigana de luto mas cabelo aloirado a tintas quentes adentra uma chávena grande de café-com-leite. Rapazinhos de camisola cor-de-rosa sapatilham imitações de basquetebol nort’americano contra uma parede de bairro social: nenhum Camões e hip-hop a mais. Sossego gentil na rua de Ansião, sol forte na do Quintalão. Ontem, domingo, conversa de qualidade com o amigo e arquitecto Carlos Vinhas, mais Adelino Leitão, G. Diogo e Jorge (filho do senhor Ilídio e da senhora Rosa da Casa-de-Pasto Cardigo): uma espécie de felicidade sediada no Palácio do Gelo: parte da vida. Rumor formigueiro-auricular de telefonemas. Procissão de comerciais a gasóleo: café, ar-condicionado, gesso projectado, canalizador-electricista, bombeiros que fazem uma perninha de securitas.
Amanhã, dia do senhor Carlos “Pintor” Alberto Fernandes, é dia de ir reverificar o que a morte implica de vida. O senhor Carlos já não é. Foi. Será na lembrança de que o amou. Um nome a lápis no meu caderno – uma vida. Espero que amanhã o dia seja bonito, irmão do de hoje em cara lavada e roupa natural: roupa de luz, roupa de cor, cara branca e azul e vermelha e verde e amarela. Tempo. E vida e morte. E Natureza e Coisas. Estranho (tão estranho) – haver vida, universo, haver Natureza & Coisas. A alternativa, nunca a pude sequer pressupor: o Nada (sem oposição a Tudo). Nada apenas nada. Inexistir. In-ser. A-estar. Ou. A-ser. Os dentes acrílicos daquela boca envelhecida. O saco de plástico cor de verde-ranho aos pés daquela boca envelhecida, saco de vísceras de frango de aviário para cozer com trinca-de-arroz para dar aos cães. Tempo nosso, nossa vida. Circula o astro-rei em circunvalação pelos altos paços cósmicos, diminui já a febre fulgurante da tarde, qualquer coisa de noite cheira a sombras e axilas.

Largo 5 de Outubro. Pombal. É pela tarde madura, ainda. Duas bancas de senhoras: tremoços, pevides de abóbora, figos secos, azeitonas, pinhões, passas de uvas: muito Portugal dental. Ferragens e ferramentas e cutelarias. Zink Modas e Óptica Lourenço. A Social. Meio século de vida de Adelino Marques Leitão, advogado, cumprido hoje. O contrário siamês da pena-de-morte é a pena-de-vida. Tirar licenciatura em Direito. Saber um pouco mais, segundo Sena, do soneto quinhentista peninsular. Murphy. Molloy. MacAdam. Mister DeLuxe.

Tempo. Existência em stock a liquidar.

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Canzoada Assaltante