12/04/2010

Cão como Equinócio Fulvo

Pombal, manhã, e Louriçal, noite de 8 de Abril de 2010


O cão, fulvo como um equinócio, cruza a rua pela passadeira. Como eu, vê o mundo com a língua, que leva de fora em bússola. Vai em sossegada glória cheirar os contentores do bairro comercial. Belo animal de ninguém e dono de si, prova provada da inexistência de Deus com pulgas. Some-se por esquina propícia, eu fico, estou pronto para salivar cores e moções do mundo que amanheceu. Começo por aquela camisola de um azul-ferrete-da-Senhora-da-Piedade. Envolve um rapaz a tender para o gordo, de cintura pneumática angariadora da imagem da bola-de-Berlim. O rapaz abocanha um rissol morno, que intervala a golpes de laranjada americana. Manhã excelente para usar lentes fumadas e lápis macios. Os Móveis 80 desta cidade de Pombal têm uma exposição de 3.500 m2. Um jipe da GNR leva isto escrito nos flancos: GIPS. Falta ali um Y, digo eu. Tive uma sorte do caraças: é tão bastante sentar-me aqui e receber os palavreados do mundo! Olha, olha: um camião de galera encarnada com uma aglutinação: CASACTIVA. Por onde andará certa raiva que por vezes me alvoroça? E o cão de há pouco? Esta noite, sonhei lances e planos de mau filme com maus actores e péssimo enredo. Um pouco de Viseu (ainda) no sonho, um pouco do Caramulo, muita Coimbra, alguma Lisboa, um tanto da Guia como de Peniche – cenários que, afinal, reescrev(iv)o acordado. A minha gata mais nova teve cio, já lhe passou. Agora, é a mais velha que anda a serrar cabos com aquela voz do desejo, aquela imitação de choro de bebés, aquela precisão de eternidade subindo das entranhas genéticas dos cabos do mundo e de Darwin. Se pudesse, eu frequentaria abadias em manhãs frias – mas a vida não é isso, é ingressar às duas e meia da tarde no turno das duas e meia da tarde. E está muito bem assim. Em Setembro, levo-te a Seiça à festa da capela octogonal. Ser feliz não é difícil, difícil é não andar a reboque dos adjectivos. Mas – como não reconhecer de imediato o equinócio naquele fulvo daquele cão? Vai sendo Abril, mês inicial e final do meu Velho. Tenho aqui uma carta escrita / para ele / cara bonita. Tenho-a escrito em pleno inverno em Baltimore, aonde fui nunca e jamais irei. Vai-se-me Baltimore volvendo adjectivo. À minha amiga Graça C. P. não agrada o substantivo lucidez. Acho que a compreendo: vem de luz, mas rima com acidez. Entretanto, a tenda solar estica cordas. A claridade é a mais simultânea e ubíqua das coisas reais que hoje vigoram. Os quintais das vivendas ramalhetam em fulgor. Os raros pastos circunstantes sobem estátuas vivas: vacas, ovelhas, cabras, coelhos. Hesito, o lápis dextro e o cigarro sinistro em suspensão: sair um pouco a respirar luz ou fumar escrevendo um pouco mais? Decisão provisória: sair um pouco a respirar luz.

Ao Sol, coalham os taxistas em modo de espera, chega a hora-de-almoço, bancários em mangas de camisa elogiam os quatro do Messi ao Arsenal, duas raparigas emblusonadas de cor-de-laranja seguem a pé de capacetes motoqueiros enfiados nos antebraços.

Branca e amarela – a larga bandeira da tarde portuguesa.

Por portuguesa, esta pouca pureza de gostar de Portugal sem ser por causa dos nun’álvares, das manas medeiros do maestro, dos sempiternos figurantes-figurões da lusa mediocridade, dos santanas, dos soares, dos sampaios, dos marcelos com dois ll ou só com um, da merda em geral e da portuguesa em particular.

Crepúsculo nocturno. Quem viu (e ficou com) nunca alguma vez estes riscos pretos (pinheiros) unhando de dedos o último azul do último dia, até à data, de sua vida? De que serve isto a esta vida? Que farei destes pinheiros? E da minha vida, que equinócio farei da minha vida? Visão do caraças: pinhos negros sem voluntária decisão de negros – contrazul, contraluz. Os minutos não contam, não têm arte narrativa. Eu também a não tenho, mas conto. É a noite por todo o lado, o largo lençol preto português: pinheiros e casitas – e um preto que azul foi. Percebe, por favor ou delicadeza, a minha angústia: se mais não sucede, que hei-de senão a noite de pinheiros viver? Nada tenho contra o que regula os itens da revolta, da raiva, das filhinhas do maestro, que são giras, que são manas-medeiros, portuguesas apenas de Paris apenas portuguesas. A Finlândia destes pinhais portugueses é tão Noruega! Mansidão, bebés rurais, crocitar de cães domesticados à pena, os zambujais, os pachecos, os peixotos – e apesar de todos, nada; e de tudo, todos. Mas. Mas a nacionalidade destes pinheiros, a possibilidade total das sendas, das azinhagas, das veias de terra atapetadas de sílex imemorial: búfalos, bisontes bisonhos, bávaros pecos, pécoras bizantinas, clementinas lanas, dinares dinamarqueses e marqueses às vezes. Nem sempre sei, excepto quando quero muito. E agora quero:

Um toque de nespereiras adeja pepitas
Pequenitas dobras de bronze dão azulejo
Um beijo é quanto anil se pode obter
E ser é ser sem toque de nespereiras.

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Canzoada Assaltante