Pombal, tarde de 21 de Abril de 2010
Uma coisa que nenhum governo corrupto e corruptor, incompetente, lerdo, arrogante, capcioso e infestado de parasitas pode – é proibir aqueles dois passaritos de coroar o meio-céu de Pombal de uma caligrafia a mais graciosa e arabesca: ébria, eufórica tinta-da-China revoluteando em contra-esmalte.
O que nenhuma besta fria e torcionária atarraxada a uma gravata de seda pode – é vedar a esta meia-dúzia de crianças que periquitem de aguarela sonora a Praça Marquês de Pombal, batidas a bronze imemorial as quatro da tarde.
Não, o que nenhum pinochezito da Brandoa nem trostkyzito algum da Covilhã podem – é impedir o velho cauteleiro de, rainhassantamente, distribuir no Largo do Cardal, por doze pombas, a sorte-grande do pão que lhe sobrou em duodécimos.
Verdade, não é um qualquer cabrãozito vampirizador de ministérios que pode obstar a que o meu Amigo Adriano do Talho e eu lamentemos, a meio da Rua Capitão Tavares Dias, o passamento do engenheiro Victor Mendes, que aos 55 anos desceu a contemplar as raízes do céu, diz-me ele que esta noite.
Estas certezas inócuas valem-me ouro, a mim, que uso água castanha para filtrar a evidência das grandes nuvens que lá do alto dizem ao castelo da cidade “– Olha que maiores castelos somos do que tu, ó Castelo de Pombal!”
“– E como as nossas vidas, húmidas e efémeras, ó Nuvens!” – atiro-lhes eu, que nunca fui de ficar calado, sobretudo quando era razão para tal.
Sofro prazenteiramente de melancólica malícia. Sou um imbecil competente – mas não um canalha do terreiro-do-posso. Isto não tem nem interesse nem importância. Importante é topar com o senhor Joel na confluência da Rua dos Bombeiros Voluntários com a Professor Ernesto Domingues Tavares, vivos ambos na antemão da trovoada que se acerca. Usufruo de um esófago regular, de uma pâncreas justo, de um coração muscularmente bombeado pelas golfadas de um lirismo irreparável – ou seja, sei finalmente escrever, embora nada haja para dizer.
Mas digo: que governo nenhum de cabrão vil algum pode substituir na pessoa a Pessoa, larva nuclear do cosmo não finito, bufa de gás sideral, própria antimatéria de si-mesma.
É isto – e isto mesmo: nenhum desperdício-de-cona-de-mãe, por mais manhoso, nos pode roubar a pensativa delicadeza de Carlos de Oliveira, nem a portátil cruz-vermelha (naturalmente, vermelha) de Soeiro Pereira Gomes, nem nada.
6 comentários:
Abençoado lirismo irreparável!
Com efeito, também isso (talvez sobretudo isso) significa Abril: não haver machado que corte pensamento, vento, essencial humanidade.
A aparência só aparentemente vence o que verdadeiramente importa. Mas o poder da aparência pode durar uma vida inteira até morrer, geralmente de podre.
Eu, pá, estou com Oliveira, com Soeiro, contigo.
PS: Quem é o "pinochezito da Brandoa"?
Bom dia, King. Pois dizes bem: no momento em que escrevo isto (meio dia e dez de 26 de Abril de 2010) está o Armando Vara na comissão parlamentar de inquérito. No dia 26 de Abril de 1974 não me lembro dele. Acho que nunca fui à Brandoa, por outro lado. Lembro-me mais do que nunca esqueceste, também. E ainda bem.
Tenho tantas saudades de te ver escrever para toda a gente, Daniel. De todos te puderem ler. De quando à quinta-feira se perguntava no Cardal: "então, já leste o Daniel?". Foi antes de cada um de nós começar a fazer a nossa revisaozinha constitucional.
Estou com o Quim Jorge: abençoado lirismo irreparável.
Abraço, camarade.
ps: O pinochezito, eh eh...
Merci, Bofix.
Bendita Língua Portuguesa que tanto adjectivo tem para qualificar na perfeição a diversidade de malfeitores que nos atacam em todas as frentes!
Que vivam os cravos vermelhos e o Daniel,a lembrar-nos de outros adjectivos com que os possamos exorcisar!
Bj.
Gr.
Gracias, Gr.
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