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Pombal, manhã de 28 de Setembro de 2009
UMA MANHÃ E OUTRA TARDE, EM TRÓIA
Numa manhã de província em uma manhã de província
toca-me a beleza do rosto com a graça molhada de suas asas,
seus pássaros verdes como esmeraldas atiradas ao erário do ar.
Brilham do chão as pastelarias, sobem os sinais de trânsito,
respiram as massas arbóreas, a máquina amarela da obra
é de uma autoridade de pus.
Olha a bela carroça de lenha!
Olha o poderoso cavalo humano!
Olha o cor-de-rosa daquela casa!
Olha a fogueira do Sol-que-respira!
Gosto muito de pensar que passa esta senhora que passa-pensando
em sua filha quase enfermeira diplomada, como passa o tempo,
quase enfermeira, a menina, quase diplomada!
Como passa, como quase!
Oh rumor de estorninhos pensados em céu de cal
través um bosque de tijolo-burro!
Oh vapor de comboios-barcos de michigan-mississipi nenhum!
Agora calma.
Agora, dar de comer às pombas.
Agora, servir os bons-dias às avós de cera que se derretem a caminho do mercado.
Agora, garantir a paz municipal do Universo Possível.
A estas horas, é noite noutro sítio.
A esta hora, um tubarão aboca um corpo mais lento.
Uma mosca pensa na vida em uma parede de retratos, a esta hora.
Drenam um tumor, a esta hora, ao mediador de seguros que casou cá
e por cá se deixou.
Uma menina vai à loja a buscar à mãe um frasco de feijão vermelho
(será diplomada um dia de enfermeira).
Minha vida de província de barcos sem mar, oh minha vida!
Pleno poder aos frutos que adoçam das árvores o ar.
Ríspida cálida fétida nítida pútrida palavração celebre tudo, célebre, célere,
apátrida embora.
Padres de colarinho-terileno são homens erectos eles também,
os-milagres-quando-nascem-são-como-o-Sol.
Empregadinhos retrosariam muito adamascados os
contadores de madeira com sólidos metros de pano.
E a beleza de isto tudo e disto tudo, a tristeza
aliás suave, aliás morredoura, de filme-
pátio-do-leão-tirano-da-canção-da-estrela-de-lisboa,
Pai!
Sucumba quem possa.
Eu não.
Olha o poderoso cavalo de lenha!
A estufa pós-prandial é obra solar.
Estio em plen'Outono.
Luz farta e forte.
Sismo e miasma, istmo e aquilo.
Força da palavra, de cada uma palavra: forte e farta.
Terra de tempo, esboroar de b(o)roa.
Ligação à terra do indivíduo palavroso, em linha com a
respiração-éter:
sombra, treva, névoa, campânula de catedral aos pés:
visão, visão, interior, visão.
Em Tróia
(qualquer lugar é e não é Tróia),
o poeta
Sebastião da Gama sente de barco,
o médico
António Martinho do Rosário fuma sem filtro,
bom sítio para levar ao Canadá
o velho
Lowry
e ao México
o jovem
Malcolm.
Em Tróia,
esta tarde,
fumegam cornetas de sétimo-de-cavalaria,
de autárquicas-little-big-horn,
de quem-nasceu-primeiro - a Indochina ou o Kosovo?
Quem me dera fosse de manhã nascer outra vez!
Que a religião católica fosse uma desobriga como o laxante,
a ida-às-putas e os poemas-do-torga!
Que a creolina das ferrovias não acendesse nas crianças a óli-úde
da emigração perpétua!
Que a secreta veneza de cada rapazinho não cheirasse nem oleasse nem vazasse -
mas antes fosse fluída e doce e para sempre até que desde sempre
fosse Verão!
(E há quanto tempo não usara sinal de exclamação!)
Do lado de fora da vida - que é o dos outros sempre, sempre
que um não é como nós - o Sol alardeia
arrogâncias aliás pobres de feirante. Isto tudo por conta
dele.
Quando, por-exemplo-sem-exemplo, vemos dois portugueses
falando português um com o outro sem
sermos eu nem tu.
Quando, exemplar, a minha Mãe é por exemplo
a Tua.
C'um carago!
- diz o português -
teimando em pagar ele.
Derredor, a massa arbórea.
Derredor'idem, café-chicória.
E a elementar pobreza dos ricos meninos de pátios-estádios,
estádios-de-graça
(por assim dizer).
Em Tróia,
as que leram a sina da Lua usam os anéis de Saturno.
A poesia,
ou por ela a vida,
é quando Emídio Navarro não é homem,
mas avenida.
A Emídio Navarro é uma avenida de Tróia,
de Helena Sá da Bandeira,
de Telémaco Dias da Silva,
de Aquiles Fernão de Magalhães,
de Homero 24 de Julho,
de José Afonso dos Aliados,
de Zé Ninguém Duque de Loulé.
Uma província alaga o coração de cada homem-pessoa,
de cada homem-mãe, de cada negociante dado por força
ao comércio de lenha de cavalo.
Uma vida corresponde a tanto engano quanto possível:
a ortografia, quando possível como o futuro ou o Universo,
pode dar uma ideia.
Como, Deus houvera, dissera Deus:
- Venham daí esses ossos!
Mas Deus,
que o Diabo não,
a Tróia é posterior.
Deus é ulterior sempre - ou sempre que nunca mais.
Helena, nome de enfermeira.
Que a Senhora D'Arbyville tratava tão bem os cavalos quão
os criados.
Que eternamente aqui andamos todos enquanto não nos
acaba.
Que os derradeiros livros à espera
de um lado
dos primeiros homens
do outro.
Que o pus das máquinas é amarelo na névoa do
trabalho e dos dias.
Sucumba quem eu.
Não possam.
Linha de Sintra, Byron para porcos.
Correnteza de aldravas, ferrões e aloquetes.
Cascotoques de cavalartelhos.
Comatoso palavrar do adormecido.
Linhas e linhas e linhas de horas e linhas por viver,
costurar,
entre gente.
A inconsciência do desespero é que faz as pessoas
falar alto,
nos cafés de Tróia.
Ou nos bares dos comboios,
entre tróias.
Tantos portugueses há na grécia-possível-do-universo-de-província!
Tanto tempo para o espelho não mentir,
em Tróia.
Agora, derivo em calma, caminho do mercado.
A nossa morte de todos nós na minha vida, voz.
Tempo de perfumadas areias refazendo dígitos,
meninos que foram a-ver-o-mar,
camartelos económicos que prensam cachorros familiares
em casotas de urbanização,
cúspide, áspide, céspede, hóspede.
Meu quase-nada atraso em ir ver as lavandeiras fluviais.
Nossa Rainha Tão Santa Clara a Velha.
Nossa Dispepsia-Cola.
Bombaim e Tavarede: multitudinário deserto à colecta.
Tempo-burro de tijolo-tróia:
um dia por pessoa,
não mais,
nunca menos.
(Os cafés são pequenos,
a conversa ouve-se quase toda,
as mulheres salt'alt'usam,
dedo-de-verniz a furar p'ra fora.)
(Ronda-Williams pelos pubs escoceses de há vint'anos,
não é preciso mais - atira,
Tróia,
atira, interior, atira!)
Entretanto, faz-se noite.
Agora, calma.
Cavalo dorme cavalo dorme Tróia dorme tempo
enorme dorme verme, exemplar.
Atira, cavalo.