07/08/2008

Um Solecismo Solipsista



Fotografia: © Sandra Bernardo,
cemitério de Viseu, manhã de 2 de Agosto de 2008


Viseu, casa-de-pasto A Marisqueira, tarde de 5 de Agosto de 2008

Julgo que desde menino penso na morte.
Julgo, ainda, que é por causa de um solecismo solipsista, este aqui:
a morte acontece aos outros,
alguns dos outros somos nós
e um de nós
sou eu.

Não penso na morte como um homem pensa
na mulher que deseja.
Penso nela como numa mulher
que hei-de ter.

Tudo ma evoca:
a corredora beleza das mulheres dos outros;
certos olhares de certos homens,
onde fadiga e força moram
invencíveis ambas;
as bugigangas mágicas do pequeno comércio;
o sabão azul;
as crianças pomboando ao sol;
a água tomada de sombra;
o crepúsculo de um rio.

Todos funambulamos entre as duas pontas deste arame:
uma, a incerteza do nascimento;
outra, a certeza da morte.

A certeza da morte é a morte de toda a certeza:
daí tanto nascimento.

Isto para mim já nem é triste.
É apenas humano e constante: como
um nome de rua;
uma folha levada à água pelo vento;
os despojos do falecido morrendo eles também
de desuso;
uma fábrica encerrada para sempre acordando
de manhã para sempre;
um escrito ser um papel sem palavras
colado a uma vidraça.

Um dos paradoxos mais bonitos que conheço, é o
do fato e dos sapatos novos que os mortos
vestem e calçam.

Os muitos que já vi, vi-os a todos dotados
de roupa e calçado novos a estrear
na segunda e última nudez dos ex-vivos.

(Digo nudez,
não digo mudez:
eles falam.
E desde menino que os ouço dentro dela,
a mulher que vou ter.)

1 comentário:

Amora Silvestre disse...

A morte está certa,voz do povo. A certeza das certezas. Um tema muito bem tratado neste poema.

Um abraço

Canzoada Assaltante