12/08/2008
Dias há que são
Pombal, manhã de 12 de Agosto de 2008
Dias há que são países nocturnos.
Comigo anda a clara idade dos olhos dela:
ainda é o que me salva de tanta lua escura.
Serei um profissional da tristeza: com um pouco
de estudos, serei um profissional da melancolia.
Todos os dias a noite me acontece: uma boa
garrafa de mau gin, os retratos fechados em gavetas,
a palavra queimada na boca como um papel
qualquer.
Vale-me que amo: a loucura é portátil: vale-me isso.
Esta manhã, subi a uma varanda alta
a ver a simultaneidade dos carros.
Amo estas formigas vivas na cidade já estranha.
O meu amigo dormia cantando, acordei sozinho.
Eu agora posso ser isto: um organograma da memória.
Tropeço em vidros, em anjos: todos os
dias.
Conheço a mutante sombra: a lua mútua dos tristes.
Vi um cavalo: sua solidão de couro alta na erva baldia.
Conheço o dia.
Vi a boca de uma mulher falar fora da cara.
Vi tintas correndo paredes: assim algumas lágrimas
cromáticas me correram já, outrora.
Tudo isto é apenas humano, apenas coisa de gente
vestida de preto entre áleas e áleas e áleas.
Vi uma senhora sentada num banquinho de campismo
ante tremoços, torrão-de-alicante, chupas de pegajoso
caramelo, na cidade já estranha.
Perguntei a um homem pela mulher dele,
disse-ma doente, enlouquecida entre os limoeiros do pátio.
Não quis saber mais.
Frigiam carne a um canto.
Um cão passou cantando.
De manhã, tinham de acender as luzes para morrer.
Depois, eu toquei a velha garrafa de dois dias.
Os limoeiros enferrujam na clara idade: era talvez a morte,
as notícias iguais na luz negra, os prédios todos para venda,
as criancinhas minúsculas como bicicletas, como bicicletas
muito magras as crianças antigas.
Antes, eu tinha tocado um coração sensível: e um amor
cavernoso como um órgão de igreja, fundo na treva.
Eu podia dizer isto para sempre.
Eu digo.
Agora, é outro dia.
Eu digo: sou outro no mesmo dia.
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4 comentários:
Companheiro Daniel Abrunheiro.
Sei que mereces e precisas do descanso, por isso não te perturbo.
Mas não resisti a fazer aquela foto a que entendi chamar "O Descanso do Guerreiro".
Aquele Abraço
Joel
somos e ainda bem no nosso presente.
quem faz falta é a presença da nossa malta.
boa continuação..
querido D.
Entao, està frio et il pleut...sur la ville, làlàlà, sur mon coeur.
Oui, on ne se baigne jamais deux fois dans le même fleuve, selon Parménide.
Belo poema, como sempre, vejo e vivo
a tua escrita.
beijinhos com força!
até jà,
tua amiga,
LM
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