Estas são algumas coisas recentes que ainda não tinha podido passar para aqui. Outras havia, estão nos cadernos a aguardar vez. Ficam para domingo. Obrigadinho pela paciência. Fotografia: © SB, Viseu, 22 de Abril de 2008.
TÁBUA
I. POSTAL OUTONAL EM MAIO PARA SOFIA BERNARDO ABRUNHEIRO
Viseu, Café Avenida, tarde de 1 de Maio de 2008
II. LAVARÁS E SUBIRÁS
Viseu, Café Mundial, manhã de 23 de Abril de 2008
III. TODAS AS MULHERES E MAIS UMA
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
IV. AVENID’ARDE
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
V. SENTIR A POSSIBILIDADE
Viseu, Café Avenida, várias ruas e Cervejaria Loureiro, tarde de 1 de Maio de 2008
VI. CRIANÇAS AO SOL DA PRAÇA
Viseu, Café Murgeira, tarde de 27 de Abril de 2008
VII. TODA A R., A P. TODA
Viseu, Café Avenida, tarde de 27 de Abril de 2008
VIII. UMAS DUAS
Viseu, Café Paris, tarde de 27 de Abril de 2008
IX. VERSOS EX-MÁQUINA, FUMANDO
Viseu, Café Mundial, tarde de 28 de Abril de 2008
X. ROSAS PARA ALGUM ESPANTO
Viseu, Café Mundial, noite de 28 de Abril de 2008
XI. NARRAÇÃO DOS FINS DE LÁPIS
Viseu, Restaurante Colmeia, manhã de 29 de Abril de 2008, e Café Mundial, à tarde
XII. A LÍNGUA PORTUGUESA NÃO PRECISA DE PESSOAS
Viseu, Restaurante Colmeia, tarde de 30 de Abril de 2008
XIII. DOIS POEMAS
Viseu, Café Penedro da Sé (I) e Café Mundial (II), manhã de 21 de Abril de 2008
******
I. POSTAL OUTONAL EM MAIO PARA SOFIA BERNARDO ABRUNHEIRO
Viseu, Café Avenida, tarde de 1 de Maio de 2008
Que invernes comigo a vida
é quanto quero
pois quero quem és.
Do meu portátil outono particular quero
invernes comigo a vida e a próxima vida.
Tarde primeira de Maio, Viseu, Café Avenida.
II. LAVARÁS E SUBIRÁS
Viseu, Café Mundial, manhã de 23 de Abril de 2008
Lavarás os pés da tua amada
no sabão prolongando o licor
do amor que lhe levas e lavas.
Brancos e menos pedestres que manuais
te surgirão eles da água da chuva
que juntaste no pátio em a madeira da selha
noites e noites a fio ao frio.
Subirás aos amados joelhos que tua amada
ao de leve soergueu ao de leve entreabriu
aí começarás enxugando tuas mãos
aí retornarás a ser aurífero e mesmerizador
nas lácteas coxas que fremem primeiro
depois endurecem como jibóias que precisam
de cerrar tua medula nelas.
III. TODAS AS MULHERES E MAIS UMA
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
I
As mulheres são as coisas mais verticais que conheço.
Não é desculpa que eu conheça poucas coisas.
As mulheres são mais verticais quando deitadas,
quando por elas sobem os homens como salmões:
para darem vida e para morrer.
Os rios são, todos eles, verticais,
mas as mulheres, todas elas, são-no bem mais.
II
Sangra o coração sua especiosa resina, à boca afluem a palavra pinheiro, a palavra sangrar.
Nada disto tem a ver com uma puta pobríssima que agora vi fumando um sem-filtro na paragem do autocarro.
Foi junto ao rio, corria o tempo.
De deslavada gang’azul revestida, era uma mulher pequena de manchas na pele como um leopardo de exílio.
Fumava como antigamente se fumava na televisão e como se fez fotografar o romancista Somerset Maugham (lê-se Móme).
Olhei para ela, impôs-se-me de imediato a urgência de escrevê-la – mas em vez de dizer
a ganga e o fumar,
disse
resina e sangrar.
Que tolos são os poetas, mais que ela
pobríssimos.
IV. AVENID’ARDE
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
Uma avenida a um sol de almoço
é a melhor terra de ninguém: nem
manhã é ’inda, nem tarde já.
Suspende-se de si mesmo o tempo vivo
matador.
Mudei de casa, não guardei pão, há muito
não vou a semeá-lo às minhas pombas
de todos, de ninguém.
Avenidiasdas. Deusdarádepãopombas.
Manhãsindas. Suspentardes.
Manchas na pele. Sangra resina:
já ardes.
V. SENTIR A POSSIBILIDADE
Viseu, Café Avenida, várias ruas e Cervejaria Loureiro, tarde de 1 de Maio de 2008
Esta manhã senti a possibilidade de a morte me entrar pela casa do corpo, tomar-me a casa toda do nada do corpo.
Não tive medo.
Mexi-me pouco, dei água à gata, logo fez sol na rua, saí para a edição de praças atadas por ruas.
O coração físico batia-me com dois punhos no latão do peito, a garganta repetia-me o coração dobrado, nada pude escrever.
Fez hoje trinta e sete anos que a minha irmã Xelinha se casou com o Zé; e o meu irmão Carlos com a Gracita.
No almoço do casamento, que foi na Rua do Carmo, em Coimbra, bebi laranjada Cruzeiro.
Toda a gente era viva – e o futuro era a parte imediata à ponta dos meus sapatos.
A Sofia nasceu em Fevereiro desse ano, não tinha portanto sequer três meses quando eu já bebia laranjada Cruzeiro.
Sou talvez um homem agora.
Sou este homem, talvez, que ama como odeia: sempre totalmente, magnificamente sempre.
A Língua Portuguesa é uma das pessoas que mais amo, por exemplo.
Tenho dois homens (ambos Correia, mas nada um com o outro) que também amo: o Adelino e o Rui.
Eu faço a casa da minha vida com pedras destas.
A casa do meu corpo é muito mais precária do que a casa da minha vida.
Eu sei.
Também sei odiar.
Odeio as pessoas cobardes.
Odeio as pessoas cobardes e os campeões morais.
Também odeio os maus poetas.
Odeio os maus poetas porque amo o Pessanha, o Cesário, o Pessoa, o Ruy B.
Nem imagino o que tiveram de viver (ou que possibilidades sentiram) por dentro para nos deixar aqueles livros terríveis, pânicos, cósmicos, portugueses.
Saí do Café Avenida no fim do primeiro parágrafo e vim ter à Cervejaria Loureiro.
Não tinham laranjada Cruzeiro, bebi outra coisa.
A caminho, fumando um cigarro lento, vi uma árvore maravilhosa.
Explodia na luz da tarde como uma ideia boa.
Ainda explode, ainda é de tarde, há sol neste Primeiro de Maio de trinta e sete anos depois.
Agora não estou a morrer.
Penso com brandura nos meus mortos e nos meus vivos.
Sei de cor as mãos de todos eles, mais que as minhas sei.
Quero sempre entregar a parte do meu coração que não esteja doente.
Estas palavras entregam essa parte.
Ontem à noite, sozinho na Praça de D. Duarte, vi um energúmeno aterrorizar o próprio filho, um menino que a besta arrastava pela mão.
Depois, encontrei o Manel da Paula e comentámos aquilo.
Fomos ao Café Mundial e nenhum de nós bebeu laranjada Cruzeiro.
Quando pude, vim-me embora.
A noite esperava-me trancada em casa.
Fui um homem no escuro como um menino.
O meu Pai habitava as notas a lápis que me deixou em dois volumes de L’Illustration, Journal Universel (1843-44).
Dei água à gata.
Deitei-me no sofá e esperei a manhã para sentir a possibilidade.
VI. CRIANÇAS AO SOL DA PRAÇA
Viseu, Café Murgeira, tarde de 27 de Abril de 2008
O Sol convocou as crianças para a praça.
Uma, de cabelo de ouro, repete o Sol na cabeça.
É de olhos claros outra, a cuja superfície
o Sol faísca como às vezes no mar.
É uma hora cheia. Gosto da gravidade
com que brinca esta gente de aguda idade.
Parecem-me patos, mas são homens e mulheres já.
Só não brinco com elas porque não tardaria
a aborrecê-las com coisas adulteradas pela poesia.
Prefiro ficar a vê-las, como o Sol estrelas.
’inda no outro dia, ido ao funeral do pai
de um amigo, nos senti a todos
como crianças envelhecidas de mármore.
O sangue porém pára, o rio não.
Arde a tarde e tudo arde, serão
combustíveis também as crianças,
arderá delas a infância?
Sim.
Frequento as ruas escurecidas pela chuva,
mesmo que Sol faça.
Mas hoje parei o meu rio e vim
ver solares crianças à praça.
VII. TODA A R., A P. TODA
Viseu, Café Avenida, tarde de 27 de Abril de 2008
O infinito a que tive acesso era rosa-púrpura.
Ia de avião entre o nada do Sal e o nenhures de Lisboa.
Olhei pela janela o infinito, comoveu-me morrer e estar vivo.
É tão bonito, tão desumano – o infinito.
Era na noite altíssima, as pessoas dormiam, eu não pude.
Soube de imediato que tudo pertencia ao mesmo instante.
Era rosa-púrpura, o instante, e eu pertencia-lhe.
Estava para escrever: Era pelo fim de Julho de 1997:
mas que importam um nome, um número?
Nem o meu nome disse, que tanto canta e nada conta.
Suspenso na infinita cama de puríssimas purpuríssimas nuvens,
conferi das estrelas as gambiarras diamantinas.
Tanta beleza dispensava até o assomo de felicidade.
Por instante(s), pude não ser um homem, mas um olhar.
Não uma máquina digestiva, não um animal lírico, mas um olhar.
Porque olhei e vi, pude.
Rosipurpurou-se-me o rosto e tudo o resto.
Aquilo não era a morte, não era a vida.
Era o infinito além-terra, além-casulo.
Não era o pretérito futuro da vida.
Não era a paz podre da morte.
Era todo o não-ser: o reverso da alma.
Não vi anjos como cá em baixo.
Vi o vazio de Deus.
Achei estranho que o infinito precise, como nós, de beleza.
Isso estranhei.
Conformei-me e segui comovendo-me, porém.
Nenhum vento havia, nem sol algum fazia na sideral solidão que me siderava.
Não era uma solidão de café.
Não era a solidão banal do versilibrista de café.
Era uma coisa infinitamente maior que ser triste.
Era a recompensa da morte com o nascimento.
Não era ter-de-ganhar-ter-de-gastar dinheiro.
Não era um vão palavreado vãmente dito a uma musa vã.
Era como o mais absoluto domingo.
Nuvens e nuvens e nãovais e nãovais:
toda a rosa, a púrpura toda.
VIII. UMAS DUAS
Viseu, Café Paris, tarde de 27 de Abril de 2008
I
Nunca a tempo vivi do meu tempo
a tempo morrerei
como todos nós vós.
Temos tempo.
II
Tenho
umas duas
mãos.
III
A pouco e pouco diminuem as ruas e o domingo
as pessoas que passam. As pessoas passam.
Passa-as o tempo movedor do domingo.
Cada manhã de domingo mostra numa mão
a eternidade. Com outra no-la rouba e é nocturna.
Mudam as pessoas móveis de sítio nas casas esconsas.
Não esconso é o tempo que as muda, às pessoas.
Cafèzitos lamparinam grutas nas trevas.
Cheira a azeite e a mulheres velhas.
O rio oleia pedras, as pombas petrificam-se de sono.
Toda a tarde o sol respirou incêndio brando
nas árvores possíveis do outono da vida
embor’abril seja. Em armadas esplanadas
a cerveja dos senhores maridos, o ai-se-ti
das senhoras esposas, os gelados das crias framboesas.
Mas agora é a noite – e sempre é ontem
quando se faz noite. Acaba-nos tanto
o domingo quanto nos começou
(mostra-nos numa mão, rouba-nos com a outra).
Há livros em casa, as pessoas deveriam ler viagens
por outras feitas, a pouco e a muito e a nada e a pouco.
IX. VERSOS EX-MÁQUINA, FUMANDO
Viseu, Café Mundial, tarde de 28 de Abril de 2008
I
Se me fosse dada a certeza de só mais doze anos
ter de vida, arranjar-me-ia
hoje mesmo um cão por companhia.
E ele me seria, finalmente, um cão eterno
– como o que tive, como o que fui.
II
Se me fosse dada a certeza de ainda só ter doze anos.
III
Aos doze anos, lembro-me perfeitamente, eu,
nós.
IV
A máquina do tabaco vigia a calma da tarde.
A tarde é calma, há tabaco na máquina.
A mercearia expõe laranjas de rua
como os pintores de rua, pinturas.
Os mosaicos do chão têm cristos cifrados.
É preciso estar com febre para ver os cristos.
Em todas as ruas há vários sítios com máquinas de tabaco.
Em todas as máquinas há várias ruas.
Uma pessoa pode adquirir uma rua uma máquina.
Uma pessoa pode ser uma máquina.
Se tiver sido casada, uma pessoa pode ser uma ex-máquina.
Se agora não for, amanhã pode ser.
Se agora não for, amanhã pode ir.
Se agora não for, ontem pôde ir.
Se agora não for, ontem poderá.
A máquina do tabaco vigia nas calmas.
Almas antigas encruzilham enforcados novos.
As laranjas não envelhecem.
As máquinas envelhecem.
As máquinas obsoletam-se.
Fumar não envelhece.
Uma pessoa fuma. Envelhece à parte.
Uma pessoa fuma de olhos por exemplo nuvens.
As nuvens denunciam os fumadores maquinistas.
O sol torra as nuvens de laranja
como os pintores, as pinturas.
Há mulheres que frequentam as máquinas de tabaco:
ranhura contra ranhura.
As luzitas do comércio assinalam os destinos.
Às seis da tarde há muitas pessoas a querer morrer.
Às dez da manhã nem tanto.
Os fumadores e as fumadoras são nefelibatas.
Os fumadores e as fumadoras são lunambulantes.
Os fumadores e as fumadoras são vigiados-as
pela máquina de tabaco ao canto.
Os fumadores e as fumadoras são vigiados
pelo canto.
Para ter febre é preciso estar máquina de cristos.
V
(idem, Café O Bárbaro)
Levo o lume à boca.
Levo a boca ao lume.
Levo lava.
Lava leva-me.
VI
O fumador precisa de ser contemplado em esplanadas.
O fumador precisa de ser contemplado com esplanadas.
O fumador precisa de ser contemplado.
Trouxeram o milho, a batata, o tabaco damérica.
(aqui entra a concertina para acompanhamento das ROSAS PARA ALGUM ESPANTO)
X. ROSAS PARA ALGUM ESPANTO
Viseu, Café Mundial, noite de 28 de Abril de 2008
São rosas de espanto
de Nossa Senhora
que no céu lavoura
p’ra maior encanto.
Não meu é maior
espanto tido só
que só é que é
a só si menor.
Pombas redactoras
da praça do pão
pagam solidão
águias lavradoras.
E o que não há
nunca foi terá
perdi quem me tinha
mas minha será.
Será na memória
ouro de lembrança
tango valsa dança
esqueciment’ istória.
D. Afonso Henriques
sua mãe Teresa
fiques ou não fiques
goza a incerteza.
São rosas de espanto.
Rosas D. Dinis
que quem isto diz
di-lo por enquanto.
(repetir a estrofe final)
XI. NARRAÇÃO DOS FINS DE LÁPIS
Viseu, Restaurante Colmeia, manhã de 29 de Abril de 2008, e Café Mundial, à tarde
Somos a pouca voz do pouco tempo.
Se morrermos agora, vamos só ser amados depois.
Não vamos poder amar.
Já dormi sobre areia.
A chuva acordou-me.
Preparo a terra.
Ainda chove.
Os senhores da televisão do boletim
disseram.
Os carteiros dizem palavras escritas.
As vacas suam leite.
A temperatura entristece certas pessoas.
Tenho a vida ao lado como se ela fosse
um guarda-chuva.
A grande beleza das árvores não nos deixa viver.
A mim não me deixa viver.
O meu Pai afiava os lápis até ao fim.
O meu Pai terminava os lápis antes dele.
Há bocaditos desses por toda a casa ainda
e os chinelos dele.
Caiu-me a pele.
Caim Abel.
Na boca vivem o cuspo e a poesia.
No mapa de cada rosto
um país perdido.
(aqui volta a concertina)
A bela brandura
o caminho vão
a doce amargura
visita o serão
que manhã tão fina
hoje visitou
quem somos quem sou
menino menina
casca de laranja
pico de morango
coração mostrengo
um rubi de ginja
ruas de Lisboa
ao entardecer
vida não é boa
pior é morrer
pior não viver
quanto a vida dá
o viver é já
já que há morrer
Mondego suave
aos pés da criança
e uma azul ave
pintada em faiança
terna tenra tua
a visitação
amanhece a rua
e o coração
dedos de menina
bola de sabão
uma condição
a ambas destina
existência pouca
essência revã
a noite é rouca
rouca a manhã.
(cala-se a concertina)
XII. A LÍNGUA PORTUGUESA NÃO PRECISA DE PESSOAS
Viseu, Restaurante Colmeia, tarde de 30 de Abril de 2008
No peito está o coração incrustando o pensar.
Na galeria estão os mortos mui amados.
O corpo fala-nos um dia.
O corpo falha-nos um dia.
Só amamos mortos – não amamos o corpo.
Choramos como chuveiros como palhaços.
Depois enxugamo-nos.
Nós preparamo-nos.
Eu amo. Não queria mas amo.
Amo muita gente que é de mármore.
Duas datas e um amor por cada uma.
Amo gente que acontece sem ser.
Eu amo a Língua Portuguesa.
Acho-a bonita.
Acho-a bonita como uma mulher que passa
uma árvore que fica.
Ela não precisa de mim.
A Língua Portuguesa é como uma rua
que o sol molha.
M’olha a Língua Portuguesa.
Ela olha-me.
Ela é tão bonita.
Era a língua do meu professor primário.
É a língua dos meus amigos.
Ela pensa às vezes sozinha.
A Língua Portuguesa não precisa de pessoas
para pensar.
Para se incrustar.
Para nos amar o corpo sem pensar em nós
o corpo
de que se serve
para ser
serve ser
ser serve vê
no peito.
XIII. DOIS POEMAS
Viseu, Café Penedro da Sé (I) e Café Mundial (II), manhã de 21 de Abril de 2008
I
Sete da manhã, homens antigos dispersos pela cidade.
Praças nuas à chuva muito fria.
Beleza e espera: a vida segunda-feira-se.
Ajudo o dia a nascer: uso os olhos para ajudá-lo.
Espero que o dia me encha de pureza o coração.
Carrego o livro, ando na neve.
Ontem à noite, num dos cafés da minha vida da minha noite, um homem pediu-me que escrevesse por ele uma carta de amor à mãe dos filhos dele.
Perderam-se um do outro há sete anos no Brasil.
Escrevi-lhe a carta, redigi o amor mais azulatlântico de que era capaz, ele ficou muito contente, pagou-me um copo, depois vim-me embora, o domingo tinha acabado, faltavam sete horas para que tudo fosse agora.
(Nota: dias depois, na tarde do feriado do 1º de Maio, esse homem chamou-me da esplanada do Café Paris. Tinha os olhos molhados. Recebera do Brasil um telefonema pela madrugada. Era da ex-mulher. Parece que as coisas se compõem. Vem carta dela a caminho. Como nunca fui ao Brasil, juro que não fui eu que a escrevi.)
II
Já hoje amanheci quanto podia
e ainda agora começou o dia.
Passa na praça um homem de chapéu.
Há quanto tempo não via um homem
de chapéu na cabeça. Por cima do chapéu
abriu ele outro chapéu, o da chuva.
Dois chapéus, um chapéu outro chapéu,
separam aquela cabeça do céu.
E eu, que ando sempre em cabelo,
olho o céu do dia e sei que comecei já
a entardecê-lo.
TÁBUA
I. POSTAL OUTONAL EM MAIO PARA SOFIA BERNARDO ABRUNHEIRO
Viseu, Café Avenida, tarde de 1 de Maio de 2008
II. LAVARÁS E SUBIRÁS
Viseu, Café Mundial, manhã de 23 de Abril de 2008
III. TODAS AS MULHERES E MAIS UMA
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
IV. AVENID’ARDE
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
V. SENTIR A POSSIBILIDADE
Viseu, Café Avenida, várias ruas e Cervejaria Loureiro, tarde de 1 de Maio de 2008
VI. CRIANÇAS AO SOL DA PRAÇA
Viseu, Café Murgeira, tarde de 27 de Abril de 2008
VII. TODA A R., A P. TODA
Viseu, Café Avenida, tarde de 27 de Abril de 2008
VIII. UMAS DUAS
Viseu, Café Paris, tarde de 27 de Abril de 2008
IX. VERSOS EX-MÁQUINA, FUMANDO
Viseu, Café Mundial, tarde de 28 de Abril de 2008
X. ROSAS PARA ALGUM ESPANTO
Viseu, Café Mundial, noite de 28 de Abril de 2008
XI. NARRAÇÃO DOS FINS DE LÁPIS
Viseu, Restaurante Colmeia, manhã de 29 de Abril de 2008, e Café Mundial, à tarde
XII. A LÍNGUA PORTUGUESA NÃO PRECISA DE PESSOAS
Viseu, Restaurante Colmeia, tarde de 30 de Abril de 2008
XIII. DOIS POEMAS
Viseu, Café Penedro da Sé (I) e Café Mundial (II), manhã de 21 de Abril de 2008
******
I. POSTAL OUTONAL EM MAIO PARA SOFIA BERNARDO ABRUNHEIRO
Viseu, Café Avenida, tarde de 1 de Maio de 2008
Que invernes comigo a vida
é quanto quero
pois quero quem és.
Do meu portátil outono particular quero
invernes comigo a vida e a próxima vida.
Tarde primeira de Maio, Viseu, Café Avenida.
II. LAVARÁS E SUBIRÁS
Viseu, Café Mundial, manhã de 23 de Abril de 2008
Lavarás os pés da tua amada
no sabão prolongando o licor
do amor que lhe levas e lavas.
Brancos e menos pedestres que manuais
te surgirão eles da água da chuva
que juntaste no pátio em a madeira da selha
noites e noites a fio ao frio.
Subirás aos amados joelhos que tua amada
ao de leve soergueu ao de leve entreabriu
aí começarás enxugando tuas mãos
aí retornarás a ser aurífero e mesmerizador
nas lácteas coxas que fremem primeiro
depois endurecem como jibóias que precisam
de cerrar tua medula nelas.
III. TODAS AS MULHERES E MAIS UMA
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
I
As mulheres são as coisas mais verticais que conheço.
Não é desculpa que eu conheça poucas coisas.
As mulheres são mais verticais quando deitadas,
quando por elas sobem os homens como salmões:
para darem vida e para morrer.
Os rios são, todos eles, verticais,
mas as mulheres, todas elas, são-no bem mais.
II
Sangra o coração sua especiosa resina, à boca afluem a palavra pinheiro, a palavra sangrar.
Nada disto tem a ver com uma puta pobríssima que agora vi fumando um sem-filtro na paragem do autocarro.
Foi junto ao rio, corria o tempo.
De deslavada gang’azul revestida, era uma mulher pequena de manchas na pele como um leopardo de exílio.
Fumava como antigamente se fumava na televisão e como se fez fotografar o romancista Somerset Maugham (lê-se Móme).
Olhei para ela, impôs-se-me de imediato a urgência de escrevê-la – mas em vez de dizer
a ganga e o fumar,
disse
resina e sangrar.
Que tolos são os poetas, mais que ela
pobríssimos.
IV. AVENID’ARDE
Viseu, Café Avenida, manhã de 28 de Abril de 2008
Uma avenida a um sol de almoço
é a melhor terra de ninguém: nem
manhã é ’inda, nem tarde já.
Suspende-se de si mesmo o tempo vivo
matador.
Mudei de casa, não guardei pão, há muito
não vou a semeá-lo às minhas pombas
de todos, de ninguém.
Avenidiasdas. Deusdarádepãopombas.
Manhãsindas. Suspentardes.
Manchas na pele. Sangra resina:
já ardes.
V. SENTIR A POSSIBILIDADE
Viseu, Café Avenida, várias ruas e Cervejaria Loureiro, tarde de 1 de Maio de 2008
Esta manhã senti a possibilidade de a morte me entrar pela casa do corpo, tomar-me a casa toda do nada do corpo.
Não tive medo.
Mexi-me pouco, dei água à gata, logo fez sol na rua, saí para a edição de praças atadas por ruas.
O coração físico batia-me com dois punhos no latão do peito, a garganta repetia-me o coração dobrado, nada pude escrever.
Fez hoje trinta e sete anos que a minha irmã Xelinha se casou com o Zé; e o meu irmão Carlos com a Gracita.
No almoço do casamento, que foi na Rua do Carmo, em Coimbra, bebi laranjada Cruzeiro.
Toda a gente era viva – e o futuro era a parte imediata à ponta dos meus sapatos.
A Sofia nasceu em Fevereiro desse ano, não tinha portanto sequer três meses quando eu já bebia laranjada Cruzeiro.
Sou talvez um homem agora.
Sou este homem, talvez, que ama como odeia: sempre totalmente, magnificamente sempre.
A Língua Portuguesa é uma das pessoas que mais amo, por exemplo.
Tenho dois homens (ambos Correia, mas nada um com o outro) que também amo: o Adelino e o Rui.
Eu faço a casa da minha vida com pedras destas.
A casa do meu corpo é muito mais precária do que a casa da minha vida.
Eu sei.
Também sei odiar.
Odeio as pessoas cobardes.
Odeio as pessoas cobardes e os campeões morais.
Também odeio os maus poetas.
Odeio os maus poetas porque amo o Pessanha, o Cesário, o Pessoa, o Ruy B.
Nem imagino o que tiveram de viver (ou que possibilidades sentiram) por dentro para nos deixar aqueles livros terríveis, pânicos, cósmicos, portugueses.
Saí do Café Avenida no fim do primeiro parágrafo e vim ter à Cervejaria Loureiro.
Não tinham laranjada Cruzeiro, bebi outra coisa.
A caminho, fumando um cigarro lento, vi uma árvore maravilhosa.
Explodia na luz da tarde como uma ideia boa.
Ainda explode, ainda é de tarde, há sol neste Primeiro de Maio de trinta e sete anos depois.
Agora não estou a morrer.
Penso com brandura nos meus mortos e nos meus vivos.
Sei de cor as mãos de todos eles, mais que as minhas sei.
Quero sempre entregar a parte do meu coração que não esteja doente.
Estas palavras entregam essa parte.
Ontem à noite, sozinho na Praça de D. Duarte, vi um energúmeno aterrorizar o próprio filho, um menino que a besta arrastava pela mão.
Depois, encontrei o Manel da Paula e comentámos aquilo.
Fomos ao Café Mundial e nenhum de nós bebeu laranjada Cruzeiro.
Quando pude, vim-me embora.
A noite esperava-me trancada em casa.
Fui um homem no escuro como um menino.
O meu Pai habitava as notas a lápis que me deixou em dois volumes de L’Illustration, Journal Universel (1843-44).
Dei água à gata.
Deitei-me no sofá e esperei a manhã para sentir a possibilidade.
VI. CRIANÇAS AO SOL DA PRAÇA
Viseu, Café Murgeira, tarde de 27 de Abril de 2008
O Sol convocou as crianças para a praça.
Uma, de cabelo de ouro, repete o Sol na cabeça.
É de olhos claros outra, a cuja superfície
o Sol faísca como às vezes no mar.
É uma hora cheia. Gosto da gravidade
com que brinca esta gente de aguda idade.
Parecem-me patos, mas são homens e mulheres já.
Só não brinco com elas porque não tardaria
a aborrecê-las com coisas adulteradas pela poesia.
Prefiro ficar a vê-las, como o Sol estrelas.
’inda no outro dia, ido ao funeral do pai
de um amigo, nos senti a todos
como crianças envelhecidas de mármore.
O sangue porém pára, o rio não.
Arde a tarde e tudo arde, serão
combustíveis também as crianças,
arderá delas a infância?
Sim.
Frequento as ruas escurecidas pela chuva,
mesmo que Sol faça.
Mas hoje parei o meu rio e vim
ver solares crianças à praça.
VII. TODA A R., A P. TODA
Viseu, Café Avenida, tarde de 27 de Abril de 2008
O infinito a que tive acesso era rosa-púrpura.
Ia de avião entre o nada do Sal e o nenhures de Lisboa.
Olhei pela janela o infinito, comoveu-me morrer e estar vivo.
É tão bonito, tão desumano – o infinito.
Era na noite altíssima, as pessoas dormiam, eu não pude.
Soube de imediato que tudo pertencia ao mesmo instante.
Era rosa-púrpura, o instante, e eu pertencia-lhe.
Estava para escrever: Era pelo fim de Julho de 1997:
mas que importam um nome, um número?
Nem o meu nome disse, que tanto canta e nada conta.
Suspenso na infinita cama de puríssimas purpuríssimas nuvens,
conferi das estrelas as gambiarras diamantinas.
Tanta beleza dispensava até o assomo de felicidade.
Por instante(s), pude não ser um homem, mas um olhar.
Não uma máquina digestiva, não um animal lírico, mas um olhar.
Porque olhei e vi, pude.
Rosipurpurou-se-me o rosto e tudo o resto.
Aquilo não era a morte, não era a vida.
Era o infinito além-terra, além-casulo.
Não era o pretérito futuro da vida.
Não era a paz podre da morte.
Era todo o não-ser: o reverso da alma.
Não vi anjos como cá em baixo.
Vi o vazio de Deus.
Achei estranho que o infinito precise, como nós, de beleza.
Isso estranhei.
Conformei-me e segui comovendo-me, porém.
Nenhum vento havia, nem sol algum fazia na sideral solidão que me siderava.
Não era uma solidão de café.
Não era a solidão banal do versilibrista de café.
Era uma coisa infinitamente maior que ser triste.
Era a recompensa da morte com o nascimento.
Não era ter-de-ganhar-ter-de-gastar dinheiro.
Não era um vão palavreado vãmente dito a uma musa vã.
Era como o mais absoluto domingo.
Nuvens e nuvens e nãovais e nãovais:
toda a rosa, a púrpura toda.
VIII. UMAS DUAS
Viseu, Café Paris, tarde de 27 de Abril de 2008
I
Nunca a tempo vivi do meu tempo
a tempo morrerei
como todos nós vós.
Temos tempo.
II
Tenho
umas duas
mãos.
III
A pouco e pouco diminuem as ruas e o domingo
as pessoas que passam. As pessoas passam.
Passa-as o tempo movedor do domingo.
Cada manhã de domingo mostra numa mão
a eternidade. Com outra no-la rouba e é nocturna.
Mudam as pessoas móveis de sítio nas casas esconsas.
Não esconso é o tempo que as muda, às pessoas.
Cafèzitos lamparinam grutas nas trevas.
Cheira a azeite e a mulheres velhas.
O rio oleia pedras, as pombas petrificam-se de sono.
Toda a tarde o sol respirou incêndio brando
nas árvores possíveis do outono da vida
embor’abril seja. Em armadas esplanadas
a cerveja dos senhores maridos, o ai-se-ti
das senhoras esposas, os gelados das crias framboesas.
Mas agora é a noite – e sempre é ontem
quando se faz noite. Acaba-nos tanto
o domingo quanto nos começou
(mostra-nos numa mão, rouba-nos com a outra).
Há livros em casa, as pessoas deveriam ler viagens
por outras feitas, a pouco e a muito e a nada e a pouco.
IX. VERSOS EX-MÁQUINA, FUMANDO
Viseu, Café Mundial, tarde de 28 de Abril de 2008
I
Se me fosse dada a certeza de só mais doze anos
ter de vida, arranjar-me-ia
hoje mesmo um cão por companhia.
E ele me seria, finalmente, um cão eterno
– como o que tive, como o que fui.
II
Se me fosse dada a certeza de ainda só ter doze anos.
III
Aos doze anos, lembro-me perfeitamente, eu,
nós.
IV
A máquina do tabaco vigia a calma da tarde.
A tarde é calma, há tabaco na máquina.
A mercearia expõe laranjas de rua
como os pintores de rua, pinturas.
Os mosaicos do chão têm cristos cifrados.
É preciso estar com febre para ver os cristos.
Em todas as ruas há vários sítios com máquinas de tabaco.
Em todas as máquinas há várias ruas.
Uma pessoa pode adquirir uma rua uma máquina.
Uma pessoa pode ser uma máquina.
Se tiver sido casada, uma pessoa pode ser uma ex-máquina.
Se agora não for, amanhã pode ser.
Se agora não for, amanhã pode ir.
Se agora não for, ontem pôde ir.
Se agora não for, ontem poderá.
A máquina do tabaco vigia nas calmas.
Almas antigas encruzilham enforcados novos.
As laranjas não envelhecem.
As máquinas envelhecem.
As máquinas obsoletam-se.
Fumar não envelhece.
Uma pessoa fuma. Envelhece à parte.
Uma pessoa fuma de olhos por exemplo nuvens.
As nuvens denunciam os fumadores maquinistas.
O sol torra as nuvens de laranja
como os pintores, as pinturas.
Há mulheres que frequentam as máquinas de tabaco:
ranhura contra ranhura.
As luzitas do comércio assinalam os destinos.
Às seis da tarde há muitas pessoas a querer morrer.
Às dez da manhã nem tanto.
Os fumadores e as fumadoras são nefelibatas.
Os fumadores e as fumadoras são lunambulantes.
Os fumadores e as fumadoras são vigiados-as
pela máquina de tabaco ao canto.
Os fumadores e as fumadoras são vigiados
pelo canto.
Para ter febre é preciso estar máquina de cristos.
V
(idem, Café O Bárbaro)
Levo o lume à boca.
Levo a boca ao lume.
Levo lava.
Lava leva-me.
VI
O fumador precisa de ser contemplado em esplanadas.
O fumador precisa de ser contemplado com esplanadas.
O fumador precisa de ser contemplado.
Trouxeram o milho, a batata, o tabaco damérica.
(aqui entra a concertina para acompanhamento das ROSAS PARA ALGUM ESPANTO)
X. ROSAS PARA ALGUM ESPANTO
Viseu, Café Mundial, noite de 28 de Abril de 2008
São rosas de espanto
de Nossa Senhora
que no céu lavoura
p’ra maior encanto.
Não meu é maior
espanto tido só
que só é que é
a só si menor.
Pombas redactoras
da praça do pão
pagam solidão
águias lavradoras.
E o que não há
nunca foi terá
perdi quem me tinha
mas minha será.
Será na memória
ouro de lembrança
tango valsa dança
esqueciment’ istória.
D. Afonso Henriques
sua mãe Teresa
fiques ou não fiques
goza a incerteza.
São rosas de espanto.
Rosas D. Dinis
que quem isto diz
di-lo por enquanto.
(repetir a estrofe final)
XI. NARRAÇÃO DOS FINS DE LÁPIS
Viseu, Restaurante Colmeia, manhã de 29 de Abril de 2008, e Café Mundial, à tarde
Somos a pouca voz do pouco tempo.
Se morrermos agora, vamos só ser amados depois.
Não vamos poder amar.
Já dormi sobre areia.
A chuva acordou-me.
Preparo a terra.
Ainda chove.
Os senhores da televisão do boletim
disseram.
Os carteiros dizem palavras escritas.
As vacas suam leite.
A temperatura entristece certas pessoas.
Tenho a vida ao lado como se ela fosse
um guarda-chuva.
A grande beleza das árvores não nos deixa viver.
A mim não me deixa viver.
O meu Pai afiava os lápis até ao fim.
O meu Pai terminava os lápis antes dele.
Há bocaditos desses por toda a casa ainda
e os chinelos dele.
Caiu-me a pele.
Caim Abel.
Na boca vivem o cuspo e a poesia.
No mapa de cada rosto
um país perdido.
(aqui volta a concertina)
A bela brandura
o caminho vão
a doce amargura
visita o serão
que manhã tão fina
hoje visitou
quem somos quem sou
menino menina
casca de laranja
pico de morango
coração mostrengo
um rubi de ginja
ruas de Lisboa
ao entardecer
vida não é boa
pior é morrer
pior não viver
quanto a vida dá
o viver é já
já que há morrer
Mondego suave
aos pés da criança
e uma azul ave
pintada em faiança
terna tenra tua
a visitação
amanhece a rua
e o coração
dedos de menina
bola de sabão
uma condição
a ambas destina
existência pouca
essência revã
a noite é rouca
rouca a manhã.
(cala-se a concertina)
XII. A LÍNGUA PORTUGUESA NÃO PRECISA DE PESSOAS
Viseu, Restaurante Colmeia, tarde de 30 de Abril de 2008
No peito está o coração incrustando o pensar.
Na galeria estão os mortos mui amados.
O corpo fala-nos um dia.
O corpo falha-nos um dia.
Só amamos mortos – não amamos o corpo.
Choramos como chuveiros como palhaços.
Depois enxugamo-nos.
Nós preparamo-nos.
Eu amo. Não queria mas amo.
Amo muita gente que é de mármore.
Duas datas e um amor por cada uma.
Amo gente que acontece sem ser.
Eu amo a Língua Portuguesa.
Acho-a bonita.
Acho-a bonita como uma mulher que passa
uma árvore que fica.
Ela não precisa de mim.
A Língua Portuguesa é como uma rua
que o sol molha.
M’olha a Língua Portuguesa.
Ela olha-me.
Ela é tão bonita.
Era a língua do meu professor primário.
É a língua dos meus amigos.
Ela pensa às vezes sozinha.
A Língua Portuguesa não precisa de pessoas
para pensar.
Para se incrustar.
Para nos amar o corpo sem pensar em nós
o corpo
de que se serve
para ser
serve ser
ser serve vê
no peito.
XIII. DOIS POEMAS
Viseu, Café Penedro da Sé (I) e Café Mundial (II), manhã de 21 de Abril de 2008
I
Sete da manhã, homens antigos dispersos pela cidade.
Praças nuas à chuva muito fria.
Beleza e espera: a vida segunda-feira-se.
Ajudo o dia a nascer: uso os olhos para ajudá-lo.
Espero que o dia me encha de pureza o coração.
Carrego o livro, ando na neve.
Ontem à noite, num dos cafés da minha vida da minha noite, um homem pediu-me que escrevesse por ele uma carta de amor à mãe dos filhos dele.
Perderam-se um do outro há sete anos no Brasil.
Escrevi-lhe a carta, redigi o amor mais azulatlântico de que era capaz, ele ficou muito contente, pagou-me um copo, depois vim-me embora, o domingo tinha acabado, faltavam sete horas para que tudo fosse agora.
(Nota: dias depois, na tarde do feriado do 1º de Maio, esse homem chamou-me da esplanada do Café Paris. Tinha os olhos molhados. Recebera do Brasil um telefonema pela madrugada. Era da ex-mulher. Parece que as coisas se compõem. Vem carta dela a caminho. Como nunca fui ao Brasil, juro que não fui eu que a escrevi.)
II
Já hoje amanheci quanto podia
e ainda agora começou o dia.
Passa na praça um homem de chapéu.
Há quanto tempo não via um homem
de chapéu na cabeça. Por cima do chapéu
abriu ele outro chapéu, o da chuva.
Dois chapéus, um chapéu outro chapéu,
separam aquela cabeça do céu.
E eu, que ando sempre em cabelo,
olho o céu do dia e sei que comecei já
a entardecê-lo.
3 comentários:
O maior medo de todos quantos há "A noite esperava-me trancada em casa.", Daniel.
E rosnadelas destas, são grandes rosnadelas...
"A casa do meu corpo é muito mais precária do que a casa da minha vida."
Certamente.
Manuel
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