20/05/2008

XVII POEMAS PARA MAIS UMA NOITE UM DIA MENOS





Viseu, 15, 18 e 19 de Maio de 2008



I

Sou o gajo que pensa em ti à mesa do canto.
A tua nudez muito branca embranquece-me as têmporas.
Entre dois dedos esquerdos tremo a tocha olímpica do cigarro.
Há sinais escritos nas paredes, repito-mos na cabeça.
Há mais de quarenta anos que não falo com alguém.
Transporto uma monarquia fechada no coração.
Acumulo visões de pátios com anjos de pedra também nus.
Sei: nascemos para ser bronze e morremos de lata.
Ninguém acredita que eu levite pelas ruas vazias:
’inda esta manhã assim foi.
Vejo-nos escurecer muito, oxidados de chuva entr’árvores.
Caudaloso e turvo é o rio da minha monarquia nascido.
A tua mudez muito branca embranquece-me as têmporas.
Penso em ti, dou-te rosas pluviais, pão às pombas.
Conheço uma loja com tratamento para o vinho,
nunca lá entrei.
Corre o mês de maio – e eu parado em novembro.
O ar é frio, o ferro dorme na boca.
Tenho alguns dentes que se me estragaram como alguns dias.
Um dia destes vão telefonar-te,
dizer-te que eu
finalmente.

II

Uma vez, antes de ti, eu amava uma pessoa muito poderosa.
Não era uma mulher, não era um homem: era
uma pessoa muito poderosa, era
um cão amarelo.

Guardo em casa todas as ruas.
Guardo em casa todas as ruas
por que o meu corpo se prometeu
ao teu.

Este não é um poema erótico.
Este não é um poema herético.
Acredito no deus dos pássaros, no deus imanente
ao pão da gente.
O amor dos nossos pais não é foder.
O meu por ti também não.

Sou o rapaz envelhebranquecido à mesa do canto.
Chove neste caderno como na rua.

Dizer-me que tu
inicialmente.

III

Da montanha atirei o sermão da minha sombra.
A minha sombra é ser mão que escreve.
Estou sentado dentro da minha cabeça
a um canto.

Parto as minhas unhas com este vidro.
Conheço todos os animais.
Todos os animais nos olham nos olhos.
Eles garantem-nos a temperança, a liquidez,
a liquidação do tempo.

Poemas são linhas que, ao contrário da vida,
não chegam ao fim
da linha.

A tristeza é uma forma de profissionalismo:
perder a vida é ganhá-la.

A minha Irmã vestida de verde à janela:
recordo a um canto.

Estou na montanha embora isto seja um bar.
Não estou no mar embora isto seja um barco.

IV

A minha Irmã vestida de verde à janela.
A brisa interior do coração dela dando leve nos cortinados.
Os retratos por toda a casa escrevendo rostos.
Os livros rangiam coisas de cidades estrangeiras.
Eu não sabia ler ainda, eu lia a minha Irmã.
Eu ainda não ia morrer.
O Campo do Bolão aluminiava-se das cheias de inverno:
como muitas águas de muitos olhos.
O Monte do Picoto cheirava a espargos e a musgo.
Eu era um cão amarelo muito poderoso.
Depois aprendi a ler e a vida estragou-se-me como um dente.
Escrever estas mortalidades banais tornou-se-me imperioso.
Súbito súbdito da monarquia do meu coração me volvi
e não voltei.
Moro numa casa cega, tenho de versejar janelas,
não é um trabalho fácil, querida.
A alegria é-me bissexta, entristecem-me sempre
os vintinoves de fevereiro.
Quando amo é que é bom.
A Gracita traz nozes e presunto e maçãs para a mesa,
o Carlos trata por tu a matéria da vida,
os filhos deles ajardinam de risos a hora pura,
eu gosto de nozes, de presunto, de maçãs.
A minha Irmã é a maçã verde à janela.

V

Os nossos deuses não frequentam os urinóis públicos.
Os nossos deuses são muito mais desumanos do que nós.
Gostam de receber em géneros: rosas, velas, imprecações,
agonias e aflições – mas nada nos descontam para
nossas aposentações.
Os nossos deuses são tão filhos-da-puta ou mais
do que alguns de nós.
Eu, como vós, venero os nossos deuses.
Em vão frequento, e publico, os urinóis:
só vejo homens de murchas pilas urinando os pés
aos nossos deuses.

VI

Gosto muito de ver o primeiro-ministro na televisão
a ser feliz sozinho.
A felicidade é uma coisa que se usa contra todos os outros
– e todos os ministros, primeiros, segundos ou de terceira categoria,
são do contra
a gente.
Gosto de conferir a arrogância tecnológica dele,
a evidência de nunca ter, ele, lido um poema
de Sá de Miranda, uma deixa de Santareno,
um instante autognóstico de Pessoa
fixado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.
Não tenho problema algum com o nosso primeiro.
Até gosto dele quando ele é feliz sozinho.
Quem me dera ser como ele é, sozinho.
Eu não deveria ser sozinho contra
mim,
mas sou – por causa do
Sá de Miranda, do
Santareno, do
Georg Rudolf Lind.

VII

Na minha terra
o vento respira árvores
o rio bebe areia
as mãos não tocam as mãos
os cães atropelam os carros
os gatos envenenam a solidão
os anos tornam-se fragas pessoais.

Na minha terra
as crianças reduzem as horas a instantes
as crianças rosificam orvalhos a diamantes
as crianças são imortais enquanto não homens não mulheres
as grafonolas tocam valsas adoçadas da cor do chá
e a solidão da pessoa é a pessoa que é e que há
e a solidão que há é a pessoa que é.

Na minha terra
nem todo o Amor de Mãe é Angola-1967
nem todo o pai sobe a ser Pai
o pessegueiro é a capital do pátio é a capital da infância
e entre o amor e o amar
garant-t’ eu
vai uma enorme distância.

Na minha terra
a minha boca enche-se da minha terra
os meus olhos são da minha terra cheios
pombas zunem chumbo como eclesiásticas entidades
cães tutanam o osso nosso de cada dia
gatos sonham com andorinhas
e todas as terras são nossas e minhas.

Na minha terra
o sal dos homens é de lírios no campo
molhados de água de olhos olhados pela terra
que como rio os beberá de areia
dando árvores o vento como leves cortinas
apartadas por minha Irmã
de intacto hímen no coração.

Na minha terra
há muita virgindade à solta
como cavalos feitos de couro e de vento
como árvores respiratórias bebendo a areia do tempo
e de versos
na minha terra
há muitos versos muitas respirações sós.

A minha terra
é feita de todas as terras a que nunca fui
onde nunca nasci
eu sou tão da minha terra como um cacho de espargos
um olho de musgo
a cor amarela de um cão
a cor do meu Pai a partir dos olhos

na nossa terra
esta única terra.

VIII

Acho mais piada a morrer
do que a perder um irmão.
Perder sempre foi pior um irmão
do que ser.
Eu acho piada a morrer.

IX

Toca devagar o meu peito evanescente:
sou feito de vaporizações de fontes, como toda a gente.
Eu, desculpa, não fodo: nunca fodi.
Já amei um pouco, um pouco já cri.
Agora, toca um pouco o meu peito devagar
evanescente.
Eu sou este tu.
Eu sou toda a gente.

X

Hoje não vou morrer tanto como ontem.
Tenho um disco da Annie Lennox.
Marés afectuosas marulham-me o coração.
E tenho dois euros no bolso da chave de casa.

Eu sei fazer quadras quase populares.
Venero os meus santinhos, bebo a minha ginjinha.
A minha sobrinha conhece-me os olhos.
Conheço-a eu de trigo ao sol: é ela muito ouro.

Tenho dois euros e sou riquíssimo.
Uma auréola furta-cores nimba-me a cabeça romana.
Não dou troco a trocos.
Amo meia-dúzia de gajos e gajas, sou feliz.

Hoje não vou morrer tanto.

XI

O céu é cinza, são azuis as pessoas.
Tenho a vida entre dois dedos esquerdos, fumo-a olimpicamente.
Conheço a merda, conheço a rejeição.
Sou um homem perante um rio – e rio dentro.

XII

A montanha tinha hoje pelo entardenoitecer um duplo poderoso: o castelo de nuvens fumando chumbo muito mais do que ela alto e leve.
Todo o caminho subia entre arvoredos de verde líquido, cuja visão humedece os olhos de involuntária comoção.
Usei quanto menos pude o coração.

Devo ter procedido bem, posto que, posto o sol, o arrebol me arredorizou o sossego.
Não digo a tranquilidade, digo o sossego, essa quietude dos tristes ante montanhas, perante nuvens, diante de líquido arvoredo.

Posso dizer isto, agora.

Descontando meia hora solar, pela tarde, todo o dia amanheceu como acabou: o ar cor da água de sabão, perigoso cromo que leva ao abuso do coração.
Ainda assim, não abusei, fui prosaico.
De cada minuto fiz um mosaico.
Vivi sem sombra, não havia sol, nada me duplicava senão a modernice d’armar ao arcaico.

A noite chegou carregada de rubis traseiros de automóveis.
Uma praça vazia chamou-me pelo nome, eu fui.
Havia uma fonte cantando, esvaziando-se toda de música para peixes nenhuns.
Distingui perfeitamente a matéria da vida na antimatéria das águas que sem pés tudo correm e sem mãos tudo tocam e sem olhos tudo vêem.
Nisto, tocou o sino de alguma igreja feita de giz no negro pulsado a vermelho de rubis traseiros.

Tiro-me do silêncio, usando não o coração mas a mão direita:

posso fazê-lo, agora.

Entro convosco na maior noite, convosco saio do dia menos.
Isto não tem mal, isto não tem bem.
Somamos agoras para um nunca perfeito:
nunca mais jamais é menos que nunca.

XIII

Conheço por fora o homem dos cães de todas as ruas
de todas as cidades do nosso país de homens
algemados a cães em suas deles
homens e cães
eternas não ternas noites.

Do outro lado do olhar mulheres vêem passar
cães e homens enquanto fumam esperando homens
que à cão as devorem por trás nas noites
de aluguer.

Conheço por fora todo o cão todo o homem toda a mulher.

XIV

Faço poucas vezes a barba para não andar sempre
com pena de mim.
Prefiro de longe as quartas-feiras europeias,
como é costume chamar às quartas-feiras portuguesas
em cafés com sport-tv e minis duras e frias
tais diamantes.

Ponho um disco da Annie Lennox e deixo-me
ir na imaginação do marinheiro com uma mulher
como ela
cantando na espera dele,
que eu nunca sou,
faça ou não faça,
qual marinheiro,
poucas vezes a barba.

XV

Fui já a vários sítios de si mesmos vários
cada vez que mais o tempo os difere do que foram
e os fere do que serão.

Fui já a avenidas frias descoloridas
a que presidiam gares rodoviárias e putas várias
as mesmas sempre afinal repetidas
entre rodoviárias e avenidas.

Fui já muitas vezes a casas cuja capital é o gato
o retrato do falecido sobre naperon
a votiva vela ao Irmão Doutor Sousa Martins
o estuque do tecto rendado a querubins
e um olor de sacristia que bafo de cozinha
me tornava o ter lá ido a mor coisa comezinha.

Fui já à Noruega e à Argentina em livros
que não recordo porque leio para não escrever para não viver
não para mais saber do que sabia já
quando lá fui
(tenho de falar disto ao Rui).

Fui já tudo aonde nunca fui.
Mas nunca fui outro homem:
nem quand’agora menos moço
nem quand’outrora mais jovem.

XVI

Lembrar é saber amanhã.
Também não há-de ser agora.

XVII

Rouba-me o pensamento a visibilidade de homem natural.
Não nobiliárquico, sequer autárquico, de Portugal infante,
é-me mais do que a boca o olhar falante.

De viço o mais normal, nunc’acima da média,
tenho saídas da vida como entradas de enciclopédia.
No mais, não menos que os os demais. Tal e qual.


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Canzoada Assaltante