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1. Rosário Breve - 52
(http://www.oribatejo.pt/)
UM ANO
Ando aqui a engonhar-vos a paciência há um ano com crónicas pseudopoéticas que ao mais anjo rasam a paciência e ao mais santo arrasam a pachorra. Ando. Quando, no fundo e na verdade, deveras e de facto, sou um gajo sozinho, vestido de preto e sentado no café a ver televisão.
Confesso que ainda tiro do saco o meu Sófocles, o meu Rilke, o meu Greene e o meu Ruy Belo (S. João da Ribeira, Rio Maior, 1933 – Queluz, 1978). Tiro-os do saco e deponho-os no mármore frio e redondo da mesa do café. Visto de lado, pareço uma livraria. De frente, um alfarrabista. De costas, nem vos conto.
Mas, no fundo e na verdade, deveras e de facto, sou o gajo que segue, pedalada a pedalada, na televisão pública, a velocipédidiótica peregrinação ciclista do Jorge Gabriel a Fátima. Isso e a morte da namorada do João Malheiro. Isso e as pregas geodésicas do pescoço mais cartográfico do nosso pequeno e não admirável mundo, Lili Caneças. Isso e os assomos de dignidade, assim de repente, da Merchè Romero. Isso e o Diogo Infante e a Catarina Furtado, coitado do pai Joaquim, que até é jornalista a sério. Isso e a bicicleta do lustral Jorge Gabriel, neto mai-lindo das avós do mundo todo, Lili Caneças inclusa.
Às vezes, tenho tanta pena de mim próprio e mesmo, mas tanta, que até me apetece ir viver, sei lá, para Santarém.
Lembro-me do Ájax sofocliano. Do Brigge rilkeano. Do homem de palavra(s) beliano (S. João da Ribeira, Rio Maior, 1933 – Queluz, 1978), de que aqui falaremos, juro, em Agosto, neste mesmo jornal.
Sou o gajo vestido de preto num café ante a televisão. Catarinofurtado-me. Vimaranensobarbarizo-me. Só não quero que as minhas duas filhas resultem naquilo de bicicleta. Eu não tenho bicicleta. Tenho todo o pundonor, estranha e quase não portuguesa palavra.
Tenho rugas no pescoço. Mas há um ano, faz hoje, que jogo nO Ribatejo, jornal da cidade do União de Santarém. E o ex-gajo da Romero, o Cristiano Ronaldo, joga apenas no União de Manchester.
UM ANO
Ando aqui a engonhar-vos a paciência há um ano com crónicas pseudopoéticas que ao mais anjo rasam a paciência e ao mais santo arrasam a pachorra. Ando. Quando, no fundo e na verdade, deveras e de facto, sou um gajo sozinho, vestido de preto e sentado no café a ver televisão.
Confesso que ainda tiro do saco o meu Sófocles, o meu Rilke, o meu Greene e o meu Ruy Belo (S. João da Ribeira, Rio Maior, 1933 – Queluz, 1978). Tiro-os do saco e deponho-os no mármore frio e redondo da mesa do café. Visto de lado, pareço uma livraria. De frente, um alfarrabista. De costas, nem vos conto.
Mas, no fundo e na verdade, deveras e de facto, sou o gajo que segue, pedalada a pedalada, na televisão pública, a velocipédidiótica peregrinação ciclista do Jorge Gabriel a Fátima. Isso e a morte da namorada do João Malheiro. Isso e as pregas geodésicas do pescoço mais cartográfico do nosso pequeno e não admirável mundo, Lili Caneças. Isso e os assomos de dignidade, assim de repente, da Merchè Romero. Isso e o Diogo Infante e a Catarina Furtado, coitado do pai Joaquim, que até é jornalista a sério. Isso e a bicicleta do lustral Jorge Gabriel, neto mai-lindo das avós do mundo todo, Lili Caneças inclusa.
Às vezes, tenho tanta pena de mim próprio e mesmo, mas tanta, que até me apetece ir viver, sei lá, para Santarém.
Lembro-me do Ájax sofocliano. Do Brigge rilkeano. Do homem de palavra(s) beliano (S. João da Ribeira, Rio Maior, 1933 – Queluz, 1978), de que aqui falaremos, juro, em Agosto, neste mesmo jornal.
Sou o gajo vestido de preto num café ante a televisão. Catarinofurtado-me. Vimaranensobarbarizo-me. Só não quero que as minhas duas filhas resultem naquilo de bicicleta. Eu não tenho bicicleta. Tenho todo o pundonor, estranha e quase não portuguesa palavra.
Tenho rugas no pescoço. Mas há um ano, faz hoje, que jogo nO Ribatejo, jornal da cidade do União de Santarém. E o ex-gajo da Romero, o Cristiano Ronaldo, joga apenas no União de Manchester.
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2. Crónica Mundial - 2
PASSEIO E PASSO E FICO
Passeio e passo, todos os dias muito cedo, por Viseu.
O meu trabalho é recolher olhos. Deveria dizer, bem mais correctamente, recolher olhares. Então, digo: passeio e passo, todos os dias muito cedo, por Viseu, o meu trabalho é recolher olhares.
No cemitério da cidade, recolhi o olhar de Luís Miguel Nava. Recolhi também os do talhão militar, esses olhares finalmente em paz depois da maior guerra – ter vivido.
No Café Paris, ao cabo do mundo e ao cabo de Viseu, brasileirei instantes migratórios como andorinhas, não sabendo eu, como nunca sei, se há ou não andorinhas no Brasil.
No Rossio, acolhi-me à grácil e lábil rataria das pombas munícipes, migando o columbófilo pão que me sobra dos jantares com a minha senhora.
Na Cervejaria Loureiro, comi lulas grelhadas, cujo molho verde me acordou para sempre o vivo palato e a língua gustativa.
Eu passeio, eu passo. Passeio e passo na recolecção de olhos. Verdes. Azuis. Castanhos. Negros. Cinzentos. E brancos. Um dia, brancos.
Há olhos brancos em Viseu, não sei se neles reparastes vós já. Passam como nós as alheias pessoas que passam. Vindas vidas, avenidas vindas, passadas e passeadas. O trabalho de toda a pessoa é ver e é viver.
Desta página vos olho – e viseense é já, também ele, o eu do meu olhar. Vou pela Formosa, corto à Direita, sei da Serpa Pinto, nunca me engano na António José de Almeida, sei onde é a Escura (olha-me se não soubesse…), tenho tempo até à Homem Ribeiro.
Ando a pé em Viseu como desde sempre na minha vida.
Passeio e passo, conheço, reconheço e não esqueço.
Viseu aqui é.
Aqui fica.
Passeio e passo, todos os dias muito cedo, por Viseu.
O meu trabalho é recolher olhos. Deveria dizer, bem mais correctamente, recolher olhares. Então, digo: passeio e passo, todos os dias muito cedo, por Viseu, o meu trabalho é recolher olhares.
No cemitério da cidade, recolhi o olhar de Luís Miguel Nava. Recolhi também os do talhão militar, esses olhares finalmente em paz depois da maior guerra – ter vivido.
No Café Paris, ao cabo do mundo e ao cabo de Viseu, brasileirei instantes migratórios como andorinhas, não sabendo eu, como nunca sei, se há ou não andorinhas no Brasil.
No Rossio, acolhi-me à grácil e lábil rataria das pombas munícipes, migando o columbófilo pão que me sobra dos jantares com a minha senhora.
Na Cervejaria Loureiro, comi lulas grelhadas, cujo molho verde me acordou para sempre o vivo palato e a língua gustativa.
Eu passeio, eu passo. Passeio e passo na recolecção de olhos. Verdes. Azuis. Castanhos. Negros. Cinzentos. E brancos. Um dia, brancos.
Há olhos brancos em Viseu, não sei se neles reparastes vós já. Passam como nós as alheias pessoas que passam. Vindas vidas, avenidas vindas, passadas e passeadas. O trabalho de toda a pessoa é ver e é viver.
Desta página vos olho – e viseense é já, também ele, o eu do meu olhar. Vou pela Formosa, corto à Direita, sei da Serpa Pinto, nunca me engano na António José de Almeida, sei onde é a Escura (olha-me se não soubesse…), tenho tempo até à Homem Ribeiro.
Ando a pé em Viseu como desde sempre na minha vida.
Passeio e passo, conheço, reconheço e não esqueço.
Viseu aqui é.
Aqui fica.
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3. Contra os Canhões - 7
CRÓNICA (DE)VIDA
A vida, às vezes, é quase tão bela quanto estar vivo. O paradoxo é apenas aparente: vida e viver não são sinónimos, até porque substantivos e verbos raramente coincidem.
Vem esta filosofice toda a (des)propósito de eu estar vivendo uma bela manhã. Como sempre, levantei-me muito cedo. A gata rondou-me os pés nus a caminho da banheira. Fiz-lhe uma festa em retorno da que ela me fazia, dei-lhe água e de comer. Ela agradeceu-me com aqueles olhos fendidos na vertical dos gatos, quais esmeraldas domésticas. Tomei banho, saí. Era tão cedo, que nem Deus havia nascido. No café, café tomei e escrevi uma coisa em treze estrofes rematadas por um versículo final que propõe às pessoas em geral a insensata beleza da troca de rosas. De modo que fui feliz por quase uma hora.
Depois, a Paula Sofia telefonou-me, disse-me que a Sílvia estava à espera da crónica para o jornal, ai como se chama o jornal, Região, acho, Região de Leiria, é isso. Estou sentado no promontório da minha vida a escrevê-la, se calhar é esta, esta crónica, esta crónica vida minha, vossa.
Acho sempre muita graça ao que as palavras fazem da vida. Muito mais graça acho, e perco, quando a vida, como esta manhã me sucedeu, me troca as voltas por rosas. Provas? Imaginai-me aqui há recentes dias: no correio electrónico, uma saudação do Tó-Zé Laranjeira; um abraço aniversariante (a 8) do Carlos S. Almeida; um códice discreto da A.; uma flor retórica da Patrícia Duarte; um telefonema também discreto-secreto do Francisco Santos, por isso não posso dizer o nome dele; e a notícia de que a nascitura (vestígio último do latino particípio futuro) Maria Leonor vai, nascendo, instituir o Verão.
Sim, é a vida, às vezes.
Eu posso fazer isto. Eu sou capaz de fazer isto. Eu sou só capaz de fazer isto: estar vivo dá muito trabalho, sobre tudo por causa da vida. Ai como é que se chama o.
A vida, às vezes, é quase tão bela quanto estar vivo. O paradoxo é apenas aparente: vida e viver não são sinónimos, até porque substantivos e verbos raramente coincidem.
Vem esta filosofice toda a (des)propósito de eu estar vivendo uma bela manhã. Como sempre, levantei-me muito cedo. A gata rondou-me os pés nus a caminho da banheira. Fiz-lhe uma festa em retorno da que ela me fazia, dei-lhe água e de comer. Ela agradeceu-me com aqueles olhos fendidos na vertical dos gatos, quais esmeraldas domésticas. Tomei banho, saí. Era tão cedo, que nem Deus havia nascido. No café, café tomei e escrevi uma coisa em treze estrofes rematadas por um versículo final que propõe às pessoas em geral a insensata beleza da troca de rosas. De modo que fui feliz por quase uma hora.
Depois, a Paula Sofia telefonou-me, disse-me que a Sílvia estava à espera da crónica para o jornal, ai como se chama o jornal, Região, acho, Região de Leiria, é isso. Estou sentado no promontório da minha vida a escrevê-la, se calhar é esta, esta crónica, esta crónica vida minha, vossa.
Acho sempre muita graça ao que as palavras fazem da vida. Muito mais graça acho, e perco, quando a vida, como esta manhã me sucedeu, me troca as voltas por rosas. Provas? Imaginai-me aqui há recentes dias: no correio electrónico, uma saudação do Tó-Zé Laranjeira; um abraço aniversariante (a 8) do Carlos S. Almeida; um códice discreto da A.; uma flor retórica da Patrícia Duarte; um telefonema também discreto-secreto do Francisco Santos, por isso não posso dizer o nome dele; e a notícia de que a nascitura (vestígio último do latino particípio futuro) Maria Leonor vai, nascendo, instituir o Verão.
Sim, é a vida, às vezes.
Eu posso fazer isto. Eu sou capaz de fazer isto. Eu sou só capaz de fazer isto: estar vivo dá muito trabalho, sobre tudo por causa da vida. Ai como é que se chama o.
1 comentário:
muitos parabéns por este primeiro ano de crónicas e poemas, daniel. um grande beijinho.
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