30/11/2007

Açucarado Lausperene

Preâmbulo - Quando, na tarde de 4ª feira, 28, no Caramulo, iniciei a redacção destes versos, não fazia ideia de que o conjunto deles só seria dado por pronto na tarde do dia seguinte, em Viseu. Não é que valham mais por serem 17 em vez de apenas 8. Mas passa-se que uma íntima (e involuntária, no que me diz respeito) unidade tomou conta deles. O poema 14, por exemplo, tem mães logo de início e até ao fim. Mas juro-vos que eu só soube que o poema 16 era sobre pais quando cheguei ao fim da composição. Neste penúltimo poema do Lausperene, o sentido inicial era a visão de homens velhos passando na rua, ponto final. Mas afinal, havia mais que se (lhes) dissesse. Coisas assim, portanto – daí a necessidade que senti de preambular este conjunto esquecível.

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Açucarado Lausperene

1

Que a amargura se dê em doçura
e de versos frutos dê tão caprichosos
que lê-los não retorne em amargura
mas à doçura tornem maviosos.

É se calhar pedir de mais à vida
que escrita transpareça mais bonita
viv’ela se calhar já tão aflita
escrita ou não escrita – e nunca lida.

O mais que seja ainda lh’á-de vir
pois que tudo já foi em tal porvir.

2

Ao sol-poente, o que há de alma no corpo obedece
ao suave mandamento poedor.
À inutilidade da vida se junta a dos versos,
que assim povoa o corpo de cidade,
campo, serra, mar e ar.

São magros os dias como cães públicos.
Não emagrecem, como eles, os mortos mais queridos.
Connosco assistem ao sol no mar, essa atada
sangria que aos olhos atlantiza sem remédio.

Há-de sempre haver alguém que nos não deixe
ser fim.
Chamam-se Amor, tal
avença e tais versos e vices e versas
recomeçados,
poedores.

Ou então são só amores.

3

Grácil maravilha cintila na boca: é
a água dos olhos a ela descida: à
língua, que sobe aos olhos: do
leitor.

4

Não tanto nem tão pouco nada entregarei
já, mais, de minha pouquidão e muita idade.
A alguém como a ninguém.

Não dá dinheiro.

5

Celebro do açúcar a branca correnteza,
tocadas as papilas de alegria.
Doçura e amargura à mesma mesa:
e a esmo a mesma noite e o outro dia.

6

Sonhou minha Irmã que eu me morria.
Estreitou-a que eu não tivesse dinheiro
sequer para o viajar derradeiro
tornador de dia em noite e noite em dia.

’vagar a sosseguei de tal tormenta,
que tanto ser amado muito acalenta
até a quem não crendo se converte.
O Deus dos outros existe e alimenta
até a quem jamais O exp’rimenta
e Dele não provém, sequer reverte.

7

Rio-me com a mesma solenidade com que não creio.
Uma revoada de jornais me outona a vida.
Isto é lindo, aquilo é feio.
Pus pulsa, são, desta ferida.

Pois pulsação, minha querida,
faz bater cavo o coração.
Vida é ferida de ser vida:
solene lhe rio que não.

8

Solene retorno agora a casa.
Tenho algumas violências ’inda que exercer.
Partilho casa com um frigorífico, uma gata,
uma varanda, uma lata: há pior maneira de se viver.

Em torno, a mais glabra natureza
venta entornações de ar.
Pinheiros cabeleiram a estranheza
de o sol ser laca imanente do luar.

Clareiam a oriente pulsações.
Nimbos cumulam cirros do tipo estrato.
Suspeito que a gata anda com gato
e fecho no frigorífico emanações

de torpe alimentícia natureza:
baratas margarinas, linguiças,
queijitos pró-franceses de vão de mesa
e mortadelas e doce de framboesa.

Champanhes nunca tive, só espumantes
de vínica aguardente carbonizada.
A minha casa vinha muita gente dantes,
agora já não vem, mas a piada

é que a sinto aqui, como viera
a ver tornar-me a casa tão solene.
E como violência não exercera
que a de viver santíssimo lausperene.

9

A consciência como uma touca de algodão
envolvendo a cabeça – a cabeça
deste corpo pseudónimo que uso para
lavrar a guerra civil da vida.

Vai uma tarde santa e boa. Perto da Sé,
estica um cão os elásticos do bocejo,
alonga a perna electrizada de prazer,
dando-lhe o sol sono e também a vida.

À passagem pela montra da barbearia,
vejo um cliente só, a cabeça não olhando
o espelho na ausência do barbeiro.
É um quadro bonito e para a vida.

Amo o comércio e suas miudezas.
Como o quê é ele avulso e a retalho?
Como o quê são elas ternas e tristes?
Eu sei como o que são – como a vida.

Flâmulas de ferro medievam portais,
ali, subindo um pouco o peito pedras.
Das tabernas mana a fermentação de
frios fritos – fritos e frios como a vida.

Dois homens conversam sobre documentos.
Não são historiadores, mas clientes de
notários, utentes de repartições, donos
de seus nadas escriturados – de sua vida.

Ponho ao lado para escrever certa coisa
minha contemporânea e coeva vossa.
Trata-se de uma bolsa de couro carregada
de mapas de ar – ponho ao lado a vida.

Esqueço verdadeiramente para falsamente
recordar – o passado é uma coisa que se constrói;
o futuro, não. O porvir é de esquecer já,
tal que mais verdadeira torne a passada vida.

10

Pensa por mim algoalguém que não sou,
algodão entoucador do cume do corpo,
vulnerável serra a alheios ventos
por mais além alheios mares pensados.

11

Continuo sem uma ideia de Deus, mas
sei onde Ele mora, palaciano:
em ninhos de águias mais altos
do que nuvens na manhã acabada.

Ando pela tarde da cidade sem Deus (mas
de muitos padres) pela mão, namorando os pés
as pedras a reboque de não genuflectores joelhos:
sorrio à mentira como a uma criança.

Não, lausperene algum; açúcar nenhum.

12

Gosto das caves onde se frita peixe
e se diz mal da vida.
Entro sozinho e bebo calado.
Escondo o Camus no saco e cheiro
as gengivas alheias, delas as palavras
felizes maldizendo tudo e o peixe todo
devorando. Desconfio do queijo fresco,
petisco azeitonas e sou feliz na barbárie,
o Albert no saco.

Há muitos anos que sou feliz.
Sou de um nanismo irrepreensível
como de um combustível onanismo.
Derramo-me pelo chão em oleaginosa aguadilha,
a seguir uma quadra, aqui uma sextilha:
há anos de mais sou feliz.

Colecciono homens e esquinas e caves.
Comove-me a fruta em banca na rua.
Nunca deixo de pensar no mar, sobretudo
nas caves onde se frita peixe.

Mui poderosa é a pretérita emanação.
Formosa é a rua de granito
por que barbatanam os cardumes da tristeza:
homens molhados, enxutas mulheres – e cães,
bocejando.

Gosto,
gosto disto.

13

Digo adeus à tarde, a Deus o dia.
Nem uma nem Outro de mim se despedem.
Não faz mal, já é costume.

14

As mães navegam de barriga para cima toda a vida.
Obliteram os homens, nunca os meninos,
sobretudo quando homens.

São como padres, mas mais escuras.

As mães guardanocturnam os retratos da sala.
Ondulam as caudas pelas poças do chão.
Conferem na chuva a factura da vida.
E têm colesterol no coração.

São como catrapilos, mas mais amarelas.

As mães nunca fazem amor, só sexo.
O sexo das mães range nos móveis de madeira.
Não é possível nascer de mãe que ame no chão.
As mães não alcançam ensinar a ter amado.

São como crisálidas, mas mais duradouras.

Nenhum menino tem acesso à primavera das mães.
Pagam delas o imposto outono e a contribuição
de inverno.
Nenhum menino se safa à ideia de Mãe; só à de Deus.

São como verões de nenhuma agência de viagens.

Um dia, os meninos fazem à ideia de Mãe

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mas chegam tarde
porque não há luz
nem rede:

só as mães navegam.

15

Um pássaro de cidade
corre pelo chão
como um atleta pequenino,
como um cometa pequenino
cansado de voar.

Voa sideral o gato
em seu lugar.

16

Crucificados pelo cabide da idade passam
de facto, o fato do Tempo envergando como opas,
os homens mais formosos, mortos quase
de tão formosa passagem tanta pelas ruas.

Antigos corpos, pergaminhos próprios
falseados pela Era da Fotocópia.
Desajustados. De radiografados ossos
e translúcidas mãos venosas.

Colecciono-os. E a esquinas colecto também,
sob siderais gatos e pássaros corredores e chãos.

Aquela tília freme ventilações.
Aquele banco aceita tibiezas.
São carlos, eduardos e joões
casados com cidálias, anas e teresas.

São os pais.

17

Não digo que amanhã, ou em dois anos,
mas já dispo e despeço minha vida.
Há que antecipar a despedida:
e eu sou de antecipar sem desenganos.

Do lausperene, o laus ainda aceito,
que o perene faz rir ao mais sisudo.
Enganos são ribeiros, não oceanos:
mas quem a pouco tem lhe chama tudo.




Caramulo, tarde de 28 de Novembro de 2007 (1 a 8)
Viseu, tarde de 29 de Novembro de 2007 (9 a 17)

Para Albert, ao Sol

Para Albert, ao Sol é a crónica nº 28 da série Rosário Breve, todas as sextas-feiras, como hoje, 30 de Novembro de 2007, n'O Ribatejo (www.oribatejo.com).
***************
Para Albert, ao Sol

Costumo comprar umas páginas de fiambre, manhã muito cedo, no minimercado da Vila. Saio, sento-me ao sol num muro e como-as sem metafísica nem pressa. Não como tudo. Na manhã que o sol não aquece, dou uma volta por ruas calçadas de bossas de granito e vou distribuindo fragmentos dessa literatura rósea e quase transparente aos carnívoros mais pobres da localidade: cães e gatos que vivem do tesouro simples ensinado por Albert Camus. Que tesouro simples?
“ (…) achei-me colocado a meia distância entre a miséria e o sol.”, escreveu o Autor argelino-francês nascido em Mondori a 7 de Novembro de 1913 e nobelizado há precisamente 50 anos. Em 1935/36, com apenas 22 anos de idade, Camus publicou uma admirável colecção de prosas breves intitulada “O Avesso e o Direito”. Na década de 50, última que viveu por completo, reeditou tal obra fundadora, juntando-lhes os também admiráveis “Discursos da Suécia”, que orou, há meio século, nas cerimónias sequentes ao maior galardão literário do planeta.
Entre aquele minimercado e esta pastelaria onde exerço a suave tristura da crónica, Camus dá comigo fiambre a cães e a gatos neste “mundo de pobreza e luz”. Tenho, portanto, um bom companheiro, aqui na serra e na terra.
Foi já no entardenoitecer de 30 de Dezembro de 1983 que adquiri o livro (edição da Livros do Brasil, de que há ainda exemplares em livrarias tradicionais não “fnac-izadas” ainda). Na altura, folheei-o apenas. Ainda bem que o não li todo, então. Obra de jovem, “O Avesso e o Direito” é para ler e aproveitar na maturidade.
A maturidade, sim, este limbo em que até os cães e os gatos sabem que umas páginas de fiambre são para ler ao sol: sem grande miséria, sem grande metafísica e sem pressa alguma.

29/11/2007

Cão com Ovelhas


1

Acompanha-me a idade como um cão.
A idade ou aquilo de que é feita: papéis
molhados pela água dos olhos ou do rio ou
da chuva, certos conventualismos da luz
em abóbadas de bosques: uma só luz,
um só bosque – todos estes anos de água.

2

O sol num dia frio: imagem das nossas vidas.
Que digo? Devo dizer – da minha vida – e não
falar pelas vossas – pois que delas já tudo
sei: à minha iguais, ao sol. E frias,
nos dias.

3

Vejo daqui um trecho do vale entre serras.
É uma visão obnubilada pela bruma
interna.
Bem mais clara é a suave encosta imediata,
do lado contrário ao do coração: conto dez
pinheiros penteados pela simetria, de cada um
o pé único fincado no húmus como
uma moral.
Desce a encosta até um mínimo prado de erva,
sobre que ovelhas pontuam, pardas, uma espécie
de poema muito badalado.
Uma casa branqueja, a meia distância, uma nota
de cal.
Fulgura, frígido, o sol de novembro acabando-se.
E chega a ser doce, estar vivo em tal
vizinhança.
(
Sei que tudo quer a Língua procurar, do corpo
de um homem se servindo sem remorso nem
mordomia menor: sei: e m’encontro com Ela
.)

4

A tua face esquerda na tua mão esquerda,
numa pausa indolor de pastelaria.
Menos vale viver, penso, que ser da
vida a mesma pausa, ao sol do dia.

5

Pode um homem amar a redonda renda
sobre que repousa o retrato?
Pode – que a retratada face às mãos
desceu para fazer a renda, redondamente.

6

Procuro – e sou encontrado.

7

Fere brilho em uma antena de televisão
o Sol: dourador da pobre vida, afinal
rica – e brilhante – e de ouro.

8

De duro granito muraram o pasto breve,
a vã ovelha mais bale do que vale:
viver, é ser pastado ao de leve;
é, balindo, calar quanto nos fale.

Ó velha ovelha, que valhas o que bales;
a terna merda às ancas costurada
mailo terno cordeiro de ti ao lado
valem quanto já foste e és e vales.

Já fulge a oriente a noite avessa,
já ouropéis enroupam a noitinha:
que ela mora por dentro, nem vizinha
é a noite que de dia em nós começa.

9

Agora até me faz sol quando chove:
que te conheço agora, por mais que neve.
Duro granito mura-m’ a vida breve;
aind’ assim, ao sol, a ovelha move
o já não vão amor de quem te escreve.

Ama-m’a vida breve a brevidade:
também os dois pastamos ’té sol-pôr.
Me acompanha o cão da mesma idade:
ou dele os papéis da vanidade
que nevam pretas letras – com amor.

10

De dada cinza, a serra, a oriente,
dedada anil convoca e semelha:
parece-m’ela ’ma deitada gente
que às cinzas vai balindo, a ocidente.

11

Sangra-se toda ouro a nossa vida.
Que digo? A nossa vida tua.

12

Peço um pouco de tempo mais para
uma pouca vida ainda.
A nenhum deus de oleiro verso
ou oro: nem choro – mas peço.

13

E da mansa certidão fria das outonais ruas
retiro eu cópia facsimilada.
Atira muito o vento braçadas nuas,
casebres recolhem gente outonada.

Pulsam luzitazeites em fundo breu.
Papilam pensativas chaminés.
Se pudera, voltara a esmo eu
à casa que já tive e que tu és.

Não no posso, não mais revoltarei,
que manso é o friúme desta serra.
Há coisas que não soube e agora sei:
a vida é só de um morto, pobre guerra.

14

Senhora minha, infância tua alguma repescará
da minha infância o mesmo senhorio.
Repara, é terça, está frio.
Repara, é novembro, passa no rio
a água de quem houve, há, haverá.

Sequer é isto triste, se o idioma nos não falta
a baliganir morais ovicaninas.
Por menores, as ovelhas, pequeninas,
dão delas a mesma lã que a nós, a malta,
nos ensina da vida coisas intestinas
que aprendidas já eram – e pequeninas.

A doença etária da Mãe.
O pasto breve e maila tenra erva.
Etérea e venérea é, também,
às ancas costurada a terna merda.
(
Diz-se cocó de ovelhas,
em linguagem escolar
p’ra/de crianças europeias.
As novas como as velhas.
As lindas como as feias
.)

Senhora minha, feia te tornas co’a idade,
não shoppingcentras já co’ à-vontade
das paridas por Deus em matrimónio.
Senhora minha, meia te volves – e feia – e revolves
genitais bivalves do Demónio.

Assim veio-vai valendo o Amor,
que quem dá verso, dá valor.

Vale?
Bale!

15

Fritura e tritura a alm’adentro.
Não sei de outra coisa que fazer.
’ma coisa é o legado;
outra, o mesmo dentro
que faz viver,
ver e escrever
a esmo o mesmo duro escasso centro.

16 (Canção da Oficina do Pintor)

Pálida doçura / me houve crescendo.
Do Pai m’ela vinha / e eu nela sendo.

Frias janelitas / tão turvas manhãs
brumas e laranjas / gelos e romãs.

E o lápis cortado / e o tempo que foi
perdido e achado / e o olhar dói.

’ma água de estrelas / verões cabisbaixos
grafias tão belas / e olhos tão baixos.

Vermelho difícil / dourado melhor
adorar é fácil / amar é pior.

(Vai-se o velho homem / deixa quase nada
só a morte é jovem / moça namorada.)

17

Ovelha alguma vi eu todo o dia.
Escrevi alguma? Alguma escrevi.
Vivo como escre'via: se não via,
via, ovelhas vivi.

18

Ão, ão.


*****

Caramulo,
tarde de 26 (1)
e tarde de 27 (2 a 18) de Novembro de 2007

28/11/2007

LOURIÇAL AO VENTO DO TEMPO - Peça-Guião para a Festa de Natal do Instituto D. João V


Pediram-me um texto para a festa de Natal deste ano do Instituto D. João V, no Louriçal. É uma comunidade escolar em que trabalhei, no século passado. Tenho lá muita gente amiga e uma filha. Disse que sim. Escrevi-a no domingo passado, 25 de Novembro de 2007, e aparei-lhe as unhas na manhã de 26. Vai ser representada naquela Escola no dia 14 de Dezembro, salvo erro. Foi um prazer. (Aquilo ali em cima é a Passarola de Bartolomeu de Gusmão).
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LOURIÇAL AO VENTO DO TEMPO
Peça-Guião para a Festa de Natal do Instituto D. João V
(Louriçal)


Personagens fixas:

Narrador (Voz Off)
+
D. João V
Madre Maria do Lado
Professor de Português
Bartolomeu de Gusmão
Professor de Português
Poeta Tomás António Gonzaga
Poeta João Xavier de Matos
+
Colectivo de Alunos (incluindo grupo de Freiras)


VOZ OFF

O século XVIII foi talvez o período da História que mais contribuiu para a notoriedade do Louriçal. É verdade que a história desta terra não começou no século XVIII. As origens conhecidas do Louriçal remontam aos tempos dos nossos primeiros reis, D. Afonso Henriques e D. Sancho I. O Rei Fundador concedeu ao Convento de Coimbra o couto do Louriçal.
Muitos anos depois – mais propriamente em 1514, no dia 22 de Agosto – El-Rei D. Manuel I outorga em foral o título de Vila a esta terra de bons ares e melhores costumes. O senhor da terra chamava-se Simão de Meneses.

(Adianta-se um aluno e diz:)

Duas freguesias compunham a velha Vila: S. Tiago (dentro da Vila) e S. Mamede (à Mata Mourisca).

VOZ OFF

No século XVII, era viva uma mulher cujas vida e obra ficaram indissociavelmente ligadas ao Louriçal: era muito devota e tornou-se freira. Chamou-se, e chama-se ainda, Soror Maria do Lado. Mas dela já mais história se contará. E hoje? O que é o Louriçal hoje?

(Alunos declamam em ordem a designar pelo Encenador:)

Ó Louriçal,
terra de encanto certo,
Com aroma de pinhal
E do mar que fica perto

Ó Louriçal,
de profunda tradição,
tu não conheces o mal
e dás bom nome à região.


VOZ OFF

Nos séculos XVII e XVIII, a ideia de Deus andou por aqui. E em 1836 veio a ordem administrativa nova: o Louriçal deixa de pertencer à comarca de Coimbra e passa a integrar a comarca de Pombal. Foi fila e sede de concelho até 1855. Quarenta anos depois, em 1876, vem o benefício da estrada que liga o Louriçal a Pombal, de um lado, e à Figueira da Foz, do outro. No dia 20 de Maio de 1993, dá-se a reelevação o estatuto de Vila. Hoje, os 5 mil habitantes do Louriçal orgulham-se dos seus 48 km2, pelos quais se espraiam os lugares.

(Alunos, um por cada nome de terra, dizem:)

Antões
Barroca do Outeiro
Borda do Rio
Cabeços do Outeiro
Casais de Além
Casais do Porto
Casais Loureiros
Casal da Rola
Casal do Queijo
Casal Mouro
Casas Brancas
Castelhanas
Cavadas
Cavaditas
Cipreste
Enjoa
Espinheiros
Foitos
Furadouro
Louriçal
Matas do Louriçal
Matas da Vila
Moita do Boi
Outeiro do Louriçal
Ribeira de Santo Amaro
Santo António
S. João das Tábuas
Serafim
Torneira
Valarinho
Vale da Cabra.

VOZ OFF

Atenção, muita atenção, pede-se a comparência de Madre Maria do Lado!

MADRE MARIA DO LADO

Chamei-me em vida terrena e secular Maria de Brito. Quis-me Deus a Seu lado: Maria continuei – e do Lado.

(Adianta-se um aluno e diz:)

E eu chamo-me Simão Lopes Solis. Acusaram-me de arrombar o Sacrário da Igreja de Santa Engrácia para roubar as hóstias consagradas. Não me lembro. Dizem que foi pela calada da noite de 16 de Janeiro de 1630. Dez meses depois, fui condenado à morte. E mataram-me a 3 de Fevereiro de 1631.

MADRE MARIA DO LADO, apontando para Simão:

Eu tinha 25 anos. O Senhor soprou-me Sua Divina inspiração, tal que eu fosse em confissão a Frei Bernardino das Chagas, do Convento Franciscano da Figueira da Foz. Assim foi que eu, Maria de Brito, mais cinco companheiras iniciámos um Lausperene de adoração e desagravo do Santíssimo Sacramento. Foi no dia 12 de Abril de 1630.

VOZ OFF

Poucos meses eram passados quando estas seis mulheres instituem um Recolhimento. Tinham recebido o hábito de Terceiras Professas da Terceira Ordem da Penitência de S. Francisco logo no dia 13 de Abril de 1631, um ano e um dia depois do início do Louvor Perpétuo do Santíssimo Sacramento em redenção do crime de Lisboa.

MADRE MARIA DO LADO

Foi em casas de meu Pai, junto à Igreja da Misericórdia deste Louriçal em que nasci, que começou a arder de pura luz o nosso devoto Recolhimento. Até meu Pai, António do Rego, tomou o hábito de Terceiro Franciscano.

(Adianta-se aluna/freira e diz:)

Nossa Madre Maria do Lado morre em odores de santidade no dia 28 de Abril de 1632, já com lugar no Céu garantido depois de tão breve e dedicada vida. Cedo a quis Deus junto Dele, como sempre Ele quer aos que mais ama.

(Grupo de alunos declama, em ordem de falas a designar pelo Encenador – quanto mais alunos, melhor:)

Santa, santa, santa
Foste e serás, ó Maria
O horror da calada noite
Tornaste tu amor e dia.

Teu corpo está no Convento
Tua alma no Céu está
A vida é só terra e vento
Mas é por Deus que ela há.

Aos mais pobres tu amaste
Teu mesmo pão a ti roubaste
Tal que a fome os não comesse
E aos pobres quiseste e deste
O que de Deus recebeste
Aos mais pobres mais amaste.

Santa, santa, santa
Foste e serás, ó Maria
O horror da calada noite
Tornaste tu amor e dia.


VOZ OFF

O rei D. Pedro II, pai do futuro D. João V, compadece-se da fama de Madre Maria do Lado e manda construir um convento no Louriçal. A obra haveria de ser concluída pelo filho, D. João V, em 1708. Às esmolas das pessoas une-se o subsídio real – e a obra nasce do mesmo lado que deu nome religioso a Maria: o Lado ferido por lança do corpo de Jesus Cristo na Cruz.

D. JOÃO V

Em Mafra como no Louriçal, dei obra ao meu ouro brasileiro. Sei muito bem quantos pecados me atribuem e quão mal de mim dizem. Mas eu sou D. João V – o Magnânimo, o Magnífico! Ainda o meu nome há baptizar uma escola neste lugar do Louriçal!

(Alunos, em ordem a designar pelo Encenador, vão “atirando” frases ao Rei:)

Nasceste em Outubro!
Morrerás em Julho!
1689!
1750!
Magnânimo!
Magnífico!
És segundo filho de segunda mulher!
Mandaste dourar capelas!
E andavas dourado como elas!
120 milhões de cruzados custou o Convento de Mafra!
Lisboa dividiste em Oriental e Ocidental!
De tostões nunca cuidaste!
Só de milhões!
DIZEM TODOS OS ALUNOS A UMA SÓ VOZ:
Muitos milhões, muitos milhões!
VOLTA UM ALUNO POR FRASE:
De alfaias, pratas e 6 mil cruzados dotaste o Convento do Louriçal!
DIZEM TODOS OS ALUNOS A UMA SÓ VOZ:
Assim está bem, nunca foi mal,
Assim está bem, nunca foi mal!

D. JOÃO V (em tom de pisca-olhos para o público:)

Estão a ver como sou bom?
Estão a ver quem foi o Maior, o Mais-mais-mais-mais-mais-mais-mais?
Eu, D. João, “o quinto do nome na tabela real”, como há-de dizer de mim um tal José Saramago…

VOZ OFF

Dezanove freiras vivem hoje, século XXI, em recolhimento no Convento do Louriçal, cumprindo o impulso inicial de Madre Maria do Lado. Longe vão os tempos da instauração da República, em 1910…

(Alunas/freiras de joelhos e em pânico:)

Jesus Senhor, a República, a República, o Monstro Vermelho e Verde!
Jesus Senhor, livrai-nos de todo o mal!

D. JOÃO V

Eu cá nunca liguei nada a repúblicas…

VOZ OFF

Todos os dias rezam as freiras louriçalenses em desagravo do Santíssimo Sacramento violado em Lisboa naquela hora má de Janeiro de 1630. rezam e trabalham: bordam, fazem doces, dão corpo à hóstia eucarística e vivem na sombra o ofício da Luz.

(Entra o PROFESSOR DE PORTUGUÊS:)

Isto está tudo muito bem. Mas não pode ser que só a História mostre trabalho neste Instituto que tem o nome de D. João V. Então – e poetas? Será que não houve poetas de grande mérito no século XVIII, o século do convento?

(Um aluno diz para o PROFESSOR DE PORTUGUÊS:)

Ó setôr, olhe que isto é uma festa, não é uma aula, ó setôr…

PROFESSOR DE PORTUGUÊS

Uma aula também pode ser uma festa, ó João!

VOZ OFF (dirigindo-se ao PROFESSOR DE PORTUGUÊS:)

Ó colega, desculpe lá o mau jeito, mas que poetas quer o senhor lembrar? Não me diga que um tal Bocage… Olhe que a hora vai sagrada…

D. JOÃO V (imponente)

Eu sustentei muito músico, muito pintor e muito arquitecto!
Venham daí esses poetas do meu tempo, venham!

(Entra o POETA TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA:)

Chamo-me Tomás António Gonzaga e não sou do Louriçal – peço perdão se venho incomodar…

D. JOÃO V

Incomodas nada, homem, chega-te à frente, que o rego é estreito!...

POETA TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA

Nasci no Porto em 1744.

D. JOÃO V (em àparte)

1744? Caraças, que só faltavam seis anos para eu bater a bota…)

POETA TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA

Meu pai e avós eram brasileiros. Para o Brasil eu fui aos sete anos de idade. E do Brasil volvei em 1761 para estudar Leis em Coimbra.

PROFESSOR DE PORTUGUÊS

Então diz, Tomás, um poema, se fores capaz!

(TODOS OS ALUNOS, A UMA SÓ VOZ, REPETEM O DITO DO PROF.)

Então diz, Tomás, um poema, se fores capaz!

POETA TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro(…)

(INTERROMPE-O O REI, COM MADRE MARIA DO LADO TENTANTO TAPAR-LHE A BOCA:)

Mas quem era essa Marília e que te importava ela, se vaqueiro não eras? Estou a ver que nem todos os meus bons exemplos pegaram moda…

PROFESSOR DE PORTUGUÊS (orgulhoso, explicador…)

A Marília do Poeta era uma rapariga da boa sociedade brasileira de Vila Rica, em Minas Gerais. Chamava-se Maria Doroteia Joaquina de Seixas. À boa maneira arcádica, o Poeta chamava-lhe Marília…

MADRE MARIA DO LADO

A única Poesia está no Amor de Deus, não no da carne de homens e mulheres…

D. JOÃO V

Ó Madre, já agora deixe lá ouvir o moço…

PROFESSOR DE PORTUGUÊS

O doutor Tomás António Gonzaga, magistrado no Brasil depois dos anos de Coimbra, já era quarentão – ou seja, um “cota”. Maria Doroteia – ou seja, a Marília, tinha só 17 anos… Estiveram para casar-se, mas as coisas correram mal. O poeta doutor acabou por morrer em Moçambique em 1810.

POETA TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado;
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite,
e mais as finas lãs de que me visto.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!


IRROMPE D. JOÃO V

Palmas, senhor público, palmas para o senhor Poeta Tomás António Gonzaga!
Belos versos, sim senhor!

MADRE MARIA DO LADO

Mal também não faz tal poesia, enfim. Passemos de lado…

VOZ OFF

O século XVIII era o tempo desta poesia. Mas não só. O reinado do ouro despontava em luxos sumptuosos – para quem o tinha e o podia gastar, é claro… Mas a organização social e produtiva descambava. A agricultura caía. Nobreza e alto clero viviam bem. Mas o resto da sociedade, não. Claro que não.

D. JOÃO V

Não me lembro…

VOZ OFF

Em paz com Espanha, Portugal entra em monarquia absoluta nos reinados de D. Pedro II e de D. João V.

D. JOÃO V

Não me lembro… Venha mas é mais música e mais poesia, que eu estava a gostar!

PROFESSOR DE PORTUGUÊS

Apoiado, Sua Majestade, muitíssimo apoiadíssimo!

(Um aluno diz em àparte:)

Pronto, aí vem matéria para mais um teste…

PROFESSOR DE PORTUGUÊS

Um teste, não: um poema!

VOZ OFF

Faça-se luz no Século das Luzes! Ilumine-se o Iluminismo! E o cultismo e o conceptismo! E o despotismo! E o DomJoãoQuintismo!

(ENTRA POETA JOÃO XAVIER DE MATOS)

Eu também me chamo João…

D. JOÃO V

Ah grande João, venham mais cinco aqui pró Quinto!

(REI E POETA BATEM AS MÃOS À MANEIRA MODERNA)

POETA JOÃO XAVIER DE MATOS

Eu sou João Xavier de Matos. Dei-me bem com o Senhor Bispo de Beja, Doutor Frei Manuel do Cenáculo. Mas deixei-me de magistraturas e dei-me de corpo e alma à poesia, à boémia e à bebida.

(D. JOÃO V, QUASE EM SIMULTÂNEO, RIMA:)

Mas que rica vida! Só podias ser João!

POETA JOÃO XAVIER DE MATOS

Que assim sai a manhã, serena e bela!
Como vem no horizonte o sol raiando!
Já se vão os outeiros divisando,
já no céu se não vê nenhuma estrela.

Como se ouve na rústica janela
do pátrio ninho o rouxinol cantando!
Já lá vai para o monte o gado andando,
já começa o barqueiro a içar a vela.

A pastora acolá, por ver o amante,
com o cântaro vai à fonte fria;
cá vem saindo alegre o caminhante;

só eu não vejo o rosto da alegria:
que enquanto de outro sol morar distante,
não há-de para mim nascer o dia.


D. JOÃO V

Palmas, senhor público, palmas para o senhor Poeta João Xavier de Matos!

(FAZEM UMA VÉNIA O PROFESSOR DE PORTUGUÊS E O POETA; DIZ O PROFESSOR DE PORTUGUÊS:)

Viva a poesia portuguesa do século XVIII! E viva o Louriçal!

(REPETIÇÃO: Alunos, um por cada nome de terra, dizem:)

Antões
Barroca do Outeiro
Borda do Rio
Cabeços do Outeiro
Casais de Além
Casais do Porto
Casais Loureiros
Casal da Rola
Casal do Queijo
Casal Mouro
Casas Brancas
Castelhanas
Cavadas
Cavaditas
Cipreste
Enjoa
Espinheiros
Foitos
Furadouro
Louriçal
Matas do Louriçal
Matas da Vila
Moita do Boi
Outeiro do Louriçal
Ribeira de Santo Amaro
Santo António
S. João das Tábuas
Serafim
Torneira
Valarinho
Vale da Cabra.

MÚSICA / LUZES / IMAGENS

(SEGUE-SE JOGO POÉTICO DE DECLAMAÇÃO: CABE AO ENCENADOR A DISTRIBUIÇÃO QUANTITATIVA DE Nº DE VERSOS/ALUNO. O REFRÃO É PARA DIZER POR TODO O GRUPO/CORO A UMA SÓ VOZ:)

Século XVIII, ó Louriçal!
Uma coisa é vento; outra, convento!
Coisas bem e coisas mal
Sempre houve em qualquer tempo!

Madre Maria do Lado!
Absoluto Senhor D. João V!
Arroz, biscoitos e vinho engarrafado
Se um é branco, o outro é tinto!

De um lado o desagravo
Do Sagrado Coração.
A vida tem por vezes travo
Da mais pura adoração!

Azulejos azuis e brancos!
Colunas com capitéis!
Sapatilhas e tamancos!
E gerações mais do que seis!

REFRÃO
NOSSO É O LOURIÇAL
NOSSA É A NOSSA HISTÓRIA!
POR ACASO É NATAL
NOSSA É ESTA MEMÓRIA!

São anosque já lá vão
Muitos mais anos a vir.
Instituto D. João
Quinto e primeiro a surgir.

Sim, viver é uma escola
E esta escola é viver!
É meter coisas na tola
P’ra lembrar e p’ra esquecer!

Ao António José da Silva
O Judeu, o do teatro,
Meteram no Santo Ofício,
Fizeram o diabo a 4!

REFRÃO
NOSSO É O LOURIÇAL
NOSSA É A NOSSA HISTÓRIA!
POR ACASO É NATAL
NOSSA É ESTA MEMÓRIA!


Quando fizeram o convento
Ai nem água nem torneira!
Mandou o Rei João e Quinto
Ao arquitecto Manuel Pereira

Que água desse às Irmãzinhas
Em forma de aqueduto.
Assim foi: e as alminhas
Vieram para o Instituto!

DIZEM TODOS A UMA SÓ VOZ
Instituto D. João V?

REFRÃO
NOSSO É O LOURIÇAL
NOSSA É A NOSSA HISTÓRIA!
POR ACASO É NATAL
NOSSA É ESTA MEMÓRIA!

Passarola, Passarola,
Passarola de Gusmão:
Vem aqui à nossa Escola
Voa lá, que é condição
Não voar só pelo chão!


(ENTRA BARTOLOMEU DE GUSMÃO)

Sou Bartolomeu de Gusmão.
Quis voar em máquina que voasse.
Muita gente se juntou a ver a minha Passarola.
Uns dizem que voou deveras. Outros, que não levantou o pé do chão.

(UMA FREIRA DÁ MILHO À PASSAROLA E DIZ:)

Só os anjos voam e não comem, ó pássaro artificial.
E tu comes e não voas, que outros são os anjos e os pecados destas lisboas…
Anda, toma lá deste ouro do Brasil em pepitas de milhos, toma.

D. JOÃO V

Ó Irmã, olhe que depois de mim há-de D. José trazer-vos um passarão bem pior, um tal Marquês de Pombal, ou o Diabo por ele…

(FREIRAS EM GRUPO REPETEM CENA DE JOELHOS E EM PÂNICO:)

Jesus Senhor, a República, a República, o Monstro Vermelho e Verde!
Jesus Senhor, livrai-nos de todo o mal!

D. JOÃO V

A República? O Marquês? Também não foi bem assim… Mas que foi coisa séria, lá isso foi… Nada ficou na mesma, sobretudo depois do Terramoto de Lisboa em 1755, que disso me livrei eu com cinco anos de avanço…

(VOLTA A FALAR O GRUPO/CORO DE ALUNOS:)

Sempre a História é memória,
Sempre foi e há-de ser.
Estar vivo é uma glória
Entre nascer e morrer.

Entre nascer e morrer
Muita história a correr
Sempre foi e há-de ser
Entre morrer e nascer.

REFRÃO
NOSSO É O LOURIÇAL
NOSSA É A NOSSA HISTÓRIA!
POR ACASO É NATAL
NOSSA É ESTA MEMÓRIA!


(CENA CONTINUA COM DICÇÃO DE FRASES – NÃO JÁ EM REGISTO POÉTICO-DECLAMATÓRIO – DISTRIBUIR 1 FRASE/1 ALUNO:)

(MAS PRIMEIRO FALA O REI:)

“D. João por Graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves e d’além-mar em África Senhor da Guiné Etcetra…”

(FALA DEPOIS MADRE MARIA DO LADO:)

Eu trabalhava no serviço da casa até às dez ou onze horas da noite: depois rezava o meu rosário e logo de madrugado me punha em oração, antes de entrar nos serviços da casa.

D. JOÃO V (apontando para Madre Maria do Lado:)

Tua memória bem mereceu um convento para a História.

MADRE MARIA DO LADO

Como por meio da oração se chega cada vez mais a Deus Senhor nosso, forçoso é que, tendo a luz tão perto, dela se receba grandes iluminações.

BARTOLOMEU DE GUSMÃO

De mim, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, que sacerdote fui como cientista, não grande memória fique, enfim, que homem fui apenas: pó ao vento. Mas de meu sonho de voar, sim: que memória fique. Uma simples bolha de sabão me deu desejo de construir um balão que a imitasse em graça e leveza. Do balão à Passarola, foi um golpe de asa. E a 8 de Agosto de 1709, a minha Passarola pegou lume de voo… e voou da Casa da Índia ao Terreiro do Paço!

(FREIRAS TORNAM A DAR MILHO À PASSAROLA, DIZENDO:)

Toma e come destas pepitas de ouro brasileiro, ó Passarola do Padre Voador!
Toma e come – e que só as almas voem, mas para Deus, não para lado mais algum!

(VOLTA GRUPO/CORO DE ALUNOS; 1 FRASE/1 ALUNO)

Século XVIII, ó século XVIII dos Távoras e do Terramoto de Lisboa: nem tudo teu foi coisa boa!
Mas vale a fé como vale a razão!
As Luzes nascem das Sombras!
Também Bocage nasceu e renascerá!
Tanto ouro e tantos pobres ao mesmo tempo!
Tantos bispos, tantos cónegos, tantos nobres, tantos pobres!
Tanto aumentar de impostos!
Tanto Brasil e tão pouco Portugal!
Vinhas do Douro, vinhos da Madeira!
Tantas guerras do Alecrim e da Manjerona!
D. João V para D. José: dá cá o pé!
Todo o Portugal do Marquês de Pombal (incluindo o Louriçal)!
E tanta, tanta Inquisição a dar cabo da Razão!
Venha de ti o Iluminismo!
E o Cosmopolitismo!
E o Louriçalismo!

FINAL

(Um aluno diz:)

Duas freguesias compunham a velha Vila do Louriçal: S. Tiago e S. Mamede, ali à Mata Mourisca…

VOZ OFF

E hoje, quem somos hoje?

(REPETIÇÃO: Alunos, um por cada nome de terra, dizem:)

Antões
Barroca do Outeiro
Borda do Rio
Cabeços do Outeiro
Casais de Além
Casais do Porto
Casais Loureiros
Casal da Rola
Casal do Queijo
Casal Mouro
Casas Brancas
Castelhanas
Cavadas
Cavaditas
Cipreste
Enjoa
Espinheiros
Foitos
Furadouro
Louriçal
Matas do Louriçal
Matas da Vila
Moita do Boi
Outeiro do Louriçal
Ribeira de Santo Amaro
Santo António
S. João das Tábuas
Serafim
Torneira
Valarinho
Vale da Cabra.

MÚSICA / LUZES / IMAGENS

(OS ALUNOS REPETEM, PARA ACABAR E DESPEDINDO-SE DO PÚBLICO (MAS AGORA A UMA SÓ VOZ:)

Ó Louriçal,
terra de encanto certo,
com aroma de pinhal
e do mar que fica perto

Ó Louriçal,
de profunda tradição,
tu não conheces o mal
e dás bom nome à região.


Caramulo, 25 e 26 de Novembro de 2007

26/11/2007

Dois Poemas Frios



Para o senhor Maximino,
uma vez na vida.




I

Frutos foram já, folhas caem, vai frio o Outono.
Vi um homem completamente só na vida, um
antecipador da solidão completa de um dia.
Disseram-me: – Ele não tem família, ele vive
por aqui
. Umas vezes, chove muito – e das pessoas
o olhar é limpo, vazio e velado como igrejas
por dentro.
Em sonhos, vejo mulheres de brancas barrigas
como peixes de ancas. Elas dançam na água.
Acho que é por causa de eu ouvir a chuva
enquanto as sonho – elas dançam no rumor.
E o frio Outono escreve folhas: cadentes, decadentes
poemas frios que o níveo vento atravessa
no meu coração portátil.
Bordo passos no parque da vila, topando a
inquietude na quietude. Um espelho-de-água
escreve peixes: os peixes olham de baixo as folhas
à água caídas como versos a papel.
É uma quinta-feira.
Vejo homens, mulheres e crianças que não estão
nem há. Preparo a paz: uso os olhos da pele.
Cabanas na neve emolduram salas de espera:
a louça dos dentes guardada na madeira da boca:
o concurso atento dos corvos à vida:
dimensões que rexistem no Elemento.
Trabalharei ainda um pouco no não-bosque.
Minérios vegetam na Eternidade.
Tentarei imitá-los em atento concurso.
Olhai comigo estes homens varrendo folhas:
o de óculos arrasta estrofes de caduca rima,
o de bigode pensa numa filha,
o condutor acende um cigarro,
dá-lhes o Outono trabalho
como a mim dá – ou vai-vem dando.
No estojo do corpo, as jóias dos órgãos
são, cada, um relógio. A um universal
tempo comum concorrem.
E a solidão é feita de nenhum onde e de todos
os quandos.
Bebe o homem só uma chávena de café chilro.
Vai frio o Outono.
Admirável e admirado renque de árvores
junto a que, invernoso, outonizo:
dos deuses a agonia celebrareis verticais,
como desde sempre – como pedras.
Celebro o Instante – O que É Dentro.
Um irmão telefona a um irmão:
densas sublinhas escrevem as falas:
como num teatro sem bilhetes pagos,
de para morte e vida entrada livre.
É-me hoje, quinta-feira, possível
tudo:
e outra vez.
Tentarei imitar, das gares rodoviárias,
o concurso de senhoras-de-aluguer,
a prosperidade das farmácias,
a vitalícia vida que obra obras e semáforos:
maila dulcíssima tristeza dos semáforos
quando chove e
quando não.
Todos os quandos – e nenhum onde.

Espera.

Frutos voltarão, folhas subirão e
será quente o Verão.



II

Elas dançam na água.
Não me cansam nem causam
senão felicidade: sonhar é
roubar tempo ao Tempo.

São dançarinas. São
mulheres frias como igrejas.
São brancas ao sol, mas
lunam terríveis segredos.

Caudaloso e voraz e gástrico é
o senhor coração.
Gosta de poças de água.
Gosta de dançarinar peixes.

Revoluteiam vagens e aranhas,
radiografias solares de parras
em latadas de velhos senhores,
em alguma aldeia desabitada.



Textos: Caramulo, tarde e noite de 22 de Novembro de 2007
Fotografia: Caramulo, manhã de 19 de Novembro de 2007

23/11/2007

O Corpo de Volta

A partir de hoje, 23 de Novembro de 2007, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt), a crónica nº 27 de Rosário Breve.

*****


O Corpo de Volta

Depois de tantos anos pendurado da alma ou das árvores, o meu corpo está de volta a mim. Em vão, pelos vistos, o exilei.Sei de vago modo por onde andou e que andou fazendo, mas só agora me dou conta de quanta falta me fez. Podia tê-lo vivido, posto a meu serviço. Não o fiz e, embora não seja tarde de mais, julgo, há coisas que ambos, eu e ele, perdemos sem remédio nem resignação. E se as más vontades julgarem que estou a subdeclarar mulheres, não estarão de todo enganadas. Também, claro que sim, mas não tão-só.Há mais coisas para que um corpo é útil. É preciso para se regressar do mar, por exemplo. Sem corpo à mão, a alma fica lá, lânguida e embrulhada na ondulação como uma alga. A minha questão é parecer-me que este corpo quer levar-me para lá.Um corpo é sempre bom para ir ao mercado sopesar os frutos, auscultar o coração dos morangos e dos melões, unhar o ouro de lei das laranjas, tocar o vidro embaciado do olhar dos peixes, transportar a fome ao tabuleiro da mulher dos bolos, deitar sombra fresca como água aos baldes de flores.Está de volta, agora, o meu corpo. A questão, agora, não é o que vou fazer dele, mas que vai ele fazer de mim.
Não o esperava. Sinceramente: nesta idade, já o não esperava. Tenho-me desenrascado mais ou menos bem sem ele. Antigamente, dava-o ao manifesto. Um dia, talvez uma noite, ele ficou por lá, no manifesto. Eu fiquei no algures de cá, transparente e tributável. Dele, guardei o nome: eu precisava de um, ele nem de mim precisava, quanto mais de um nome. Ainda por cima, de um nome igual ao do meu Pai, senhor que há tantos anos não é corpo.
Agora, tenho de vesti-lo, calçá-lo, coçá-lo, dar-lhe pão e água e laranjas e cafés. Em retorno, ele dá-me pressa para evitar a chuva iminente, unhas para roer, bocejos metafísicos que me marejam de água os olhos e olhos que assento sobre as coisas como uma tinta aquosa.
Está de volta. Deve ter vindo dizer-me que, um destes dias, talvez de noite, estarei eu de partida.

21/11/2007

MDP CDE 1

Inicio esta noite, aqui mesmo, uma nova série. Eu sei, eu sei: tanta série não pode ser pa' levar a sério. Pois claro que não. Já por aqui anda A Noite em Breve. Já por aqui anda Nenhum dos Rostos. Já por aqui andam as histórias da rádio. E isto para já não falar na versalhada a dar com um pau. Eu sei, eu sei. Pronto, mas esta noite aparece mais uma. Chama-se, por extenso, Mais Descobrimentos Portugueses (Com Direito ao Engano) - ou MDP CDE para os Amigos. Mas não só para os Amigos. Como também por aqui furtivamente andam os Ranhosos, os MDP CDE, de tão apurada e confessa ranhosice, também são para os Ranhosos. Boa noite.
*********
Mais Descobrimentos Portugueses (Com Direito ao Engano)
- ou MDP CDE para os Amigos e não Só –


1

À noite (se a noite for hoje), aquece-se um caldo que se teve congelado dias a fio e a frio na porta de cima daquele coiso branco que rosna e tem asma e a que, por ternura e habituação, chamamos O Frigorífico. Eles estão para isso: O Frigorífico e O Caldo.
Um gajo, a seguir, tem de sair para devir mais um gajo a não seguir.
E porra, que hoje foi noite todo o dia, está um frio tão, por assim dizer, global, que A Natureza, O Mundo e A Sociedade parecem outras tantas modalidades de O Frigorífico.
O que vale – é que se leva O Caldo bem cá dentro, aninhado ao pé de, ou contra, O Coração.

Caramulo, noite de 21 de Novembro de 2007

Submarino d'Amour - história 79 do Anoitecer ao Tom Dela

Há um senhor em Viseu que gosta das histórias que escrevo para a terceira hora (rubrica 1002 Noites, 22-23h00) do programa radiofónico Anoitecer ao Tom Dela. Esta é para lhe agradecer que goste.
(Anoitecer ao Tom Dela, 20-24h00, de 2ª a 6ª feiras, em 91.2 FM e/ou http://www.emissoradasbeiras.radios.pt/. Blog do programa: http://www.anoiteceraotomdela.blogspot.com/).

*****************
Submarino d’Amour

1
Chamava-se “O Submarino” e nada tinha a ver com o mar. Era uma casa-de-pasto gerida por uma mulher cuja decência tinha a claridade do sol. O marido tinha emigrado para França e regressado nunca. Aos avanços de alguns homens demarcados pelo hálito da aguardente, resistia ela com uma inquebrantável viuvez de vivo remo(r)to.

2
“O Submarino” servia uma comida muito limpa e barata. Aos tampos de madeira das mesas chegavam os pratos de louça azul e as malgas metálicas com sopa ou salada de alface com tomate e cebola. Eu gostava de ali comer a bifana nadadora de cerveja, a cara de bacalhau rezando alho, a mão de vaca jogadora de berlindes de grão-de-bico, a isca de fígado inturgescida pelo sono em leite.

3
Cheguei demasiado tarde a “O Submarino”. Fechou pouco mais de meio ano depois da minha descoberta. Lembro-me da minha primeira vez na casa, como é curial recordar as outras primeiras vezes de uma vida que a si mesma se ultima de cada vez. Foi numa tarde de sol, eram quase as três da tarde. Já ninguém almoçava. Eu pedi para comer. A senhora disse-me que sim com uma limitação:
– Tem de ser bifanas. Batata, pode escolher frita ou cozida.

4
Regressei quantas vezes pude. Nunca bati o território àquela fêmea de uma decência solar. E hei-de recordar para sempre o dia do aniversário dela. Ao jantar desse 14 de Novembro, ela não se pagou do café com cheirinho de conhaque nacional. Ela disse que fazia anos e que um dia não são dias. E não são – excepto quando passam: o dia e os anos e os dias.

5
Eu dei aulas de geometria descritiva na Escola Comercial e Industrial da Vila. Tinha um salário piorado pela ingenuidade, cariz que me levou a dizer que sim à minha mulher quando ela quis abrir uma retrosaria com secção de perfumes e cosméticos. Isto foi antes de ela se ir embora com um médico velho do Centro de Saúde e me deixar uma gaveta cheia de facturas por pagar dentro de envelopes por abrir.

6
A retrosaria (que se chamava “Glamour d’Amour”) fechou-se sozinha como uma idade – como, anos depois, “O Submarino”. Deixei o ensino e fui trabalhar para uma loja de pássaros. Depois, conheci, ganhei e perdi “O Submarino”. E depois, noutro junho igual, fiz cinquenta anos. Nessa sexta-feira de meio século, entrei num tasco perto da gare rodoviária e mandei vir conhaque nacional. Talvez tenha desejado que o cálice chegasse à mesa pago por ela – e que fosse 14 de Novembro à data, não 30 de Junho.

7
Dou-me bem com os pássaros sem árvores da loja, bem com a freguesia e bem com o patrão da loja. Dou-me bem com tudo e todos porque não me dou a nada nem a ninguém. Deixo andar – como se o andamento me precisasse de deixação. Passo em frente à padaria-pastelaria onde foi o “Glamour d’Amour” e não recordo a mulher frívola nem a estante de perfumes caros de mais para o gentio mulheril da Vila. Mas recordo “O Submarino”, que permanece afundado além das portas encerradas. Nem de ramo mudou – como um pássaro ou um fruto móveis na aragem.

8
Se gostaria de revê-la? Acho que não. A ninguém temos o direito de pedir que seja o mesmo alguém que nos chegou ou a que chegámos. Revejo-a na tarde serôdia da primeira vez, quando comi sozinho numa sala cheia de sol que não recordava o mar. Também a revejo oferecendo o café e o bagaço na noite muito chuvosa daquele 14 de Novembro. Isso é-me bastante – mesmo nada sendo, como tudo é.

9
Talvez eu a tenha amado da melhor maneira: sem que nem eu nem ela soubéssemos que eu a amava. Esse amor é, de tão parecido com a ignorância, o melhor conhecimento. E há-de ser uma boa memória, de tão fundado na simultânea amnésia de si mesmo. Digo eu, que nada sei nem possuo, nem pretendo saber ou possuir: sequer noções, já, de geometria descritiva.

10
O periquito macho é azulado nos orifícios nasais. Alguns dias são azulados também, mas nunca machos ou fêmeas, antes uma dimensão assexuada e estéril cuja maior promiscuidades são as noites e as indisposições gástricas. Para destas me precaver, aliás, almoço sozinho entre pássaros. Uma maçã e uma fatia de pão de milho bastam-me para recordar bifanas, caras, mãos e fígados. Ou para recordar o olhar dela em mim, que o sentia eu quando ela nem me olhava, como nunca olhou.

Caramulo, tarde de 20 de Novembro de 2007

Tristezas "gratis"

Segue-se mais uma colecção de maluqueiras dos buscadores da net. Dá-me ideia de que esta maltosa já aplica o coiso ortográfico novo, aquele que nos quer pôr a escrever húmido sem h. Ou o caraças com dois ss. Haja paciência.

**********
fotos de manequins maquilhadas
poemas"gratis" de tristeza
talocha de celulose
venda reprime portuguesa cavalo
lista telefonica de aldeia da cruz concelho de figueira dos vinhos
bebe com tosse e"chiadeira" como proceder
foto de mulher de fio dentala
igreijas de Coimbra
jose strummer em português
LEITE COM CONHAQUE ALIVIA TOSSE
o make me a mask
poemas de agradesimento
receita queijada de tentúgal
cigano morto à facada em Viseu
hopper e os poetas
ruy belo em fugitivos da catástrofe
DESANHOS DO CASTANHEIRO
receita de anis escarchado
papel de parede onde os peixinhos mexem gratuito
tia con una teta pintada con el escudo del Sporting
videos gratis de pessoas semdo atropeladas
poesias em Coisas pequenas
orelha de porco ensalsada
hortencia porque murchou
musica menino jesus do céu esferovite um lindo postal
ordenado guarda nocturno

19/11/2007

Avenida Lázaro

Esta é, precisamente, a entrada nº 1000 do Canil. O texto que lhe dá corpo é a história nº 78 da rubrica 1002 Noites, do programa radiofónico Anoitecer ao Tom Dela (http://www.anoiteceraotomdela.blogspot.com/ - de 2ª a 6ª feiras, entre as 20 e 24h00).





.....

Foto: © 1939, by Edward Weston (Rubber Dummy, Metro Goldwyn Mayer)

***********

Avenida Lázaro

1
Há quinze, vinte anos, um dos entreténs da minha vida era sentar-me em paragens de autocarros e ficar a ver o fluxo do trânsito nocturno. Os autocarros vinham e iam, eu não tomava qualquer deles. Com as horas, acabavam as carreiras, rareavam os ligeiros. Um que outro táxi passava devagar com esperança em mim. Chegava a hora das mulheres que alugavam o amor rodoviário. Também me olhavam, mas desistiam depressa. Eu olhava e não desistia.

2
Como o trânsito, os anos passaram. Uma espécie de noite ininterrupta garantiu-me o direito a parar na paragem que não pára nunca mas sempre finge tão bem que sim. Além, nas traseiras da Rodoviária, é o rio. Nas minhas costas, é a fábrica de artefactos de borracha. De tanto mexerem em versos, as mãos pergaminham-se-me, rugosas, mortais e pacientes.

3
Há quinze, vinte anos, já era o futuro. Nada me importou nunca que tudo fosse passagem. Uma das consolações da mortalidade é a eternidade aceitar prestações. O crédito é finito, eu sei, mas a despesa é ilimitada. Eu sentia isso à uma e meia da manhã, na paragem do autocarro. Em frente, a Avenida pulsava reclamos de seguradoras, ferragens, farmácias e senhoras de aluguer.

4
Clarões rápidos desmentem, fugazmente embora, o teor perpétuo do meu assentamento. Recordo manhãs na mesma cidade. Brilhavam cordas de ouro: e era a chuva quando fazia sol nela. Os meus destinos eram breves: uma taberna de terreiro, um pátio onde se mercava algum número improvável do Mundo de Aventuras, a margem direita do rio, a estação ferroviária que partia para o mar sem chegar nunca a lado algum: como eu, precisamente.

5
É verdade que continuo a ver passar autocarros e a contar quantas vezes certas senhoras acendem cigarros na solidão cronométrica do aluguer. Igual verdade é não haver aqui e hoje, quinze ou vinte anos depois, quaisquer senhoras e carreiras algumas. Também vejo cavalos vermelhos no monte, muros brancos sem vivendas depois. Se não vejo, escrevo. Escrevo para ver.

6
Escrevo para viver. Ou, ao menos, para passar vivo por fora, lado de que ficam as instituições, os casamentos, os centros de emprego e as recolhas de sangue para meninos leucémicos. É curioso que, mais e mais, leia menos. Eu sei: é o outono, essa estética caduca do autismo. Mas não o faço por mal. Nem o faço, aliás: acontece-me. Parei na paragem, sentei-me.

7
Parei na paragem, escrevo para (vi)ver, passo na passagem. Além, a Rodoviária. Mais além, o rio. Nas minhas costas, a fábrica de artefactos de borracha. No meu coração, a fábrica de artefactos palavrosos. Aquela senhora acendeu e fumou três cigarros em menos de quinze, vinte minutos, anos.

8
Quinze, vinte anos: tempo nenhum. Táxis olham-me com vã esperança. Homo-homens conduzem lentamente na caça sem altanaria da madrugada urbana. No saco, tenho um livro cheio de deuses egípcios. Já não tenho cigarros. Nuvens chumbam a Lua. Um cão fareja os pés a um contentor.

9
Quinze, vinte anos de outonos e invernos. Nenhum estio, primavera alguma. Uma só noite com algumas manhãs aos pés como quando deixo cair as folhas que escrevo. Deixo-as cair muitas vezes. Nunca me baixo para recolhê-las. Deixo-as ir nos anos, no vento de anos que passam, que passa.

10
Esta noite, estarei sentado na paragem de autocarros. O cão fareja a Lua, as senhoras acendem cigarros que lhes microfilmam o rosto de madeira: gémeas vegetais do carnal comércio. É tempo. Por hoje, nem mais autocarros, nem táxis mais. E então isto: com todas as folhas aos pés, levanto-me e ando.

Caramulo, tarde de 9 de Outubro de 2007

15/11/2007

XX Poemas para um Sossegado Terrorismo mais Um



Nota: se pudesse, teria juízo e deixar-me-ia de versalhadas. Não posso. São dos últimos dias, os XX + 1 poemas que se seguem. Está lá o que penso ser tudo: o que é pouco, decerto, para uma vida. É o que é. Alguns textos são rimados. Outros são apenas maus. Siga.

XX Poemas para um Sossegado Terrorismo mais Um

I

Envelheço devagar no vidro do café.
Estou bem, Mãe.
O museu do meu coração não encerra às segundas-feiras.
Talvez a vida me tenha envenenado de amor, Pai.
A antiga dona do café levou as flores com ela.
Tenho a mão esquerda onde havia um vaso:
sinto a pulsação do ex-coração vegetal ainda.
Os carros na noite sangram farolins.
Estamos a beber cerveja fria na noite do café.
Os meus amigos gostam de futebol:
as almas deles usam calções.
Hoje vi uma mulher bonita em sonhos.
Ela dizia branduras a um homem a meu lado:
nunca me olhou. Eu não a odiei.
As palavras são as cadeiras das palavras mesas.
Jornais abertos como borboletas nas mesas:
a Primavera a preto-e-branco.
Tenho um rio drenando a cabeça.
Não demorarei muito, como toda a gente.

Anoiteço devagar nas galerias da manhã.
Estou bem, minha Irmã.
Volitam as folhas: das árvores, do calendário.
Sim, somos ilhas, minhas filhas.
Bruxuleia a petróleo a luz dos meus olhos.
São já animais adultos, as minhas mãos.
Quadricula-se-me a visão do mundo.
Sabe-me a boca a lápis.
E um rio é uma língua: e fala.
Drena-me a cabeça, molha-me na cama.
E a manhã e a noite resfriam ouro e prata.
E os homens sós do entardecer corvoam, negros,
desde manhã tão cedo nas ruas do comércio
a que não desaguam fregueses nem carteiros.
E o vento irrompe aplausos nas árvores,
marejando-as de invisíveis plateias.

Chego devagar a cada tarde como a uma praia.
Litoral é o coração que porto – e estrangeiro.
Saio a ver homens e animais por caminhos
que o vento talhou nas fragas vegetais.
É poderosa a minha condição – poderoso desperdício
de hélio de estrelas e de estrume temerário.
Sobrelojas de casas-de-pasto efluviam bifanas
e sovacos de mulheres oleaginosas em cozinhas.
Pasodobla a rádio intermitências sentimentais,
não longe as galerias do teatro emitem galhardetes
dramáticos, a sete e quinhentos um assento de coxia.

Uma forja de cactos enrubesce ao sol da manhã.
Assombram-se pinheiros de si mesmos, na cal.
Casais casados pastelariam sevícias mínimas:
torradas e café-com-leite, folha a folha de calendário,
atentas as veias ao colesterol da melancolia.
Em campos aguados de arroz, longe, vigora o livor
das barcarolas de cana atiçadas por meninos sós.
E eu vejo isto como se tanto cinema fosse viver.
E desejo as boas-tardes aos que de noite passam,
na noite de cada manhã.

Eu digo águas frias correndo laranjais – e decerto
nada mais do que isso seja ourives na minha vida,
a não ser ter sido tão amado em menino
por tão poderosas sombras da infante casa, onde
vigoravam a arborescência glandular da Mãe
e o museu particular do Pai, sonhos-iguanas
enfrascados em éter e décadas e décadas
de pó – e de águas frias lavando ouro
e prata e laranjas e pedras e horas.

Demorarei pouco, as mãos na cinza, nestas mãos.
Gastrópodes estrelas me surgem elas, areias de leito
patinhando convulsas, na deságua do tempo.
Isto não apresenta mal algum, terça-feira.
Berlindes entrechocam infantis cristais em adros
platinados de plátanos ondulantes ao velho vento.
Passa um homem de chapéu, talvez o poeta
Afonso Duarte, talvez um gandarês triste mais
– e sem nome, como todas as sombras de chapéu.
Não passa homem de chapéu nenhum:
escrevo um poema na praia – perante mar algum.

Recolherei, cada noite, o pão de prata do mar do sono.
Se não durmo, ausculto: pedrarias e faróis: iluminuras
de um triste monge copista de estrofes desumanas.
O que pesco – uma cara azulada num vidro de café.
Portas envidraçadas de sanatório abrem incultos declives,
onde arde a raposa sua flama ruiva, corredora.
O circunspecto coelho será mastigado – outra vez.
E uma malga de sopa sossegará o versejador, ao frio.
Que é feito das manhãs atlânticas quando
minha Mãe, fértil ainda como uma margem do Nilo,
ainda brava, adquiria legumes e peixe como um
fernão-de-magalhães claro?
Que é feito dos pincéis de meu Pai sem as mãos dele?
Agora é tarde, não de tarde.

Os cus das raparigas na pastelaria são
de cortado tangerino ébano. Distraídas,
folheiam conversas e revistas.
Pedem folhados de salmão em massa-tenra,
tasquinham mentóis edulcorantes sem travessia
de Graham Greene, quando muito (tão nada) Paulo Coelho.
Braveja na tela o idiotismo nacional de
jornalistas e depoentes, ao sabor do faz-bem
e do fascismo que toda a ignorância é.
Mas eu estou bem, Mãe.
Envelheço de lado um pouco menos que de frente,
no vidro do café sangrado de farolins,
entre cacos de cerveja e cascas de amendoins.

II

As flores cheiram como animais quietos.
Dá-lhes-nos o vento insensatas partilhas.
Termos e sentimentos decorrem obsoletos.
Acordo de noite a pensar nas filhas.

Rosas graduam a cor do perfume.
Gatos penteiam, a língua, o pêlo.
Eu sinto na cava a ânsia do cume
e mesmo sem espelho ordeno o cabelo.

De resto, cordato, vou cheirando flores.
Lojas de bifanas ondulam aromas
de fritos, cervejas e outros amores
que cheiram a flores secas em redomas.

Do tudo que a vida mais me der à míngua,
recado trarei à pátria em língua.

III

Venha de onde vier uma luz de barcos
suas caras brancas traçadas a azul
sua humana fadiga suspensa no abismo
que a horas lunares cede pratas e mensagens

cá estarei.

Chegue de onde chegar um recado-retrato
à sombra da sala em obras completas
de Júlio Dinis ou de outra família assim
já com os seus mortos e o seu prestígio

cá estarei.

Tremule onde tremular o pavilhão bandeirante
não importa o castelo sem o torreão
medieva memória terei recebendo
a dor fundíssima dos que chegam mortos
de cansaço – ou apenas cansados de tão vivos

que cá estarei.

Cá estarei
enquanto for viva a centelha rubra
o crisol aceso a sopro e cuspo de ferreiro
sem estudos de alquimista
nem de poeta hidráulico.

Cá estarei
entre convenções europeias e africanos genocídios
apto a recitar de cor historiadores suecos
e suicídios suecos
e americanas edições da Verdade segundo
Cristo nascido no Massachusets.

Cá estarei.
Cá estaremos.

Depois não
ninguém estará

para isto.

IV

Que uma onda de manteiga morna te banhe o coração
quando frio tanto fizer que nem memória de mulher
te possa acudir ou sacudir o dito receptor de micromemórias
o mais das vezes vespertinas – ou seja de meninas.

Que a alma memorial de um trecho de barragem
imagem te seja no adormecer tristonho sob a Lua
sempre que a tua vida se pareça menos com ela
do que contigo meu querido anoitecido amigo.

Estas quadras te dedico e por elas não fico
senão por leal teimosia a mais humana.
Cada dia cada manhã cada semana
mais longe estou do que me te indico.

Crisolam ramalhagens outonais seu puro ouro
sua véspera mente na breve ideia.
Nem é preciso fazer à vida cara feia
que a vida é ouro é ouro é ouro.

V

Já vigiei de uma criança o sono.
Como um homem velho dormia a menina:
a mesma perdição salva por pântanos
e mesencéfalos.

Que normais animais somos
e tecnólogos.

Em torno cercaduravam janelas
e urbanizações.
Os dias eram mais rápidos do que horas.
E não havia sequer assombrações
o mais que havia eram desoras.

Vigiei dessa menina cárpatos ominosos
estremecimentos digitais das mãozinhas.
Ainda os tenho por minutos maravilhosos
mas hoje vivo entre outras janelinhas.

VI

Estou à espera.
Sei que em Paris as pontes amanhecem por dentro.
Nunca vi isso.
Amanheço todo sozinho.
Nunca fui a Paris.
Nunca irei a Paris.
O trabalho da espera é o maior ofício da distância.

Procedo a breves passeios pela zona da luz.
O mais é coisa da sombra: casas aposentadas
tinindo dentro alumínios moribundos.
Gente que não sai às vésperas de futuro
algum.
Gente como eu – que
não escreve
nem deixa
de esperar.

VII

Senhor Jeremias
têm por nós cruzado os dias
suas armas sem fio
tudo é
senhor Jeremias
um rio
ambos bem o sabemos
que dele vivemos
e nele estamos nele nos afogamos
com altíssimos índices de sobrevivência
quão mais baixa a audiência.

Senhor Jeremias
o senhor
que é do meu tempo
sabem tão bem que dar sustento
é dar alento à mortal coisa de morrer
fora do mesmo tempo
de nascer
o senhor Jeremias
sabe.

O senhor Jeremias não sabe.
O nosso tempo não é de senhores.
O nosso tempo já não é de saber.
Têm-se por nós cruzado os dias
em vez de nós.

VIII

Hoje já não
mas já foi
de bravos rapazes
o passadiço das ruas
entre comércios
que da palavra sobreviviam
como as igrejas
de azeite viviam.

Não hoje já não
anoitece como entardecia
e cada eternidade valia um dia
e era uma árvore num pátio
a patermaternidade
da luz do dia
e comer à noite
entre mantas
como entroutro
útero.
Nunca já como hoje
não.

IX

Homens crepusculares ocupam anoiteceres de homens
e de mulheres e de memórias animais.
Falo por mim, que muito sonho com o meu cão,
um senhor amarelo que comeu em um pátio
e ardeu entre montes seu particular incêndio amarelo.

A nós, um cão é suficiente para união
de nascimento e mortes afins
ao nascimento.

Digo eu, que tive um cão
e a um cão pertenci
como a ninguém.

X

É-me a vulgar vida a mais maravilhosa coisa
até pelo empréstimo pago a crédito
da eterna dívida:

dívid’ a estrelas
à ideia de Deus
a nada enfim

sinceramente

aqui na morgue
na berçária morgue

de nossos desdentados sorrisos.

XI

Não voltarei ao convívio dos homens que falam.
Preferirei dos outros o calamento transeunte.
Gajos parecem o que aparecem mas não calam
o que ignoram dizendo nada perante

quem cala dentro o sabido afora:
obras outras de homens outros válidos
que trouxeram do silêncio minuto e hora
de suas mulheres e vidas e sólidos e líquidos.

Não, não sobrarei da fala coisa alguma
que a gente pareça coisa nenhuma.

XII

Deito à noite na cama o corpo no bosque.
A sudoeste, fulgura a jóia da água do rio.
O suave cianeto da melancolia torporiza o deitado.
Comi na cozinha sentado entre árvores.
O televisor da Lua filmava de prata móveis e fragas.
Deitei-me à cama de caruma em flanelas.
Os outros combatentes, entre vivos e mortos, ocupam
posições individuais: retratos, holopresenças arbustivas.

É muito bonita, a solidão narcótica.
A memória é uma aguardente velha: ardente água
na boca do deitado em lonas de camurça.
Víveres enlatados bibliotecam estantes brancas.
Peças de fruta pepitam fosforescências anoitecentes.
Pássaros negros pousam na barra da cama.
E o rio toca a rádio de peixes-cantores.
E o sol da manhã é possível no passado.

Elogio a jóia da água do rio: ela marulha
espumas de cristal que dão de beber às árvores,
a água sobe por dentro as árvores até dar flores,
frutos e pássaros aquíferos tremidos pelo bravio
vento alto, o vento astronáutico flamejando
diamantes de estrelas no céu do meu quarto.
Estou deitado no escuro e não escrevo e sei que
escreverei todas estas limpas máculas manchas mágoas
amanhã, como ontem, na mata que a sudoeste
fluvia o silvestre desamparo do animal urbano
em que me tornei, desertado pela infância e pelo futuro.

Deito à noite o meu corpo
fora.

XIII

Quando somos o único homem e a única mulher do mundo,
outra vez primeiros, outra vez derradeiros,
e nos torcemos como toalhas na contorcionista ginástica
do amor corporal, a cor do corpo oral fala e diz
amarelas cinzas do primeiro último amor,
águas e leites e sais e clarões de incêndio
lavrando a cama como a um pasto ígneo,
a sul os pés de unhas de cutelaria, a norte
a morte breve da expulsão de códigos e ânsias
tão por vezes solitárias no auge de céus e infernos
trazidos por cada um quando somos para que
sejamos, se ainda não do, ao menos para o outro
e a outra.

XIV

Era tudo talvez amanhã de novo
a bordo de um comboio adentro arrozais
a cabeça calma mais do que o coração
rumo a uma tarde solar numa praça branca

não contariam para nós mais
os anos descontados um a um de uma só vez
como bagos de chuva num zinco de décadas
nem as palavras não ditas em adequados crepúsculos
do amor magenta da memória paleta

o meu corpo bem lavado e bem vestido
dinheiro no bolso do lado do coração
e jornais estrangeiros na pasta de cabedal
adejando a cosmopolita liberalidade do viajante
a ti rumo.

Era já foi será nunca mais
que as vidas repetem das vidas o não-sido
não o pode-ser e assim é

de comboio ou a pé.

XV

Sangre a língua sua mínima rosa
entre dentes ricocheteça latinismos
mais livre é quem a ela preso goza
ressonâncias de bárbar’ arabismos.

Edulcor’ estremeça entidade
a glotopátria mater de filhinhos
que à mama dela mam’ a identidade
vogal em consonância de versinhos.

XVI

Matéria de rio emitimos para o mundo – e são
os nossos filhos no tempo.
Depois à noite sucede a noite – e toda a noite
lhes procuramos as vozes no escuro – como se deles
filhos fôramos,
afinal,
filhos da matéria fluvial.

XVII

Cadências dobram éreas na solidão sineira.
Almas piam, pias, corredoras de veredas.
Sossega insone a povoação inteira,
excepção minha, qu’inda corro alamedas.

Um gato espertino perto vigia
destino que não sondo comitrágico:
vê ele melhor de noite que eu de dia,
’ma coisa é ser humano, outra ser mágico.

Em torno, a pobre aldeia calcifica
seus ossos cor de casas em destroços.
Da vida toda só memória fica,
depois não fica, fica só a cor dos ossos.

Eu gosto de em tapetes outonais
marejar pés chorosos pelo chão.
Não sou perante os gatos como o cão,
nem me acorrem uivos animais.

Não. Mais uso, eu sozinho, o costume
de ter perante os sós a só doçura
de carburar por dentro o azedume
e fora me dourar de lit’ratura.

Cadências dobram éreas
etc.

XVIII

Vi-o barbeado e deitado para dormir
de fato completo – de facto, completo.
Sorria, sem ele, um mínimo de boca dele,
sob o bigode ainda não morto, afirmativo ainda.

Lembro-me disso como se amanhã fosse.
Um homem colecciona coisas de rapaz.
E um irmão morto é coisa de amanhã,
por mais insultos que nos sobrem de ontem.

Eu digo a minha vida toda aqui – menos
a minha vida toda, que toda só parece
e nunca é – excepto nos recibos das
grandes superfícies, não o mar, mas comerciais.

Digo mais: digo esta atenção atirada à sintaxe,
que a tudo ordena desde que livros houve,
assim de nós tirando a genética memória
em de uma de papel troca.

Vi a circunspecção em roda circumnavegadora,
vigorava o esquife envernizada geometria.
E nunca mais foi dia, tirando eu talvez
as mulheres nuas e as filhas nuas que delas

me brotaram em substituição nenhuma do que,
vivendo-nos, nos mata. Pode ser isto um caminho,
até em delicada ode de senhor pecto, circunspecto,
onde o coração treme primeiros colesteróis.

Vi-o barbeado e pronto, na tarde pincelada
a borracha azul com graduada cinza de
estragados licores para natais mais alguns.
Vi-o – e vejo-o ainda, como se o beijara

fora de órbita. Acontecimentos vagamente posteriores
certificaram-me sobrevivência – que só pós-vida
era, sempre e afinal, entre móveis e dentes,
retratos e palimpsestos, cacos e cacos.

Tenho saudades do gajo – e o gajo aqui.

XIX

Agora é tempo ainda intermédio.
Não consta, à cercania, algum bombismo.
Muitos são os anos de nenhum tédio.
Ser triste é um sossegado terrorismo.

Um verso, agora, há-de ser a minha vida
quando a leitura for do verso feito.
Quem caminha, caminha a direito:
e torto é escrever a coisa lida

na plen’ antecipada sorte certa.
A morte não fechou a vida aberta,
a vida não fechou a morte certa,
ser triste é um sossegado terrorismo.

XX

A minha boca é de uma língua.
Antigamente já (foi há tão poucos anos)
o meu amigo Tó tinha uma língua na boca.
Morreu de ambas, um nome técnico qualquer,
talvez cancro em ambas.

Eu digo: durmo num bosque na cama,
uma mulher é um rio,
uma mãe é o mar,
as meninas são água de água,

cá estarei.

******

Tarde a Baixo

Pouco somos à instância da luz.
Vale-nos a falsificação da memória.
Ardemos frios em a mesma glória
da consumpção mesma que conduz

cada um a seu triste pasto ominoso.
Tornam cercaduras, clarões de rosas,
os olhos bem fechados de puro gozo
das não vividas coisas maravilhosas.

É a tarde. Rua a baixo descem os peões
buscando ossos, latas, cereais.
Escusado é dar-lhes revoluções:
no mais vêem o menos, nunca o mais.

Atento à lei, o doce rapazinho
vê do comboio marejados arrozais.
Tem dentro um barco, marinheirinho,
nos olhos água, cloretos, sais.

Não conta, das gentes, a pura ânsia
que a uma varanda anseia a Lua.
Ele há no mundo muita distância
entre gente e gente e rua e rua.

******

Foto: © Sandra Bernardo – Grande Sanatório do Caramulo, 11 de Novembro de 2007

Textos: todos no Caramulo; noite de 12, manhã e tarde de 13 de Novembro de 2007 (I); tarde de 13 de Novembro de 2007 (II a XI); tarde de 14 de Novembro de 2007 (XII a XV): noite de 14 de Novembro de 2007 (XVI a XX); Tarde a Baixo (tarde de 15 de Novembro de 2007).

11/11/2007

Eu Saio para o Lado da Púrpura sem Mal Algum, Sábado




1 (Nenhum Mal e Nenhum Número)

Hoje já quase não é o que foi: sábado, 10. Não tem mal.
Dediquei uma grande parte do dia a um trabalho que me deprimiu.
Era apenas uma revisão de livro para uma editora amiga – mas deprimiu-me.
O tema da obra é simples como a vida: as alcunhas de há meio século numa vila do País.
A autora do texto é uma senhora que conheço.
É de idade já avançada – como avançam os barcos no mar até à descoberta de não haver cais – ou sequer praia – de retorno.
Entrei na intenção narradora e na intenção narrativa (não, não são a mesma coisa).
Quando escureceu, larguei o trabalho e vim entristecer para aqui sem livro.
Trouxe o caderno comigo.
Antes, por causa do frio, fui ao quarto, tirei a roupa de fora, entalei-me no pijama, revesti-me e pus-me na breve alheta destoutra vila.
Não tenho a idade da senhora do livro, mas, como ela, estou já a salvo da juventude.
Agora, ando a ver árvores, candeeiros, ruas devassadas pelo favónio da alheia memória.
Alheia, sim: eu não me lembro de nada.
Sábado? 10? Não sei, talvez.
Estou pronto para a viagem seguinte: algumas palavras para uma não-posse, para uma resignação madura, para uma disposição dos já-não-factos – ou dos ainda-não-actos.
Estou pronto.
A televisão da pastelaria ladra americanices – sou-lhes imune.
No pátio, os castanheiros regelados atiram pedradas verticais – não colherei os frutos.
Vai ser tudo em português – a língua das pessoas da minha rua, incluindo as que já deixaram a rua, o idioma e a pessoalidade.
Vai ser o que for – e se por acaso já tiver sido, sê-lo-á na leitura, que a tudo volve vento e praia, mesmo que à praia – ou sequer a cais – não volvamos já, um destes sábados inumeráveis e inumerados.
Mal nenhum.

2

Já não tenho um coração de espadarte.
Já andei com um, deixei-o sair, um a outro
não volveremos.
É boa coisa, isto.
Um homem deve usar um coração de homem só até
lhe ser possível um coração só de pessoa
– de peixe, não.
Nem por espada.
Nem por arte.

3

Toca-nos a idade com preciosas mãozinhas
descostureiras.
Gosta tanto, a desmarinheira, de nos avançar
no mar.
Acho graça a essa descomunal rapariga
abreviadora.
Como de nós, rapazes, faz morcelas.
Como de vós, raparigas, faz naperões.
Só os gatos reciclam a eternidade dos velhos
pátios, onde pessegueiros e bicicletas
enferrujam com o céu nas costas
como um muro.
Tépida orquestra, apesar dela, ou
por ela,
marina passadiços de música
em feira não de praia longe – e somos
lá, dançando bebidas frescas à viração
de carrosséis ternários
para a pobre áustria da nossa
idade.
Uns estamos vivos.
Outros somos mortos.

4

Mãos que não precisam de flores para sê-las:
estrelas amanhecendo na noite de sábado,
em algum salão de baile para divorciados,
de quebradiço papel tais flores,
mas flores.

5

Ouço na noite os galos roucos como lobos,
à Lua expostos, eles também, como horas
de pedra.
Vivem mal em casebres de madeira e arame, os galos,
entre mulheres estúpidas e cães narcotizados.
Em torno, no mundo estrangeiro, caem
helicópteros e cometas, camionetas vermelhas
cheirando a fritos vociferam tosses eléctricas,
rapazes atiram pedras à água vertical das janelas,.
Sinto dos galos a sanguínea indignação,
aves reais apenas reais,
aves nunca mais.

6

Se assim o entenderes, senta-te aí com a tua bebida.
Não tragas para a mesa o que passaste
– para que eu não tenha de passar por ele,
vós dois bastais bem a tal passagem
e à minha bebida.

7

Era sábado ainda agora
ontem, amanhã,
mal também já não faz,
fará.

8

Há pontes.
Há o frio da noite.
Sempre tão gémeas, tais entidades.
Sempre tão únicas, tais identidades.

Já olhei muitas vezes a Outra Banda.
Estava frio, quase sempre.
A noite também, a noite também
Estava.

Sei onde são as pontes.
Desconheço quem as passa.
Eu não,
todas as vezes.

9

No céu dos olhos anoitecem reconhecimentos
como pássaros não bruscos, antes lentos.


Há crianças encerradas em delas a infância
e em casas magras como galos pobres.
Crepita no espaço a tempestade de cabelos eléctricos.
Temem-na e adoram-na, à tempestade, as crianças.

As crianças alimentam-se pelos olhos, de olhos ouvem
e hão as revoluções e as memórias antecipadas.
Ouvem os pais no quarto havendo-se escuramente.
Pessegueiros e bicicletas ardem no frio humaníssimo.

No céu dos olhos anoitecem reconhecimentos
como pássaros não bruscos, antes lentos.


Recordo a fala estalactícia dos móveis no ar preto.
Era tudo noite, mormente nos retratos.
Toda a casa sarcofagava o futuro, a não-presença:
digo: o céu dos olhos que olham a criança.

No pátio do pessegueiro, a bicicleta, os cacos
de louça e de gatos, a pulsação venosa das horas,
a queimadura do luar no muro, a falta
injustificada do sol marinho na terra seca.

No céu dos olhos anoitecem reconhecimentos
como pássaros não bruscos, antes lentos.


O futuro como uma mentira bem contada e mal dita,
os homens do tempo em que olhávamos para cima
para vê-los. Suas bocas arroxeadas pelo vinho e pelo
operariado, em setembros emoldurados por janeiros acabados.

De angolas e moçambiques chegavam fornadas
de ex-porvires cristãos, tudo tão parecido com galileias
e pragas de profetas escumando civilizações
de um evangelismo fundamentado no subsídio

e, naturalmente, em Deus.
Nós já anoitecíamos há oito séculos, que os egiptos
tinham sido drenados pela providência e pelos
microfilmes americanos que nos encerravam,
infantis, em nossas não desenterráveis tróias.

No céu dos olhos, no céu dos olhos.

10

Talvez me chegue ainda a carta que o carteiro
traz escondida no sovaco como uma coronha.

Não sei. Penso que não. Julgo que não. Julgo que penso.

11

Talvez eu recorde (mas não o garanto, posto que o escrevo)
rapazes numa fímbria de bosque, ao sol de um junho,
rápidos os diamantes altos no folhedo alto.
Uma recordação assim talvez me tornasse feliz,
no sábado que acaba como uma maré sem barcos.

Rápidos rapazes rapaces, torvelinhadores de rios, não:
um só rio – talvez um só rapaz.

Uma fragrância de maçãs azedas e gatos mortos,
no torno do açude. Distante, a postal-cidade
agremiadora de bardamerdices doutorais e papaias outras que tais
– como as do porvir e das famílias e dos empregos públicos.

E não éramos filhos de ninguém então, então. Éramos
éreos e não venéreos e sérios e sóbrios – e a diferença
era o não-lembrar para a frente, era o perfume
do guisado que crepusculava os regressos

do rio.

Rápidos, rápidos rapazes.

12

Ainda te hei-de rever à chuva na rua,
os retratos da sala todos na rua, na tua
chuva, na tua
rua.

13

Sim, claro e decerto: as antologias do futuro
são modernismos passados. Algumas coisas,
ainda assim, ficam: certos lapsos da língua viva,
bifurcadora do coração; incertos licores exsudados
por inglórias matrizes de poucos anos e muitos
bilhetes.
Eu, se pudesse, mandaria traduzir os nossos poetas
em verso.
Mas não no posso, que,
bem mais que eu,
podem mais
os medalhismos pátriomunicipais.

14

Não me treblinkes nem m’auschwitzes,
que eu não ando à buchenwalda.
Nem me losálames nem me colditzes,
qu’eu só hiroshimo com calma.

Littlebighornas por defeito
quanto buçaco eu por mim.
Se normandias a preceito,
também ardeno eu, enfim.

Aljubarrotas só pescada,
bêbêcês degaullas: palha-vã.
Comigo tu não, amanhã,
kennedyporcas enseada.

Por isso os dois, entre rapazes,
façamos aqui de vez as pazes.

15

Dizes-te pobre e quando vais ver
todas as pedras e todo o ar
te pertencem como lhes pertences
como aliás pertences tu a tudo
o que disseste e o que não

por pura pobreza.

16

Eu saio para o lado da púrpura.
Arminhos frios rendam geadas
num tapete de laranjas públicas.
Tenho toda a confiança em a nossa
cobardia. Dela me alimento aliás
no lado lilás que arraia
armazéns industriais a agências de viagens
ou de emprego.
Churrasqueiras estalidam crestações.
Lojas de móveis concorrem tábuas vãs
contra garagens de pesados internacionais.
Quantas são as crestações do ano?
Quantas as estações do dia?
Podes falar assim como te falo?
Podes calar-te assim como te calo?

Há por vezes surpresas nos jantares aniversários.
As esposas revoltam-se muito entre detergentes.
E os aturdidos senhores maridos de todas por nada
tossem aos filhos impropérios economicistas.

Eu já não digo essas coisas.
Venho para aqui e faço versos.
A mulher dorme-me na paz adida – ou
adiada.
Pulsa-me pelos corredores a gata egípcia,
farolim de ouro-lazúli,
exploradora e colonialista.

Gráceis porcelanas em pastelarias quinquilham
barros rachados
a já muito preço vidrados
de pubercúleos tineijas
de videoconsola.
Assiste-se entretanto à bola.
É sábado,
calma.

A púrpura sai-me do lado direito
o do coração
passa-me o tempo
passa-me o sábado
e eu não sei

não.

17 (Nenhum Número e Nenhum Mal)

Jogam na televisão Vitória, o de Guimarães, e Paços de Ferreira. Branco contra amarelo – como o ovo. Um menino chamado Fábio range dentes lácteos numa teimosia de chocolate. O irmão mais velho (herdará as fontes despovoadas do pai, o olhar despovoado da mãe) faz de adulto. A mãe é uma rapariga igual a uma palmeiranã – se tais legumes vestissem blusas azuis que tais. Uis. Ais. É o sábado em sua glória dele. Já não estou a pensar no livro que amanhã terei de rever até o fim – até que a nenhum cais – ou sequer praia – chegar.
Digo entretanto que

18

Uma loja diz-te como a vida te diz:

Desculpe, mas disso não temos.

19

Há um celibato essencial no olhar existencial,

não há?

20

Vamos outra vez falar das chuvas que esclareciam,
no início da adolescência, a impotência mundial
da criança.

Era quando chovia na própria idade.
Das corredoras alegrias não sobrava arruada.
Já não se podia viver à vontade.
Nem já se podia fazer nada.

Vamos outra vez falar
etc.

21

A nossa Mãe é hoje o mais imóvel
móvel da cozinha,
onde outrora urdia os guisados do regresso
do rio.
Seca devagarinho como uma especiaria
não já especial.
Cresta-a o salitre sapador de fontes.
Dela os pulmões motorizam uma asma
inequívoca.
Dela os pés tortulham elefantíases lentas
como recados não atendidos.
Embaciam-se-nos os olhos da nossa Mãe:
janelas à chuva de uma terça-feira
absoluta e maternalmente
particular.

E ainda assim
lhe chamamos lar.

Até que nos telefonam
lamentando o telefonar.

22

Se os armazéns vizinhos aumentarem a frota,
suspeitarás de inteligências que não tuas.
Se tiver sido há trinta anos, na mesma
suspeitarás do mesmo.
Envelheçam entretanto as buganvílias e as
mercearias, mas disso não darás conta
antes que te ameacem o armazém
– e a frota das tardes em que vinhas
de trabalhar
e tudo só não podia ser mais
porque já tudo era.

23

Eu já olhei e já não vi.

24

Tinha de ser na sequência do pessegueiro e da bicicleta.
Tinha de ser dito que a Roberta Flack não matou
o vizinho do NSU que se espetou contra a infância.

Nessa altura, a permilagem matava muita criança ainda.
Mas um vizinho morrer de NSU contrariava os pátios.
A vida não tinha de acabar em 1973.
1972?

Sábado.

Textos: Caramulo, noite de 10 de Novembro de 2007.
Foto: também.

10/11/2007

Vidros no Chão para Mãos Azuis, Ternas e Obscenas




Acordo em suavíssima amargura.
A janela do quarto demonstra que a terra não pousou ainda no céu.
Abro os olhos para que os sonhos caiam como vidros ao chão.
O sol não virá hoje.
Sei-o por causa das árvores.
Vou à varanda consultá-las.
São como gente na cinza.
Algumas são incêndios frios.
Por toda a casa, os móveis emitem seus morses.
Os objectos não pesam.
Flutuam na cegueira translúcida.
A lareira apagada como um coração sem portador.
Os quadros sem cor nas paredes apagadas.
Os retratos de gente a que pertenci como um cão.
É uma manhã nocturna, mas estou preparado.
O meu corpo fala-me.
Ele diz-me ternas obscenidades, que tornarei versos.
Sou este homem nesta hora.

Na cozinha, a taça diz os frutos.
Café chilreia na cafeteira italiana.
Impressas a contraluz nas cortinas, as árvores fumam gaze.
Sento-me perante a chávena azul.
Olho-a como a um livro.
Olho-a como a um livor.
Entrego-lhe os meus pontos.
Descubro as minhas mãos em torno dela.
São mãos azuis.

Sou este homem nesta rua.
O parque respira como um animal transparente.
A minha gente fantasmática ambula pelas ruas vegetais.
Sei que sou, não que hora é.
Espera: esta visão é cristal líquido.
Geadarei passos frios na revoada de ouro.
Outonam-se-me as folhas, que encaparei no caderno.
Devo receber tudo isto.
O cão madrugador.
A pincelada hipnótica do corvo
que nunca adormece
nem acorda nunca.

Texto: Caramulo, noite de 9 de Novembro de 2007
Foto: Sandra Bernardo, Caramulo, manhã de 3 de Novembro de 2007

Canzoada Assaltante