0
(Anúncio e Arranque)
Vivo agora a idade em que até os galos da aurora
são de cassete.
Aceito e pratico a minha idade.
Escapo como posso pelos interstícios da antecipação,
pelas intestinas vilosidades da fácil profecia
relativa ao acabar por acabar.
Levanto-me da banca após completar
o trabalho do dia.
Saio à rua, devasso uma praça, sento-me
para restabelecer os oráculos dos versos.
Ei-los, aos vernáculos oráculos perversos versículos.
1
Conto ouvir um pouco mais os galos da aurora.
Trabalham na estrada homens motorizados.
Acordo sempre para este cinema de cinzas, à hora
a que a cassete rebobina os ontens estremunhados.
Sinto vir os roucos jograis aos gelos da aurora.
Encalham na enseada jovens embarcados.
Abordo sempre este teatro de brasas, à hora
a que a cassete rebobina os amanhãs estremunhados.
2
Estou tão vivo, que até dói.
Basta-me a mínima pedra na mão menor.
Se vejo um pássaro, param-me as pernas.
Vou de paralisia em paralisia:
todas as noites e todo o dia.
3
Não atiro pedras a pássaros.
Atiro-lhes versos.
Eles não caem nessa.
4
Já vi um pássaro morrer em pleno ar.
Sem que o alvejassem, sem violência.
Como uma nota de música partindo-se sozinha,
sem instrumentista.
Eu era menino quando vi.
Tenho agora 43 anos.
De vez em quando, dizem-me:
– Fulano morreu.
Eu pergunto o que já sei:
– De quê?
Dizem:
– De ataque cardíaco.
Lá está o pássaro, outra vez.
Mas não remoço quando o revejo.
5
É absolutamente correcto que no fundamental
se esteja sozinho.
É absolutamente certo que no fundamental
se seja sozinho.
É certamente correcto que o absoluto
se fundamente sozinho.
Trá-lá-lá trá-lá-lá que no trá-lá-lá
se trá-lá-lá trá-lá-lá.
6
Florescia da mão do pintor o revoluteado botão
de espécie sem nome nem botânica possíveis.
Era ele uma espécie de deus criando flores
ao capricho do traço e da luz e da cegueira.
Mais deus era ele quão mais homem: um
operário de flores improváveis dias adentro.
Nem ele se apercebia, mesmo à luz do dia,
da criança que o via nascer flores para dentro
do exacto grau de tristeza do coração em pureza.
7
Glória e miséria acabam ambas
em decrescente ditongo, depois
de breve voo quase alto,
quase proparoxítono.
8
Toda a massa da árvore na retina
como uma catarata benigna.
É segunda-feira.
9
A doçura do cansaço já me crepusculizou,
boamente, em não reversíveis degraus subidos.
Era quanto tudo parecia setembrizar-se-me:
uma idade de fogo amornado pela infância
do Outono.
Já docemente jantei coisas grelhadas sem pressa
no antevir de modorras físicas e cinéfilas.
A cidade, torrada de horas duras, amaciava
um anoitecer de choupos debruados a rio.
Pèzinhos de tricanas branquejavam a meia de neve
antidotada pelo brevíssimo veneno da chinela preta.
De Santa Clara os pastéis, de Ançã os bolos, de Tentúgal as folhas
– tudo te dizia: a vida é toda doce toda a vida.
Ando tão-só à procura do cabrão que me enganou.
Julgo descortiná-lo, quando faço a barba.
10
Tem, também, a humanidade feminina
seu Israel e sua Palestina:
daqui, a Irmã/as Filhas/e a Mãe;
dacolá, as outras do total.
Eu vou fazendo de ONU, mas mal
também.
11
Escrevo com a mão direita
para contrariar quanto possível
o lado do coração.
12
Já vi tanta gente
e tanta obra
sérias
que nunca foram,
são ou serão
a sério.
Envelheço.
13
Não
não nunca
tu nunca acredites
que eu tenha
seja o que for
muito menos
cruzado arizonas
e pacíficos
banquisado glaciares
e salvado
sifilíticos
não
não tu nunca
tu nunca acredites.
O mais que me foram
foi em rapaz
até já morreu o senhor
que era aliás
muito amigo
do meu pai
e até
de minha mãe
embora
a horas
diferentes.
Não
eu nunca
olha tu nunca
digas
que eu
não.
14
Doura-se toda a pele do ar em laranjado couro
quando dá de entardecer na minha cidade.
Alt’anacrónica dá a torre da universidade
horas seculares, graves, barítonas de besouro.
Pela chã rua, futricam os empregaditos.
Moças de talher querem casar e ser mulher.
A vida mondega barqueiros e barquitos.
Do lado de cima, já nem Deus nos quer.
De Santa Isabel, ou Clara, património.
Ser de uma cidade é ser do calendário.
É pena os transportes não terem horário,
mas cumpre-se em tal o vigor uno e vário:
se Cristo beijou e teve calvário,
beijo-t’eu, Coimbra, s’alixe o Demónio.
15
As pessoas emanam palavras que depois elas
(as palavras como as pessoas)
nem sabem o quão dizem delas.
16
A quem muito quero
quero
venha quando durma.
17
Sou de uma espécie igualzinha ao resto da exposição.
18
Nos barracões de pedra de Lisboa
guardam em ar condicionado
pinturas pintadas por sobrinhos-netos.
Cá fora, entre as colunas,
dormem os sem-tios-abrigos-avós.
19
Dou-te sem generosidade
a linha e a sombra
e o Conrad quiçá mal traduzido
e a mercearia congelada
que não sabia se podia
adiantar cozinhada.
Dou-te uma merda pessoal
que é a minha merda de pessoa
um artista especialista em fanicos
e voos de pássaro
traçados a tinta de baixo-forno
por ido pintor.
Dou-te tudo o que recusei.
O que recebo, nem sei.
20
Gloriosa continua, contínua, a luz lateral
de Vermeer, esse holandês de antecipação
que só sobreviveu ao nazi 1940
por, precisa e luminosa e lateralmente,
se ter antecipado.
Eram bonitas, as criadas dele,
que passaram,
como, afinal e aliás e não,
passou
a luz
de lado,
sempre a vir,
a Vermeer sempre.
21
A gente tem coisas que só contadas.
Num fim de bar, resfriada a noite, olhamos,
nem sei bem,
umas letras-reclamo luminosas no escuro,
olhamo-las e dizemos:
– Carago, olha o Natal.
22
Não saberá Aquiles encontrar Nestor,
como não Arquimedes, botija de gás.
Uma coisa da vida é buscar amor.
Outra, rapariga. E outra, rapaz.
23
Sentem as cores cheiros.
Fundos fiordes escurecem meninos.
Ele há Magalhães, ele há Abrunheiros.
Ele ’té há Gonçalves e mais Constantinos.
24
Acresce de lado, a pureza da morte
no intervalo da costela. Tumbatumba o coração
contra todos os simbolismos, ávido só de água
vermelha, de incolor ar, nenhum.
Tremem um pouco, as já magras pernas,
na defecação como no precário duche.
Amarelejam as unhas como gambas
dadas à icterícia de pobres, pelam-se os dedos
de não eróticas excrescências de cartucheira
altaneira. Entretanto, tosse o pulmão
direito uma massa ao canhoto de todo estrangeira.
São carpetes de alcatrão, da garganta vozeando
arrestos devindos do peitoral crude.
Bebe-se muito, fuma-se muito.
Os dias ecoam noites a fundo.
De lado acresce, a pureza do mundo.
25
Suicidou-se a namorada de um cantor norte-americano
quando ele estava na Europa.
Julgo que nessa altura eu ainda não tinha feito a tropa.
26
– Os pés não te mordem
– dizia o meu Pai quando eu
com os meus andava
ou
a ele
lhos lavava.
27
Vê, vê: quão formosa é a tua cristalaria invisível.
28
Tenho humanos dentro de casa (dentro da cabeça)
que fizeram as fábricas.
Eles acabaram os exames, eles
começaram nas fábricas.
Havia um sistema.
As máquinas nunca afagavam, só
ofegavam.
Tenho esses humanos quando escrevo,
tenho esses humanos quando não escrevo.
Eles foram fabris.
Eles deram coisas que saíam em caminhões.
Caminhetas. Camionetas. Camiões.
Tenho humanos dentro.
Como o que eles fizeram.
O prato parece-me familiar,
este de que como.
29
Lamento muito, mas agora não assisto
ao melcair do ouro no horizontatlântico.
Tenho frequentado rincões escuros,
que de mar têm, se tiverem, algum poster.
Lamento tanto, mas não assisto já
ao que é de borla: o sol e o mar e alguma
filha em transe de adulta referência
levando-a ao mar e ao sol.
Onde é que me enganei?
Não no verso, que, perverso,
diz mais (palavra, gente) do que sei.
Ou sou.
Ou era para ser.
Importa nada.
S’alixe o Demónio.
30
Problemas na autarquia tal do país tal.
Gasoleaginososutilitários voltam de costume a casa.
Pode ser que em dezembro haja natal.
Essencial é que não chumbe o grão a asa.
Despedimentos na fazenda e na marinha.
Já se não pode aparar as unhas.
Ouvi dizer que a desgraça não é só minha.
Graça por graça, sempre é preciso ter umas cunhas.
Qu’é dos meninos gulbenkianos lá de fora?
Voltaram eles, definidores, cá ao torrão?
Estão eles suspensos de algum cabrão
que lhes repita BBC e Inglaterra,
olhe-menino-se-não-mama-atão-não-berra,
ou há problemas na autarquia do país tão?
31
Recebo pequenos suaves milagres, eu também.
Tenho corduras que nem imaginais.
Indo ao cinema sozinho, ouço dos pais:
– Olha, se sais, volta ao pai e volta à mãe.
Ind’oje, sim, recebedor disso. Fora, o porto abarca
barcos tão grandes como viagens. Diz-me a Parca:
– Olha, se entras, volta sem vez mas de voz com
o som de quem já recebeu verso e rima e alto e bom som.
Sim.
Sem.
Com.
Texto: Caramulo, tarde de 23 de Julho de 2007
Fotografia: Coimbra, tarde de 7 de Julho de 2007
3 comentários:
Olá Amigo.
Estava aqui a olhar para o teu trabalho e lembrei-me do furo que o Ti Zé Torrado das Castelhanas mandou abrir era eu puto (talvez há 15-20 anos). Aquilo na altura era novidade e qualquer coisa que as pessoas não percebiam muito bem porque: corria água pura, boa, límpida, dia e noite sem parar. Passado algum tempo deixou de ser novidade, mas a água lá continuava a correr sempre com qualidade. Tu és como o furo do Ti Zé Torrado, eu é que nem sempre tenho boca para a tua água.
Parabéns pelo teu trabalho.
Abraço,
Filipe
Grande Filipe: obrigado. É uma mensagem que me tocou, cá dentro.
Uma imagem lindissima, Filipe. O Daniel merece-a, e tu conseguiste dizê-la "à Daniel"!
Enviar um comentário