Sonhei esta noite em ti.
Toda te debatias em mim.
Em mim e em vão:
emalhada como
um peixe branco – e eu não
te perdoava um centímetro,
uma escama.
É certo que a vida te não
permite sentires-te
maravilhosa.
Sonhei que era esse
o meu papel – e que neste
o deveria depor.
Faço-o publicamente.
Sonhei – não estávamos
doentes.
Eu tinha ido buscar-te à
saída do trabalho.
Era perto da piscina municipal.,
perto da escola industrial.
Anoitecia ao frio: tudo o que existe,
invisível embora, anoitardecia.
Mulheres gordas, sentadas
na paragem do autocarro,
esparramavam as nádegas
largas como jornais abertos.
Escorria sangue de suas
nascentes verticais.
Lembro-me de não sentir
horror: eu
esperava-te, tu virias.
Era ao contrário da
vida.
Engraçado: no acto, pareciam faltar peças.
Às vezes, eras só um olhar sob a
meda de trigo do cabelo, sob um
sol particular
que me dispensava. Eu não
fazia de galo galante. Não.
Havia delicadeza da minha parte: força
bruta caramelizada pela certeza e pela
esperança bem fundamentada.
Mas depois as pernas regressavam,
poderosas e convocadoras.
O aríete tomava-te.
Todos os homens da tua vida me
empurravam.
Seivosos, raivosos
quase, fitavam-me
esses dois cegos: os mamilos,
negros como
rosas da noite.
“O mapa dos rios do sangue” – li-te
esse verso outra vez: e desta vez
ouvias, compreendias e recebias.
De modo que o meu sonho
repunha a realidade em seu sítio.
Voltavas a ser a filha de ninguém e
a mãe de toda a gente,
com a minha especiosa ajuda.
O mapa dos rios do sangue,
as mulheres sentadas
esperando o autocarro
ao entardenoitecer.
Fumar mata. Amar também.
Ter amado, já não.
Eu apresentei-me ao acto como
ileso – por saber que sonhar é
como melhorar a memória,
mas à custa da vida.
Não estando, não és.
Deverias ser um
peixe branco de olhos furta-cores
como, dos barcos mortos, o óleo
na água.
Sonhar mata.
Sonhar queima o trigo.
Evanesceste, desvaneceste-te, adeus.
A piscina e a escola são reais,
serve-as o autocarro vazio
que pisa o sangue das mulheres
que esperam por ele,
que não por mim.
2. Verificação e Cabimento
Cabe-nos sempre uma mãe
que nunca mais foi mulher.
3. Soneto Açucarado por Ela(s)
Edulcoro todo, quando recordo o açúcar.
Amarela palha viva encimava a pessoa.
Era, como o milho, boa. Da nuca, ar
suava perlas mínimas. Flash. Na boa.
Que rica coisa, calada, despia.
Cetim coçava, se se coçava.
De noite, ela era um trecho do dia.
De dia, a mesma noite convocava.
Mas há aqui recado, algum “éffet de réel”?
Ele há: Natália, Dulce, Isabel.
Gabi, Susana, Muriel.
Íris, Ana, Valentina,
Xana, Maria, Cristina
– mas sobretudo Isabel.
Caramulo, tarde de 19 de Fevereiro de 2007
1 comentário:
De palavra em palavra um grande poema à Mulher.
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