06/11/2006

A Carteira - histª 35 do Anoitecer ao Tom Dela

a emitir
2ª feira, 6 de Novembro de 2006,
em 91.2 FM
e/ou
entre as 22 e as 23h00.


1
Achei na rua uma carteira sem dinheiro. Eram quatro da manhã, eu voltava para casa a pé. Vinha cansado, como sempre, do turno da fábrica. A carteira continha documentos vários. Alguns tinham fotografia. Por não ter dinheiro, pensei que teria sido roubada e depois mandada fora.

2
A primeira ideia foi meter a carteira num marco do correio. Dizem que é costume fazer assim. Mas não foi assim que fiz. Levei a carteira para casa. Tinha decidido passar pela esquadra de polícia no dia seguinte e deixá-la entregue à autoridade. Quem me dera, hoje, tê-lo feito.

3
Por ter feito turnos duplos, tinha pela frente dois dias de folga. Deixei a carteira no pote das chaves à entrada, fui à cozinha comer alguma coisa e deitei-me. Dormi sem sonhos, pela última vez na minha vida.

4
Acordei às onze e meia da manhã e não consegui reatar o sono. Sem grande pressão, a água do chuveiro mal era capaz de fazer disparar o esquentador. O duche foi insípido como chá morno. Quando estava na cozinha a aquecer sopa, lembrei-me da carteira.

5
Fui ao pote das chaves, trouxe a carteira para a cozinha. Fiz uma sandes de sardinha de lata e empurrei-a para dentro com colheradas de sopa. Só depois de ter descascado uma laranja é que abri a carteira. Havia três documentos com fotografia, um talão de hipermercado e um número de telemóvel incompleto. Só tinha oito dígitos. A não ser que fosse o número de outra coisa qualquer.

6
As fotografias eram exemplares repetidos da mesma série. A mesma mulher três vezes. Só depois reparei nos nomes. A mesma cara da mesma mulher com os mesmos olhos e o mesmo penteado tinha três nomes completos completamente diferentes.

7
A primeira mulher tinha carta de condução. Chamava-se Rosa Amélia Paiva Antunes. Tinha nascido no dia 5 de Agosto de 1964 em Lisboa. Morava na rua 1º de Maio, 12, em Setúbal. Poderia conduzir até 4 de Agosto de 2029, mas só veículos da categoria B.

8
A segunda mulher era jornalista. O título profissional chamava-lhe Isabel Nunes Jesus e solicitava às autoridades “todo o apoio imprescindível ao bom desempenho da sua missão profissional”.

9
A terceira mulher continuava a sorrir vagamente no bilhete de identidade. Maria do Rosário Capim Santos era uma divorciada de 1,62 m de altura. Tinha nascido em Faro a 11 de Dezembro de 1967, filha de António Ferreira Santos e de Maria das Dores Alves Capim.

10
Nunca devolvi a carteira. Nem a pus no marco do correio, nem a confiei à polícia. Passo os dias e as noites com a cara dela no pensamento. Já imaginei tudo e mais alguma coisa a propósito do conteúdo da carteira. Se me apaixonei, a culpa é minha. Gostando de uma, não posso evitar o remorso de estar a trair as outras duas.


Caramulo, tarde de domingo, 5 de Novembro de 2006
(29 anos exactos depois de ter , pela primeira vez, visto um texto próprio publicado)

4 comentários:

Anónimo disse...

De qual é que gostas mais?

Anónimo disse...

Parabéns pelos 29!

Anónimo disse...

Agora é festejar mais 29. Para mim será sempre um prazer ler o que escreves. Felicidades {}

Maria Carvalho disse...

Delicioso...só me ocorre dizer isto! Beijos.

Canzoada Assaltante