04/07/2006

O Último Dia - teatro mínimo

PERSONAGENS:

Dário, um homem de sessenta anos
Hélia, uma mulher de setenta anos

ACTO ÚNICO:

Hora indefinida do dia e/ou da noite

CENÁRIO:

Um quarto-casa. À direita baixa, duas estantes-nichos, uma sobre a outra. Na de baixo, uma cafeteira azul de esmalte com flores de papel muito velhas. Na de cima, fotografias a preto-e-branco com rostos indistintos, brumosos. A seguir, subindo, do mesmo lado, uma lareira sem lenha onde um aquecedor eléctrico pequeno de duas resistências substituiria o lume se não estivesse desligado: a ficha, à vista do público, no chão aos pés da tomada. Nota: o mesmo com todos os apetrechos eléctricos em cena. À direita alta, uma banca de cozinha minimamente apetrechada. Um fogão pobre, branco, de esmalte, só de dois bicos. Por cima do lava-louças, o esquentador tem um aspecto queimado que sugere avaria irremediável. Ao centro-fundo, a cama de ferro do casal. Por cima da cama, o quadro do menino-que-chora. À esquerda alta, um roupeiro sem portas com roupas penduradas de um arame. Aos pés do roupeiro, uma arca de cartão com motivo escocês verde muito lascada. Maços de jornais e revistas. Sapatos e chinelos desirmanados. Apetrechos eléctricos imprestáveis. À esquerda baixa, uma porta. Ao centro da cena, uma mesa de cozinha de fórmica e duas cadeiras de igual material. Sobre a mesa da cozinha, um rádio de fio pendurado, inútil. Uma lâmpada nua suspensa na perpendicular, mas descentrada, sobre a mesa. No início, Dário está de pé, à esquerda; Hélia está sentada à direita, de costas para o centro e virada para a lareira apagada. Folheia um álbum de fotografias. As pretensas fotografias familiares são recortes de revistas.


Hélia (com um suspiro) O que estes meninos crescem, parece impossível…
Dário (de costas para ela, sem se virar) Hã?
Hélia O meu filho aqui na escola, parece ontem, parece uma miniatura dele mesmo, valha-me Deus.
Dário Não é boa coisa estar sempre no passado, mulher. Faz mal, acho eu que faz mal.
Hélia (em voz baixa) Como se tu alguma vez fizesses outra coisa, benza-te Deus. (Subindo a voz) De vez em quando, não faz mal nenhum. É o que o futuro nos deu.
Dário (virando-se para ela) Hã?
Hélia Felizmente, tenho-os aos dois bem. O meu Raul de mecânico de oficina e pagam-lhe ao fim do mês. E a Isabel lá fora.
Dário (aproximando-se da porta) Achas que chove hoje?
Hélia Vi o meu Raul há coisa de dois meses na cidade. Riu-se para mim com a boca toda. Ele ri-se com os olhos. Gosto quando ele faz assim.
Dário Pára lá com essa conversa do filho e da filha e dos filhos dos outros. Tás aqui tás a falar do teu falecido homem pai deles e lá vem a missa.
Hélia (voltando-se, fria e agressiva) Não te admito faltas de respeito. Estás avisado há muito tempo que não te admito faltas de respeito dessas.
Dário (encarando-a, mas de ao pé da porta) Estou farto de ser obrigado a resmoer no mesmo. Sempre a ir ter ao mesmo.
Hélia Estás ao pé da porta.
Dário Hã? O que é que queres dizer com isso, hã?
Hélia Que estás ao pé da porta. Quero só dizer que estás ao pé da porta.
Dário És bruta. Está-te na massa do sangue. És bruta. A pensão é tua, modos que podes falar como as rainhas, não é o que pensas?
Hélia Só não quero é faltas de respeito. Quais rainhas…
Dário (olhando as próprias mãos) Eu só queria falar do tempo. Se chove, se não chove. Ter uma conversa de gente. O que eu queria era só isso, ter uma conversa de gente. Quero lá saber de fotografias ou de mortos.
Hélia Ciúmes pode ser uma coisa boa como o sal. Mas demasiado faz mal.
Dário Hã? Qual sal? Vou mas é ver se está a chover, que merda esta!
Hélia Se saíres agora, esquece-te de voltares.
Dário (parando, sentando-se na cadeira ao centro) Eu falo-te alguma vez na minha filha? Eu falo-te alguma vez na minha filha para te moer, falo?
Hélia Não me mói que me fales da tua filha. Até gostava que me falasses dela.
Dário Gostavas era de ir lamber sabão.
Hélia Tenho setenta anos feitos. Não tenho de te ouvir falar assim, nem a ti nem a ninguém.
Dário Eu calo-me. O que me dói, eu calo-me.
Hélia Calas-te até a bebida te desarrolhar a boca. Depois é a conversa do costume.
Dário Não bebi nada hoje nem ontem.
Hélia Por isso é que torces as mãos e me faltas ao respeito. É por isso. Então sai e vai beber e deixa-me aqui. E esquece-te deste sítio.
Dário É tão bom estar no poleiro, não é, minha galinha velha? Tão bom receber uma merda de cinquenta contos e pagar as sopas e mandar no palácio, não é? Hã?
Hélia Homem, cala-te, por amor de Deus. Sai um bocado, a sério. Podes voltar depois. Faz isso, faz como quiseres. Quando estás assim, a tua boca fica mais suja do que o chão. Deixa-me ficar aqui ao lume.
Dário Eu também não quero guerras, Hélia. Só queria era começar outra vez.
Hélia Isso não pode ser. A vida não pode ser isso, não deixa. O futuro já está feito para a gente.
Dário Ainda temos algum tempo.
Hélia Olha à tua volta. Aqui dentro. Olha à tua volta: o que é que vês?

(Silêncio prolongado. Hélia de olhos fixos na lareira. Dário esgazeia em torno.)

Dário Achas que chove hoje?
Hélia (fecha o álbum, levanta-se, vai ao fogão) Vou fazer café. Só há do de frasco. Queres uma caneca dele?
Dário Com uma pinga de aguardente?
Hélia Sim, meu amor. Já mereces a tua pinga de bagaço. Pareces ter tudo controlado, finalmente: o ciúme, a raiva, o futuro, a chuva e o mais que vier de debaixo da cama ou da terra.
Dário Hélia, desculpa. Desculpa-me mais uma vez. Sou um gajo perdido. Tenho uma raiva qualquer contra quem não devo. Só aqui estás tu.
Hélia Tu também aqui estás, Dário. Também és suspeito.
Dário Hã?
Hélia Deixa. (Põe as chávenas e o frasco na mesa. Traz as colheres e o açúcar. Vai à arca e tira de dentro dela uma garrafa de aguardente) Não bebas pela garrafa. Não posso com isso. Nunca pude que fizessem isso à minha frente. Bebe pela chávena no fim do café.
Dário Sim, minha rainha.
Hélia As rainhas são mulheres como as outras.
Dário Achas que as rainhas também bebem café instantâneo?
Hélia Acho que sim, que devem beber. Só não acho que se juntem com electricistas de automóveis que não saibam consertar uma porcaria de um radiador que dê calor à casa.
Dário Ao palácio.
Hélia Quê?
Dário Elas vivem em palácios. Nunca viram uma casa por dentro, aposto. E um quarto destes, muito menos.
Hélia É tudo igual. No fim, é tudo igual.
Dário Achas que já chegámos ao fim.
Hélia Não há-de faltar muito.
Dário Não era uma pergunta.
Hélia Também não te estava a responder. (levantando a louça) Mas se mo tivesses perguntado, respondia-te que sim, que acho. Mas também acho que mais vale fingir que não.
Dário Eu queria ter-te conhecido antes dos filhos. Queria que essas fotografias todas fossem de filhos nossos.
Hélia Deus me livre.
Dário (ofendido) Hã? Porquê? Meto-te nojo?
Hélia (alheia) Tive algum tempo bom, apesar de tudo tive algum tempo bom.

(Silêncio. Hélia retoma o lugar sentado à lareira. Dário senta-se e levanta-se, inquieto, ciranda pela cena, mexe nos aparelhos eléctricos.)

Hélia Ainda cá ficas depois de mim.
Dário Não sejas parva. Isso é conversa parva.
Hélia Não tem mal nenhum. É como é.
Dário O que é que é como é?
Hélia (marcando as frases) Só gostava era de termos uma janela. Não precisava de ser para a rua. Bastava-me que fosse para trás. Sempre se via uma couve, ou se era de manhã ou de noite.
Dário Olha, querida, podíamos sair hoje. Ir ao café. Sempre víamos se era de dia ou de noite. Cheirar o ar, ver os candeeiros públicos. Ou ver as estrelas, que também são públicas.
Hélia (dura) Combinámos, não combinámos? Que espécie de palavra é a tua? Que espécie de homem és tu?
Dário (em falta) Hélia…
Hélia Combinámos, está combinado.
Dário Achas que o dinheiro de dois cafés nos vai fazer passar fome? Então tomas só tu, eu digo que não-me-apetece-nada-obrigado. Mas sempre saímos daqui um bocado. Isto abafa. Não temos uma janela, estamos sempre para aqui com os teus filhos e o teu falecido e isto e isto mesmo. Abrimos aquela porta e saímos. É de borla. Nem vamos à porcaria do café, pronto, Hélia! Hélia…
Hélia Já tomámos café. Já tomaste a tua aguardente. Queres mais, tens ali mais. Queres sair, sai tu. Já te disse até que se quiseres voltar, volta. Não quero estar sempre a fazer de carrasca, mas combinámos o que combinámos. O meu lugar é aqui. Se queres ter um lugar de homem, é ao pé da tua mulher. Se não tens palavra de homem, faço eu de homem também.
Dário (ofendido) Faz antes de rainha. É o que sabes fazer melhor.
Hélia Estou cansada. Deixa-me em paz.
Dário E eu quero ver luz, quero cheirar ar fresco.
Hélia O que tu queres, sei eu.
Dário (levanta-se e senta-se, desistindo) Está bem, não se sai. Fica-se aqui para sempre. Mete-se um papel debaixo da porta com os nossos nomes e as nossas datas. Só temos de escolher o último dia. Quantos são hoje? Sem janela, é difícil saber quantos são hoje, meu amor.
Hélia Disparates.
Dário Não, a sério. Nunca falei tão a sério. Dário Pereira, 8-5-1944 e Hélia Silva, 4-2-1934. Escolhe tu a outra data. Escolhe hoje. Só tens de saber quantos são hoje.
Hélia Pára com isso! Estás-me a assustar! Não te devia ter deixado beber aguardente.
Dário Diz-me quantos são hoje, ó meu amor reformado, ó guardiã do futuro e do passado que nem sabes a quantas andas, eh guardadora de pobres de espírito sem asilo nem filhas emigradas em França nem filhos mecânicos que se riem até aos olhos: queres que este seja o nosso primeiro último dia?
Hélia (levanta-se, dirige-se à arca, tira uma carteira de dentro dela) Toma dinheiro. Sai. Podes voltar, não tenhas medo. Tens a minha palavra de honra em como te deixo entrar em casa, venhas no estado em que vieres. Toma, leva a chave. Eu deixo-te entrar. Bebe o que quiseres. Mas agora pára com isso!
Dário (marcando as frases) Mas eu quero sair contigo. E voltar contigo. Homem e mulher, um casal de gente normal. Quero que a gente seja um casal normal de gente normal, homem e mulher.
Hélia E eu combinei contigo cada tostão. É pouco, mas dá se fizermos como combinámos fazer com cada tostão todos os dias de todos os meses.
Dário Não quero o teu dinheiro. Só queria que me dissesses quantos são hoje.
Hélia Não queres o meu dinheiro? Não tens onde cair morto, miserável!
Dário Aqui parece-me um sítio tão bom para cair morto como outro sítio qualquer, ó minha rainha… (aparentemente senhor da situação, mas à beira do colapso) Não tenho mas é onde cair vivo, Hélia.
Hélia (visivelmente constrangida) Desculpa, Dário. (Vai compor as fotos na estante-nicho. Muda a posição da cafeteira-jarra) Achas mesmo que estou sempre a falar no mesmo?
Dário Não. Acho que és uma mulher maravilhosa. Só queria ter tido filhos contigo e que Deus não tivesse de te livrar por causa disso. Queria mesmo. Não é coisa de macho nem de ciúmes.
Hélia É coisa de macho, mas gosto de ouvir. Aos setenta anos, ainda é agradável.
Dário Ainda gostas de mim?
Hélia Nesta idade, Dário?
Dário (batido) Hã? Nesta idade, como? Sim, nesta idade, por que não?
Hélia Às vezes, pergunto-me em que mundo é que andaste os teus sessenta anos todos. A sério.
Dário (desconfiado) O que é que queres dizer com isso?
Hélia Só o que disse. Não desconfies.
Dário (chocado, em plena incompreensão) Uma pessoa… És fria. És como o gelo.
Hélia A vida é assim. Sente-se ternura, mas o amor gasta-se. A ternura acaba por ser melhor, acredita.
Dário À merda mais a ternura!
Hélia Dário…
Dário És fria. És de pedra.
Hélia Pronto. Estou outra vez cansada. Sai daqui.
Dário És uma rainha de cinquenta contecos por mês: uma rainha de chinelas!
Hélia (ciranda em torno da mesa; senta-se na cadeira dele) O falecido pai dos meus filhos, sabes?
Dário Que se foda ele e tu e os teus filhos!
Hélia (ignorando, com visível esforço, as obscenidades de Dário; tom de solilóquio, virada para o público, olhar para cima, perdido) O falecido pai dos meus filhos. Também teve um tempo bom e deu-me um tempo bom. Era mecânico, pegou o gosto dos carros ao filho como se fosse a gripe. Tinha bons dentes em solteiro. Pareciam mais brancos na cara suja de óleo. Depois o tempo e as comezainas e o tabaco e o álcool estragaram-lhe os dentes, mas lembro-me sempre deles muito brancos, a gente lembra-se sempre como escolhe lembrar-se. Também me lembro das mãos dele com o pano de desperdício às voltas. Mãos de homem, feitas para segurar destes lados, levantando as costas, as minhas costas leves, feitas de cana. Foi pouco tempo, isso tudo. Demorou o tempo de o estar a contar agora. Foi dois anos? Não, o Raul e a Isabel têm vinte e um meses de diferença. Depois, ele ficou mau. Ou o que era mau nele tomou conta do resto. Eu depois disseram-me que a doença faz assim, que a doença é mesmo assim, que a culpa não é toda da vítima.(Dário senta-se no lugar dela à lareira apagada) O cancro na cabeça não o deixou escolher o último dia ou o primeiro, como tu pretendes fazer por causa das moedas dum café ou dois, comigo ou não, com aguardente ou sim. Ele não escolheu nada. Olha, safou-se disto: de me conhecer velha e reformada, a tirar vinte e seis contos de cinquenta para pagar quarto, água e luz, fora pão, café e aguardente, contando contigo, meu querido. Uma vez, chegou-me a casa riscado de sangue. Tinha sido despedido, pois pudera. Tinha-se metido por uma valeta num carro dum cliente. Os espertos concluíram logo que tinha sido do álcool. Quando souberam que era cancro no cérebro, vieram ao funeral. Estive para mandá-los à merda dentro da própria igreja. Nunca te contei isto, já está contado. Vamos sair? Sempre vamos sair? Acho que sempre me apetece o tal café.
Dário Não. Percebo.
Hélia (dirige-se a ele, põe-lhe as mãos nos ombros, acariciadora) Pobre homem. Pobres homens. Pensam que só eles é que têm contas a ajustar com o céu e com a terra e com o mar, não é, meu príncipe?
Dário Diz? Como?
Hélia Agora diz-me a tua história. Ao menos, podemos ficar os dois decentemente tristes. E depois, talvez eu concorde com essa coisa toda do último dia por baixo da porta. Ou talvez não. Vende-me lá o teu peixe, meu querido.
Dário Tu já sabes a minha história. Não tem piada nenhuma, a minha história.
Hélia Sei. (relance para o público) Mas há quem não saiba.
Dário (mesma posição “narradora” de Hélia, antes) É o normal do costume. O marido desta senhora, meu colega de oficina. Há muitos anos. Ela, boa de fazer farinha, a trazer-lhe o almoço ao trabalho. E eu fora da mulher num tempo em que divórcio nem palavra era. Uma vergonha para mim, um gozo para ele. Depois vi-o ficar esquisito, as dores de cabeça, a doença, falhar as reparações mais fáceis. Disfarçava comigo com bagaço e cerveja ao mesmo tempo quando mais lhe doía. E eu sempre com ele, sempre com ele. Sem ser por mal. Depois não há muito mais história. É a degradação. As pessoas usam roupa preta, os sinos tocam, as mulheres ficam livres como os táxis e envelhecem e nunca mais hão-de emprenhar de ninguém e é bem feita.
Hélia Chega perfeitamente, meu querido, minha ternura. Chega perfeitamente. Estiveste branquinho como um anjo.
Dário (sorrindo, pueril) Achas? Achas mesmo?
Hélia Acho. E também acho que devíamos sair os dois para tomar um café grande, um café royal!
Dário E eu conserto amanhã o radiador?
Hélia E tu consertas amanhã o radiador.
Dário Ou arranjo lenha.
Hélia Não, lenha é que não. Mais dez tostões de luz não atrasam. E o verão está à porta.
Dário Achas mesmo?
Hélia Que o verão está à porta?
Dário Sim.
Hélia Acho que tudo está à porta.
Dário Vamos ver?
Hélia Vamos.

(Vão ao roupeiro. Vestem os casacos. Não saem. Sentam-se cada um em sua cadeira. Luz diminui gradualmente até escuridão total. Assim o tempo suficiente até confusão do público, que aplaudirá confundindo com FIM. Regresso também gradual e lento também da luz. Dário está sentado à lareira, na posição que era de Hélia. Hélia está de pé junto à cama, terminando o gesto de benzer-se.)

Hélia Não vens deitar-te? Está frio. Está muito frio.
Dário Vou já. Amanhã conserto mesmo esta porcaria de radiador. Ou arranjo lenha. Costumam deixar bons bocados de madeira nas obras, não lhes hão-de fazer falta nenhuma.
Hélia Não, não faças isso, ainda te apanham e é uma vergonha. Lenha, não. Conserta mas é o radiador. Não te há-de custar nada. (Som de sinos gravados de igreja perto: música de “A 13 de Maio na Cova da Iria…”). É tarde.
Dário Já nem sei se ainda sei fazer isso, já lá vai tanto tempo.
Hélia Já tudo lá vai há tanto tempo, Dário, não podemos ligar a isso. Não há-de ser por isso que não sabes. As mãos não esquecem.
Dário As mãos não quê?
Hélia As mãos não esquecem. A cabeça esquece, mas as mãos não. Ainda no outro dia estive a falar disso com…
Dário A tua cabeça nunca esquece coisa nenhuma. E o que não esquece, inventa.
Hélia Benza-te Deus.
Dário Só cá faltava esse.
Hélia Não o Ofendas. Nem a mim, já agora.
Dário Preciso de falar de outras coisas. Precisamos os dois.(Luz geral diminui. Foco vermelho sobre Dário. Hélia apenas silhueta, em contraluz. O mesmo a seguir, mas vice-versa, quando a fala for de Hélia e o silêncio de Dário)
Hélia (em contraluz) Talvez sim. Exemplifica.
Dário A 6 de Abril de 1974, num estádio cheio de cabelos e cigarros sem filtro, a versão Deep Purple com Coverdale/Hughes enfrenta a multidão com pleno sucesso.
Hélia Com o sacro triunvirato Blackmore/Paice/Lord?
Dário Isso. Esses todos. Eu não estava lá. Devia estar na oficina com o teu falecido. Éramos moços. Jovens. Era tudo tão cedo, que nem se sabia se era de manhã na nossa vida ou não. Tudo era possível, mesmo assim. Mudar de oficina, ir para o Luxemburgo, não emprenhar ninguém. Ir ver um filme. Comprar uma máquina fotográfica para registar o que se tornava ontem a olhos vistos.
Hélia (sentada na beira da cama, jogo de luzes inverso como indicado) No próprio instante, a possibilidade não é futura, é imediata. Logo, não é possível, mas instantânea. Eu gostaria de perceber Henry James, que era músico de senhoras e cavalheiros sós. Algum jardim onde tomar chá e apreciar a correria sexual dum podengo. Se outra fosse a vida. Se ainda falássemos assim um pouco mais.
Dário Também podemos, um pouco apenas mais. Um sopro de outra gente falando por nós. Sei dizer um poema, não sei como sei, mas sei.
Hélia Di-lo, amor.
Dário Vem de um sonho. Espera, não é ainda o poema. É a explicação dele. Sonhei uma coisa. Se soubesse escrever, teria escrito isto. Ouve:

Um tempo para perceber a pele do ar
Uma oportunidade nova como uma sala azul
Um desejo não obsceno uma mulher que o quisesse
E não perguntasse e só estivesse.



Hélia É um poema, realmente. Não é para perceber. Eu preferia não saber nem escrever nem sonhar. Torna-se monótono ser a desejada. A tal rapariga vestida de azul no tal comboio. Não me importaria de substituir todo o álbum de falsas fotografias de família por algo como um cesto de conchas, uma lata de bonecos de jazz, uma litografia de Jesus no Monte das Oliveiras, uma praia da República Dominicana fotografada em Cuba para que os americanos de cima não soubessem disso.
Dário Substituir?
Hélia Por outras palavras. Antes que a vida acabe, termos outras palavras em casa. Como brinquedos, outras palavras por toda a casa. Palimpsesto. Ónus. Revérbero. Podengo. Blackmore. Bivalve. Radiador.
Dário Eu trato dele.
Hélia Não. Olha só a palavra. A palavra que cheira a queijo antes do queijo ou a flor do monte antes da flor do monte. Um concerto antigo dos Deep Purple, como dizias agora.
Dário Há a versão da banda com Glover/Gillan. É outra coisa, o timbre é outro.
Hélia Sim. Essas coisas deixam conhecer-se. Há acesso a elas, noutra vida, noutros dias que não sejam tão últimos quanto este. Mas, daqui a pouco, meu príncipe, perdemos a noção, vamos perder de novo esse conhecimento mundial. Voltaremos para junto de nós, à frentatrás. Nem medo tenho. Só frio. E é tarde. Não vens deitar-te? Está frio, está tanto frio.
Dário Daqui a pouco, quando nos perdermos.
Hélia Gostei do poema. É teu?
Dário É de outra pessoa, é doutro sonho. Não é a mesma coisa. Não sei se vou saber consertar o radiador, Hélia. Está frio e eu estou cansado amanhã.
Hélia Às vezes, vejo-te e és só um pobre homem. Outras vezes, és só um homem pobre.
Dário Eu olho-te. Acho que não te vejo.
Hélia É o momento em que poderiam bater à porta. Viriam para nos salvar. Uma ambulância, um filho rico vindo do futuro para que não passássemos frio, um músico, uma lufada de ar fresco pela janela. Achas que podemos mesmo escolher o último dia?
Dário O último dia foi o dia 6 de Abril de 1974. Califórnia Jam. Penso que vou ser capaz de arranjar o radiador. Só espero que sim.
Hélia (deitando-se sem abrir a cama) Espero que sim.
(Luz diminui gradualmente até escuridão total. Luz volta gradualmente. Posições iniciais da peça.)

Hélia Vamos.
Dário Vamos ver.
Hélia Está alguém à porta.
Dário Deve ser o verão.
Hélia Achas mesmo?
Dário Acho.
Hélia Época dos incêndios. Mais dez tostões de bombeiros.
Dário Lenha não falta.
Hélia Conserta a telefonia. Gostava de ouvir música.
Dário Amanhã conserto.
Hélia Devíamos sair mais. Tomar um café royal!
Dário Achas?
Hélia Acho. Parecemos aqui anjos de gesso com as asas partidas.
Dário (posição “narradora” para o público) Não me dói a cabeça. Não me dói nada. Nunca estive numa oficina, nunca conheci o teu marido. Nunca tive filhos, nem tu. Nunca apanhei um táxi na minha vida.
Hélia Não sei.
Dário O quê?
Hélia A tua história.
Dário Como?
Hélia Pobre homem. Homem pobre. Andam no céu a perder a terra. E o céu e o mar: perdem tudo de vista.
Dário Não percebo.
Hélia Nunca me casei. Nunca perdi um homem na minha vida. Nem a vida de nenhum homem. Nunca tive um tempo a que chamasse meu. Nunca tive um tempo a que chamasse bom. Merda merdeca. O dia e a noite, o frio por baixo da porta.
Dário Filhos, instantes.
Hélia Alguma ternura.
Dário Café. Agora, bebia um café.
Hélia Saímos? Vamos sair?
Dário Vamos.

(Vão ao roupeiro. Vestem os casacos. Não saem. Sentam-se cada um em sua cadeira. Luz diminui gradualmente até escuridão total.)





FIM


Tondela, 29 de Dezembro de 2005 / 11 de Janeiro de 2006




3 comentários:

Manuel da Mata disse...

Caro Daniel,

Estás imparável. É quase impossível acompanhar-te com algum rigor. Nomeadamente, quando temos também as nossas coisas para fazer.
Este nós... percebes? Majestosa é a tua produção!
Um abraço,
Manuel Barata

Anónimo disse...

Bem bonito. Adorei o intervalo. Mas que raio de ideia essa de sermos todos uns gandas aparelhos eléctricos imprestáveis. Bem sei, bem sei. É verdade, é, sim senhor. Mas tem mesmo que passar a vida a tentar reparar o irreparável, o rapaz? viva. e Viva a Ian Gillan Band, também. Só tu, mesmo...

Daniel Abrunheiro disse...

Manuel, Manuel: gracias profundas.
Iur: Ian Gillan forever, claro.

Canzoada Assaltante