02/07/2006

EDWARD HOPPER, ALBERTO ABRUNHEIRO E OUTROS POEMAS DE TRAZER POR CASA

1

Só não digo que guardo em casa as coisas erradas
da vida toda até amanhã - porque
de coisas erradas é feita toda a casa
de todo o homem.
Também de certas - decerto.
A disposição dos órgãos, os cantos mudos,
uma reprodução de Hopper, a neve
(as caras das filhas).
Em casa urde o misantropo sua anónima
filantropia. Os velhos
rejuvenescem em casa, quando
sós.
Em casa, coragem e mercearia.
Um pouco de ambas cada dia.
Se a pergunta estivesse escrita
nos muros das ruas
- "Foi para esta vida que vieste?" -
oh sim, foi para esta casa que vim.
Há vezes em que mais recordo que
penso. Prefiro o contrário, claro.
Em casa, Jorge de Sena e Vitorino Nemésio.
Em casa, viagens litorais.
Na lareira, não apenas lenha:
também o manso ódio às putas sérias,
aos políticos cadaverosos, à má poesia;
e ainda o suave amor às mulheres
cuja tristeza vera impede a putice,
aos utopiómanos e à boa poesia
- tudo arde.
Vejo do parque a minha casa:
covil limpo em cujo dentro posso
esperar homens e mulheres tocados pela
bondade.
Sairei certas noites sem de casa sair.
Assim me sucede permanecer no parque,
abandonado o parque.
Tu agora estás a ler isto, pensas
- "Quanta amargura" - mas olha
que não.
Já não.
Tenho um disco dos Psychedelic Furs,
tempo para ouvi-lo, tenho o número
de telefone da minha Mãe, talvez
lhe ligue para que diminua
a idade dela com a minha.
Isto nunca vai fechar-se - a casa escrita.
Tenho ainda tempo para nascer um pouco mais.
Ser um homem bom para ser um bom poeta.


2

Quando descobrimos que a vida real
não era exclusiva dos reis, foi
um choque. Agradável, mas choque.
Está documentado.
Quem viu já fotografias de Portugal
(de Lisboa, quero dizer) de inícios de
XX, entende isso logo com o coração.
Piolhoso piedoso país pátrio - criança
suja, ignara, malevolente, bonita.
Tenho um sofá no meu coração
em que me sento para folhear
as caçadas gordas do D. Carlos,
a prateleira mamária da Rainha,
a beocidade servil dos ministros,
o bodum dos pés populares pré-Fátima.
Por esse tempo, voltou Fernando Pessoa
para Lisboa. Equivale o momento,
em importância civilizacional, à
chegada do Homem à Lua.
Um clarão daguerreótipo nimba-me
o coração, o sofá.
Esqueci o cigarro que ardia, acendo
outro. Vou buscar mais café.
Estou assim há cem anos.


3

Desde criança espreito os quintais
dos matrimónios velhos.
Casitas brancas e baixas.
Jardins mais hortas que jardins.
Gosto da ferrugem vegetal:
o Tempo botânico.
Na empena frontal um painel
com a Rainha Santa
pingando rosas.
À porta, sentada, descascando favas,
a rainha santa real.
Na horta, o homem, amanhando mais
favas.
Eu passo e fico.
Comovo-me até ao sorriso.
Podes crer que sim.


4

E os mortos?
Queres que fale deles?
Amei alguns.
Não muitos: nisso
são iguais aos vivos.
A imortalidade deles é
nosso ofício vivo.
Devagar.
O meu truque é usá-los como
a um perfume.
Não temos de concordar sempre
com eles.
Aqui na montanha
morreu-me um tio
em Agosto de 1980.
Em Junho de 2006
visitei, por uma manhã de sol,
o cemitério.
Não li o nome dele.
Há muitas campas anónimas.
Pareceu-me bem.
Senti-o, devo dizê-lo.
Não como pirotecnia fátua,
fantasma hollywoodesco,
nada disso.
Senti que o nosso comum apelido
se eriçava de pêlos de braço.
Sussurrei
- "Alberto Abrunheiro" -
e nada mais.
Foi a primeira vez que assim
o tratei.
Quando vivo, chamava-lhe
- "Tio" -
ou
- "Tio Alberto" -
e mais nada.
A morte é merecer o apelido.
A vida, também.


5

Só a beleza faz sentido.
Obrigatório, direi mesmo.
Quando, na praia, uma nuvem
acinzenta o sol, depois nuvai
e nos devolve o ouro:
desse sentido escrevo.
E nesse sentido.


6

Culpa é morrer em vida.
Pena capital merece e leva.


7

Alguns homens sentam-se no muro
ao último sol do dia útil.
Estão muito cansados, trabalharam muito.
Tiraram em casa, à soleira,
botas e meias, tiveram sede,
beberam vinho na cozinha, vieram para o
muro solar.
Pouco falam.
Mas a mim, dizem-me tudo
assim.


8

Antecipo pela língua portuguesa
todos os homens vestidos de cinzento
que no futuro vão demorar-se
um pouco
em varridos do vento cais ferroviários.
Será inverno, terá chovido, terá
a cidade fechado o coração aos viajantes.
Já os vejo - já
os escrevi.


9

Na manhã
ama ainda alguma coisa
antes que se faça
tarde.


10

Há corta-unhas com fartura,
apara o teu corpo;
pentes também,
sulca os pensamentos.
Trata de ti com sabão
e livros.
Não deixes as panelas sujas.
Há ovos e fiambre,
o pão de ontem está bom,
come contra o frio.
Se fores ao baile, leva
as chaves do regresso
a casa.



Caramulo, Café Montanha, tarde de 1 de Julho de 2006,
durante o Portugal (3) - Inglaterra (1) do Mundial da Alemanha 2006


Canzoada Assaltante