23/05/2006

Jorge (23 de Maio de 1986 – 2006)


Há vinte anos, o meu irmão Jorge morreu.
Tinha 31 anos. Deixou de usar sabão, comer frango, ir à tarde ao cinema, ensinar desenho e cerâmica, poupar a roupa até ao fio, comprar livros em segunda mão no quiosque da Sereia.
Não sei que lhe diga. Estou vivo. Cito de cor Camilo José Cela: “Do irmão, nem a glória nem a morte.” Não quero saber da glória. Há quem queira. Eu não quero. Sei da morte. É um jogo muito praticado. Quando no-lo fazem jogar, lesiona.
Tenho duas idades: 42 e vinte anos.
A um canto da casa, voluminhos esquecidos de Pierre Loti e de Guy de Maupassant. Bilhetes de cinema, também. Desenhos tipo BD em fragmentos de papel. Cassetes de som roçagado, arenoso. Foram dele.
Herdei dele umas botas que calcei no inverno 1986/87 de Peniche. As calças, muito limpas e coçadas, ficavam-me grandes. Tive de desistir delas como dele.
À esquina da Farmácia Donato, em Coimbra, deixou de aparecer.
Fui logo que pude para Peniche. Ia ver a Nau dos Corvos. Dediquei-me a tempo inteiro à literatura e ao alcoolismo. Escorei a morte dele com essas duas dimensões tão humanas. Não me arrependo: o meu umbigo é irrelevante.
Uma vez, não muito tempo depois de ele ter morrido, encontrei uma das mulheres que o amaram. Ela parecia ter naufragado: toda molhada em plena rua urbana, toda coberta de limos, a roupa rasgada de farpas de madeira náutica. Falámos alguma coisa. O meu corpo (alguns gestos involuntários) poderá ter-lhe acordado a volumetria do corpo dele. As minhas palavras também. Despedimo-nos com o coração para obras de restauro: nunca mais a vi.
Pierre Loti e Guy de Maupassant, que ele não leu, pouco importam.
Tenho dois projectos que me fazem sorrir, pois que me lembram os dele. No meu caso, aprender a tocar acordeão e a falar alemão. Ele tinha projectos destes. O homem é irmão do homem: duas tristezas geminadas pelo sangue e pelo leite.
Nestas duas décadas exactas sem ele, prossegui o escândalo de sobreviver. Fiz duas filhas e dois livros: não é mau. As filhas são muito boas e muito honestas; os livros são honestos e esquecíveis. Já não me lembro dele todos os dias. A dor, ela própria, anestesia-se. Mantenho a minha estratégia: leio e escrevo, escrevo e leio. Quando levanto a cabeça, sucede que uma inclinação da luz mo recupera, a ele: as botas bem ensebadas, a ganga coçada e limpa, o bigode viril, a boca comedora de mulheres e frangos.
Na fotografia da sala da nossa mãe, o olhar continua-lhe apreensivo. Não sei se foi tirada antes ou depois da ida a Veneza.
Nunca fui a Veneza. Talvez nunca vá. Isso não tem importância. Uma pessoa perde importância: com os anos, com a morte de um irmão.
À sombra do desastre irreparável da morte do Jorge, pratiquei amores eróticos sem entrega: como se fodesse vestido. Depois, abandonava essas camas frias e ia beber.
Sucederam-se-me cidades também irreparáveis: Peniche, Coimbra, Figueira da Foz, Leiria, Aveiro, Marinha Grande, Pombal, Viseu, Porto, Lisboa, Praia, Bruxelas. E mil aldeias e vilas mais, onde matriculei a insensatez hepática da minha língua portuguesa.
Não posso cobrar-lhe isso. Sou hoje bem mais idoso que ele. Sei mais coisas que ele: internet, cinema, clarinete, literatura espanhola, whisky irlandês.
Uma vez, lá na infância, um rapaz da minha rua puxou-me o cabelo. Magoou-me muito. O rapaz era mais velho do que eu. Chamava-se Guilherme. Já morreu, também. Desatei a chorar. O Jorge estava em casa. Perguntou-me. Eu disse-lhe. Ele saiu de casa. O Guilherme estava na rua. O Jorge abrasou-o com duas lambadas sonoras. Senti-me protegido para o resto da vida. Não estava.
Fui ao velório do Guilherme, tantos anos depois, numa noite de há quinze anos. Era um cadáver bonito: um busto francês. Desatei a chorar outra vez. Escrevi sobre ele uma crónica, publicada depois num jornal da cidade. Não adiantou: o Guilherme não regressaria.
A filha do Jorge está viva. É muito alta e muito formosa. Estuda, joga voleibol. Imagino que lhe repita determinada luz, certa sombra, um jeito de repor os ombros à largueza do tronco. O lábio de baixo, nutrido e sensual, acamará frases lentas, como as dele.
Acontece-me voltar à cidade natal e passar ao número 210 da última das ruas dele. A rua tem nome de suicida: Antero de Quental, o santo de Eça. Destruíram o Teatro Avenida. Digo-vos que visitei com ele os camarins desse teatro-cine. Foi há muitos anos. Tinham guardado lá os despojos de uma escola secundária. Lembro-me sobretudo dos répteis conservados em frascos.
A churrascaria onde comemos frango está viva. Situei nela um dos textos de Noite de Homens-Cantores, aquele que tem o cantor Art Garfunkel.
Um homem sobrevive. Eu faço isso. Faço como toda a gente: o dia amanhece, entardece e anoitece. Vinte anos disto.
Tenho lido umas coisas e bebido outras. Ele não voltará a Veneza, mas eu voltarei a Peniche. Tenho outras botas. Aprender acordeão não é, como o Jorge é, nada do outro mundo.



Caramulo, manhã exacta de 23 de Maio de 2006

10 comentários:

Gabriel Oliveira disse...

Foda-se...!

Daniel Abrunheiro disse...

verdade, tudo verdade.

Anónimo disse...

"Não sei se foi tirada antes ou depois da ida a Veneza". Um marco? Como em Proust? De sorriso em sorriso...

Anónimo disse...

E pronto. Como despejo eu agora esta comoção toda para dentro de uma frase impossivelmente longa? O que lhe hei-de eu fazer, assim, com olhos de cão clemente, de mãos pousadas num coração assim, tão fechado como mo fechaste?
Verdade, tudo verdade.
Tão bonito és, Daniel. Que coisa...

Anónimo disse...

Insuportavelmente belo!

Ricardo disse...

Não sei bem como aqui vim parar, mas não posso ir sem lhe deixar um abraço
porque mais não sei dizer.

SDF disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
SDF disse...

Daniel Abrunheiro e a insustentável beleza da dor!

Comentava isto outro dia com alguém: o teu raro talento; a força e beleza esmagadoras da tua escrita; a sombra sempre presente dos teus fantasmas. Responderam-me que todos os grandes escritores são sempre fantasma-dependentes. Como se numa espécie de metamorfose, se alimentassem da sombra-morte para a transformar em viva-escrita. E que no dia em que se libertassem dos fantasmas, deixariam provavelmente de escrever como escrevem... será?

Não sei porquê, a explicação desse tipo de "talento-pedra-filosofal" até me fez (algum) sentido.

Daniel Abrunheiro disse...

vou escrever hoje algo acerca deste tipo de coisa.

Anónimo disse...

Em teu Irmão, perdeste pai e mãe.
Teu irmão está sorrindo e segredou-me não merecer tanta dor.

Canzoada Assaltante