29/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 840 a 842

 

840

Sexta-feira
26 de Novembro de 2021

Ainda em-dizer se agita a vida
Ainda alguma coisa acorda em frente
Em lucidez de espelho não é fácil
Descuidar a ideia pessimista.

Ao cabo de trabalhos outros surgem
Cuidamos de não ouvir quem nos fala
Tem-me surgido muita coisa dessa
Mas repugna-me tal fantasia alheia.

Jeremias (de Aveiro) faz convite
ao irmão de Alberto para almoço.
Este leva o filho ao ágape,

em cenáculo se almoça o bom leitão.
Ainda o lembrar se faz re-vida:
isto foi em 70 ou 71.

841

Discreto, intimamente lavado,
discurso sem abrir a minha boca.
Nem de perto sou vil ou celerado,
mas p’ra ser boa acho a vida pouca.

Se o burro dá o coice, quem lhe corta-
rá a pata de vez sem mais remédio?
O pandorga-ricaço sente tédio
na estação a que (mal) ele chama morta.

Eu sou do tempo em que (ai!) nos volvemos
mecanográficos sem al rodapé.
Todos enfim por fim nos submetemos

à jurídica ordem do anti-Caos.
Não quer dizer que sejamos todos maus:
é mau quem é mau, seja bom quem o é.

842

Maria, não incomodes as gentes
que Maria não são nem p’ra tal andam.
José, tu gere as tuas aguardentes.
Ramiro, já os clientes desandam.

Tiquitas, arruma os teus brinquedos.
Noquitas, a teus brinquedos arruma.
Cada pessoa-em-si é mais do que uma:
tudo vai d’esperanças & de medos.

Tenho por certa a felicidade?
Sou tonto contumaz & bem relapso.
Tenho aberta a porta da Cidade?

Sou falível, desculpai-me o lapso.
Maria, não incomodes as gentes.
José, tu gere as tuas aguardentes.

27/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 839

© DA.



839

Segunda, terça & quarta-feira
22, 23 & 24 de Novembro de 2021



Alguma expressão clara como Junho ainda encanta
Pode acontecer seres tu a abrir o baile, inaugurar o ponche
Cada vez menos segredos, é triste mas vero
Sim, menos deslumbramento, mais tácita conformação
Sim, Humberto, ora diz
Sou Humberto, filho do casal Roderico/Urraca, exerço serralharia
Sim, Natalina, ora diz
Sou Natalina, fruto de se amarem Vera & Ezequiel, faço bordados
Sim, Fernando, ora diz
Sou & não sou & sou além, Lisboa enegrece a brancos visto, largo amarras
Sim, Cristina, ora diz
Prefiro guardar-me, até o nome uso velar, não é para mim mas comigo.

Apesar do multíssono caos tecnocoiso, ainda há saída
Pode acontecer que um de nós se inscreva em canto-coral ou costura
Ainda pelo entardenoitecer o sino é dolente aos campos
Vão porém rareando seus auditores, o barulho é muito, incessa
Sim, Germano, ora diz
Vou às compras, venho das compras, sou invisível como os domingos, estou bem
Sim, Marta, ora diz
Não era este o homem minha sombra, não serei jamais luz a seus olhos
Sim, Túlio, ora diz
Tretas & patranhas, meus senhores, xarope de pau-de-marmeleiro, meninas
Sim, Elisabete, ora diz
Tenho açoteia, tenho sol na açoteia, o meu gato é o meu príncipe.

Sou Daniel, filho de Daniel, filho de Hermínia
Recordo-os como a livros que me leram
Genética & afeição jogam-me em transverso
Componho a conta-corrente da identidade
Sim, Beatriz, ora diz
Conheci o teu Pai através do meu, foi logo a seguir ao 25-de-Abril
Sim, Feliciano, ora diz
A tua Mãe & a minha eram conhecidas, partilhavam receitas
Sim, Amélia, ora diz
Não tenho ido a ver-me no mar, passa-se demasiado tempo adiando
Sim, Luís, ora diz
Tenho o carro na oficina, a viola no saco, um mau diagnóstico pulmonar.

E na confusão? E em desordem? E em carência? E em retrospectiva?
Cada um(a) ambula em mato emaranhado, o caminho manda
E se por amor? E se por rancor? E em perda? E em resgate?
Cada um(a) bate a cabeça na parede que se lhe impõe
Sim, Cristiana, ora diz
Nada me adianta recolar cacos de jarra sem flor nem lembrança de chão
Sim, Trajano, ora diz
Vêm os ratos por derradeiros, trepam, fornicam, mais estragam que aproveitam
Sim, Décia, ora diz
Os meus filhos são os meus filhos, eu sou deles a que chamo meus
Sim, Diniz, ora diz
Costumo pelo entardenoitecer sentir-me feliz sem justificação nem endereço.

Permanecem fragmentos de um tempo já de si arqueológico à nascença
Resistem tais cacos à duração inclemente como à transigente dissipação
Basta sair à rua, ver como dos prédios a sombra se faz chã(o)
E compreendê-lo ajuda, estranhamente ajuda, à aceitação viril
Sim, Codorniz, ora diz
Olho rapidamente, água & terra equivalem-se-me, é furtivo o furão
Sim, Leão, ora diz
Um tempo maduro, patronímico, patriarcal, antecessor da podridão
Sim, Sardinha, ora diz
Veio único, estranheza única, infinito estupor ante a rede prometida
Sim, Morcego, ora diz
Lua & radar, milhões de insectos, fama injustificada, infância também.

Não era isto, ou para isto, a infância? Não obrigava
Os nomes dos animais mais amados, como pacificá-los no coração envelhecido?
Eram tais nomes o rol essencial acima de desperdícios?
Sim, podemos finalmente vozeá-lo, sim, eles sim nomenclatura superior
Sim, Canino, ora diz
Quero correr contigo pelo monte, urdirmos companhia, cheirarmos a espargos
Sim, Juninha, ora diz
Eu era perdida & tu salvaste-me, tu perdeste-te & eu não me salvei
Sim, Cachopo, ora diz
Falaremos a cada dia primeiro de cada Novembro até o fim para sempre
Sim, Nino, ora diz
Estou pronto para ti, os meus dias & os teus casam-se hoje todos.

E poetas a que chamamos nossos de uma a que chamamos nossa portugalidade?
Sim, também eles, por vício de claridade, assombram os domingos da eternidade
E os músicos que reordenaram a Natura em matemática audível?
Sim, muito, eles começam & neles acabamos acabando, canoras eras
Sim, Johann, ora diz
Assim procedi & assim fiz
Sim, Seixas, ora diz
Certo barroco é pleno & feliz
Sim, Astor, ora diz
Buenos Aires, Londres, Viena, Paris
Sim, Zeca, ora diz
Aumentei o meu País.

O senhor apontou-nos Ruy Belo & António Osório. Desenvolva, sff
Muito bem: Poetas Maiores, nascidos ambos no A.D. 1933. Belo morreu novo.
Queremos saber: são ambos companhia sua recorrente?
Recorrentíssima: Belo desde & para sempre; Osório, tal qual
Sim, Ruy, ora diz
Morro aos 45 anos de idade, estou sozinho em casa
Sim, António, ora diz
Reencontro a senhora minha Mãe, em Italiano nos beijamos
Sim, Sophia, ora diz
Julgo ter fundido Algarve & Grécia
Sim, Agustina, ora diz
Eu cá gosto é de aforismos a torto & a direito, por tudo & por nada.

Casalito beijoqueiro
Face à fonte luminosa
Momento belo & fagueiro
Maravilha maviosa
Sim, Filha L., ora diz
Tonal, atonal, outonal, etc. & tal
Sim, Filha T., ora diz
Gosto de gomas, gosto de gatos da cor-do-sol
Sim, Pai D., ora diga o senhor
Tenho frio
Sim, Mãe H., ora diga a senhora
Gosto de tudo o que goste de viver.

Linguagem-poética & linguagem-quotidiana são outros-25-tostões
Ambas todavia se irmanam na volitiva ânsia da iluminação pensante
Tanto precisamos da redondilha quanto da couve-com-broa
A diferença é de somenos, já o não sendo tanto a irmandade
Sim, Calimero, ora diz
Tenho chorado muito a neve que outrora me queima amanhã
Sim, Pateta, ora diz
Ao meu pai Walt não agradavam judiarias
Sim, Tintin, ora diz
Tenho um canídeo de andrógino nome
Sim, Patinhas, ora diz
À judiaria não agrada o meu pai Walt.

Diga-nos ora um nome que, não sendo de Poeta, lhe seja poético
Digo: Joaquim Fevereiro da Ribeira
Diga-nos ora um outro nome que, idem, idem
Digo: Ernesto Santos Lucas
Sim, Joaquim, ora diga o senhor
Sou cerúleo olhando, é minha a inocência, usei couro negro sobre mota
Sim, Né, ora diz
O meu neto há-de ter de meu apelido nome-próprio
Sim, Professor Jacinto do Prado Coelho, ora diga
Há unidade & há diversidade em Fernando Pessoa
Sim, Álvaro de Campos, ora diga o senhor engenheiro
Diga aí ao Jacinto que uma coisa só não é mil se não souber contar.

O senhor escreveu: Alguma expressão clara como Junho ainda encanta
Sim, deveras escrevi que Alguma expressão clara como Junho ainda encanta
Por que escreveu o senhor que Alguma expressão clara como Junho ainda encanta?
Foi coisa que me ocorreu sem dela me ter lembrado, chama-se versalhada
Sim, Sporting, ora diz
Uma multidão comemora em força atlética certa pertença
Sim, Belenenses, ora diz
O senhor Almirante Américo Thomaz é cá dos nossos
Sim, União de Coimbra, ora diz
Coimbra não é só Universidade, q’ele há quem trabalhe
Sim, União de Tomar, ora diz
Tivemos o Simões & o Eusébio, o resto é de quem (n)os apanhar.

A Cidade é individual, sim & afinal
Ela corresponde por sinaléticas ao Nascido-Nada, há que saber ouvir-&-ver
De que Cidade?
Da que não vem nos filmes, naquela que é suméria & sumária
Sim, Mafalda, ora diz
Eu tenho-me em Henriques
Sim, Henriques, ora diz
Tenho tanto que fazer em menos de tão poucos anos
Sim, Pedro, ora diz
Não me fodais com isso, não me fodais, Pai, com isso
Sim, Inez, ora diz
Aqui estou.

Como são eles dolentes ao fim da tarde?
(Digo) Como soam os sinos da tardinha?
Como é que o fogo é fogo & o lume arde?
Como é ter frio sem ter mais nadinha?
Sim, Albertina, ora diz
Pesei bacalhau, arroz, feijão em molde-líquido-peso, envelheci
Sim, MariAusenda, ora diz
Eu enfrento, eu aguento, eu aguento, eu sou alento
Sim, Tónio d’Ausenda, ora diz
Morro a trabalhar
Sim, Mãe, diga a Senhora
Talvez outras coisas te merecessem demora.



23/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 838



838

Domingo,
21 de Novembro de 2021

    Só ontem, por mercê do telefonema nocturno que me fez o Amigo senense João S.P., fiquei a saber da morte física do gigante António Osório. O óbito deu-se a 18, quinta-feira. O pobrete-alegrete-néscio-Portugalinho-pimba não cuidou da má-nova – sabe lá ele quem foi/é/será o gigante António Osório!
    Deitei-me a pensar nos & a repensar os tão claros livros que deixou. Formosos quão nenhuns outros, inovadores ao primeiro instante, novos para sempre: clássicos à nascença, portanto. Para mim, António era, respirando, o mais alto Poeta vivo da Língua Portuguesa. Morto, a sua Poesia é da mais alta & mais viva alguma vez concebida em Língua Portuguesa.
    Adormeci sabendo que já não conhecerei a pessoa. Houve certa altura em que tal não era impossível. Circunstâncias poderiam ter sido ajuntadas nesse propósito. Já não pode ser. Não faz mal. Tenho ali os livros. Já os reli quantas vezes no curso destes anos? Felizmente muitas. Quedo-me sempre desarmado ante tanta claridade. Da segunda metade do século XX, ele é, com Ruy Belo, santo do mais içado altar. Isto não abate outros nomes do mesmo período. Herberto é importantíssimo, claro. Mas Osório & Belo, para mim, tocaram sempre a nota exacta, o cristal essencial, a derradeira palavra no exacto lôgo de iniciação.


22/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 836 & 837

© Artur Pastor



836

Sexta-feira,
19 de Novembro de 2021

    Caraças, tenho estado & andado embrutecido: estado gripal tússico-cavernoso, algias de quebradura ósseo-muscular, geral indisposição essêncio-existencial. De resto, porém, tudo bem. Vou exercendo, parcamente embora, o meu ius imperii (ena!), o meu ius soli (ena!), o meu ius sanguinis (ena!).

837

Sábado,
20 de Novembro de 2021

    Continuo súbdito da miséria gripal, estrebuchando arrancos de vulcão seco, parecendo uma levada de lixo a minha condição respiratória, é o diabo. Atabafado de flanelas moles, resisto como posso & sei à anemia da vontade-de-viver. Naturalmente, ando a caldo galináceo, pêra cozida, chàzadas de ervas sem olor nem sabor, pastilhas de mentol. Nem a tabágica delícia me move ou comove. Ontem acabada, a semana útil foi difícil de utilizar. Espero um domingo de mais apurada convalescença, tal que a segunda-feira me permita fazer bem o que a fazer tenho. Dependem da minha persistência & da minha aplicação os cêntimos dos próximos meses. É pouco dinheiro para tanta hora – mas antes pouco do que népias.
    Leio devagar o meu Jules Romains, tendo em espera a segunda metade do meu Alain-Fournier. Revi dois documentários: um sobre H. Himmler, outro sobre M. Teixeira-Gomes. Calcei as meias grossas de lã, tenho o Gato ao colo. Os papagaios da televisão piam vir aí uma vaga de frio polar. Pensava eu que já nem havia disso.
    Não menos doentio do que a sua causa é o seguinte efeito da gripe: o egotismo reforçado, peremptório, autolamechas. Os defeitos do carácter & as gretas do feitio vêm borbulhar à tona da mente. É pantanosa, e muito, a autopiedade. Estou aqui feito & desfeito coitadinho-de-mim. Sudorífero a frio, de oleosa lentidão, pasmo para um tecto indiferente à minha prostração. O eu-corpo é tão-diverso do que era & foi na tropa, c’um carago! É em presente tristura que recordo a euforia daqueles duches gelados na carne verde, fibrosa, espontânea & disponível de alvores da vintena d’anos. Sim, aquelas marchas sobre gelo & través lamas, matos, paradas & tapadas. Aquela voracidade até por comida medíocre, ainda o pendor alcoólatra me não botava carroça-fora da senda vital.
    Enfim, noite que antecede o dia dominical. Do mundo exterior, apenas o bafio de coisas revèlhas. O género humano compraz-se em sua consueta idiotia mesma. A Austrália não difere muito da, digamos, Albânia; nem a Islândia da, vá, Bielorrússia – e por aí. Nada que eu possa (ou queira; ou creia) resolver. Estou aqui budamente sentado em a minha própria vanidade de tamborete, não trono.


21/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 835


 



835

Vinde comigo Vós a dar a volta
pela urbana noite desmedida.
Nem sempre triste é triste o ser-se triste,
pois nem sempre sabe o nunca a nunca-mais.
Eu dou-te, Doroteia, quanto posso:
o que mais não posso, não fica por dar:
nem perto tudo o que luz vem a oiro,
da infância as pepitas perdem brilho.
E se os bons-dias te dou a cada dia,
a noite-boa quero que usufruas.
Este discurso mesmo redundante
não ofende, eu sei que não ofende.
Vem pois também daí, boa Doroteia,
junta-te a pobres amadores de versos:
é lenha pouco ardente mas é lenha
– e antes refulja um pouco que nos queime.
Sem amanhãs na ideia é que se vive,
idem d’ontens teimosos sem retorno.
Heterónimos? Ai, também os tenho:
é conforme o triste que miro ao espelho
& a quem raspo a barba com desvelos
de pai-barbeiro a filho tristonho.
O que (afinal) digo sempre se escreve
(q’ao de leve o correio sempre chega).
Nem sempre, Cação, vence o calado,
nem sempre o verso simples chega a casa.
(Nem casa é de todos a palavra
quando tornar querem a algum lado.
A algum lado vinde Vós à volta.
Etc.)

19/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 834

© DA.


834

Terça-feira,
16 de Novembro de 2021

    O Verão de 1999 foi para mim tempo de metafórica travessia de um deserto sem retorno – sem retorno mas recorrente no meu pensamento. Deixou cicatrizes vivas & antónimas de írritas. Ocorreu-me há pouco, quando lia o segundo capítulo de La Mort de Quelqu’un / Morte de Alguém, obra de 1911 da pena de Jules Romains (1885-1972). O pensamento tem muito disto, digo, deste mesclar coisas tantas vezes sem ligação lógica terra-a-terra-pão-pão-queijo-queijo.
    Verão, 1999. Dias precários, noites irrefutáveis. Passou, todavia. Sarei-me. Com cicatrizes embora, convalesci & sobrevivi. Não renasci em olor de santidade. Despertei mais pessoa, por assim: menos ingénuo, menos amável (& menos amado), mais blindado, menos espontâneo, mais endurecido. Este renascimento continua processando-se – e não propriamente no sentido desejável. Que sentido desejável? Ora, não percamos tempo com algo que, por não ter remédio, remediado está.
    Ou então:

    Liberam-me algumas palavras às vezes justas
    Vocábulos capazes de força como gente vertical
    Animais silábicos vivíssimos que agem à vista
    Sim, palavras há que me vivem em solidariedade.

    Remunero-as como sei & posso: florindo-as ao ar
    Este ar de papel que faz adejar minúcias
    Este circuito de significação que resulta em pessoa
    Esta liberação em processo de duração limitada.

    Não é Verão, não é 1999, são outras as cifras
    O eu-corpo mesmo dá-se a ser outro-em-si
    Dou por mim sabendo mais provérbios do que outrora
    E de assuntos como Amor & Economia digo pouquíssimo.

    Prefiro as palavras que me não desamparam a loja
    Felizmente milheiras me são elas, verdade pura
    Desde menino que algumas me são cães fidelíssimos
    E eu cão delas por elas liberado & a elas grato.

    Palavras fazem-se-me pessoas com useira constância
    Metem-me gente papel adentro quase alegremente
    Nem eu quereria que de outro modo fosse
    É-se afinal livre quando a palavra é justa.



14/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 820 a 829 (4 + 5 sonetos)

© DA.


820

Terça-feira,
9 de Novembro de 2021

Sobre a tília em crescente a Lua
refrigera já o revés da luz.
É o pré-recolhimento dos penados,
coitados dos que a abrigo não tornam.

P’ra bandas do Choupal é tudo oiro,
desse ouro não cotado ou miserando.
Benigno arvoredo nos concita
a sombra de um sorriso gracioso.

Já vês, tu Lídia Laura, quão bem-dita
é a sorte minha hoje pela noitinha:
por moedas pouquinhas esplanado,

gozo o sereno fresco de Coimbra.
Doutra fortuna, ó lídima Lídia,
cobiçoso me não verás, nem perto.

821

Deu-me hoje para o soneto versilivre,
ó minha Dinamene incorrupta.
Antes versos catorze que enfim sempre
para a droga ou pior, ó cara-linda.

Sete horas penei hoje doutras voltas,
que delas me era dar obrigação.
Ao dar estão elas dadas & enxutas,
outras venham por mor d’inda estar vivo.

Pretérita até s’um dia torna
a memória-futuras das crianças:
viola-a8s) o olvido galopante

que ao humano faz boca-de-riso.
(De catorze, vão treze aviados:
sejam estes dois últimos rimados.)

822

Sete horas orei hoje a outro orago.
Carago, já lá vão & a cá não voltam.
Noitinha, saí-me a dar afago
a cães que eu sou & q’se me revoltam.

Passou ora um gajo de bicicleta,
sacana d’orelha ao telemoble!
Sou duma geração tão obsoleta,
que o temi varado dum automoble!

Ou então, casta Clara preciosa,
que à rosa deves nada & a mim n’idem,
quão me sobra, soçobra sem remédio.

É talvez, de bourgeois, épater tédio…
Não sei, sabê-lo-á, que é Ninguém.
Ou então, Clara casta & preciosa…

823

A mágoa é uma criança alta:
cresce tanto as paredes numeradas
que risca a lápis a mágoa-malta
de operárias casas não-nomeadas.

Saudade é coisa matraquilhada
por de clichés useiros inscientes.
Comigo, é tudo que vale nada:
tudo me presenteia de ausentes.

Admiro o meu Almada espertalhaço:
comeu d’arte na mesma ao Eixo d’Aço….
Já o Pessoa tirou seu circunflexo:

não foram os Ingleses ask for nexo…
A mágoa é uma alta criança:
de pasto de velhinhos enche a pança.

824

Quarta-feira,
10 de Novembro de 2021

Penei ontem ainda o meu bocado
p’ra cozer uns sonetos esquecíveis.
Torrei até queimar alguns fusíveis
por quarteto-soneto versejado.

Já hoje fiz outras coisas pelo dia,
aprendendo coisitas sem esforço:
mas da cadeira me ergui de dorso
dorido tão, que em mim eu não cabia.

Transpiro os rios frios da velhice,
suando estopinhas inclementes.
Vem tal, talvez, do uso de aguardentes

& de saudades vãos de uma Alice.
Naturais, já me sobram só dois dentes:
mas mordo mais sonetos, minhas gentes.

825

Ai ó Alice Alice da branca carnação!
Alice, Alice, quem foi que te desdisse
meu desamor, causa tua & de razão?
Vil foi quem houver sido, ó Alice!

Deu-te anilha um que é lá da Guarda,
bravo marmanjo sem literatura.
Se me dei eu a outras, foi loucura
da tropa que tu és sem me dar farda.

Vivo hoje com senhora mui lavada,
chama-se Doroteia & é feiosa:
mas coradita & fresca qual a rosa

que o rocio refresca d’orvalhada.
Muito vamos ao teatro & a exposições.
Nem ela é Dinamene, nem eu, Camões.

826

’fonei ontem a Joaquim Delfim Ferrão,
q’inda filho de outros pais é meu irmão.
Tergiversámos sobre «Os Belenenses».
Ele é rico & eu pobre: mas pertences

haurido hei eu dele generoso.
Às vezes (sacana!), dá-lhe prò gozo
& procrastina a esmola em bolachas:
& eu greto-me todo, eu abro rachas.

Quando moços, fazíamos batota
mentindo eterna nossa mocidade.
Ele é rato-de-campo; eu-de-cidade.

Fomos de excursão a Aljubarrota
& à sarracena Silves noutra idade.
Isto é que é um soneto de qualidade.

827

Vi cá ’baixo ver o como se vivia:
é igual a amanhã & mais um dia.
Sentei-me a um canto do meu idioma
& fiz de lírio seco em redoma.

Sem pais, vivo a minha orfandade.
Sou correcto em as filas-repartições
& de uma Dinamene sem Camões,
bárbara-escrava de minha cristandade.

Dou esmola a mil cegos de outiva
(pois/que/nela/vivo/já/não/quer/que/viva)
& já fui rapazito sem sonetos.

E fortuna q’inda a vida me não deu,
digo-Vo-la ora & já sem escarcéu:
Filhas havendo, quero ora Netos.

828

Aos cães atirei (que m’a não quiseram)
qualquer prosperidade sossegada.
À flor como ao fundo, eu valho nada:
tais os humanos todos que vieram.

Nem frios há já como antigamente,
dói-me o Verão postiço de onze meses.
Constantino de Pesadelos & Reses,
afinal, ó Redol, ó boa gente.

Meu caso só conta porque o conto
– de resto, a irrelevância nem estremece.
Se apetece ser outro? N’apetece,

que igual a tanto vale igual a tonto.
E aos cães atirei (quiseram nada)
ossos & e a minha carne lavada.

09/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 819

819

Domingo, segunda & terça-feira,
7, 8 & 9 de Novembro de 2021

    No serão dominical. Estou a ver os bonecos.
    Jornalixo em força. Idiotização em marcha.
    Idioma degradado. Pujança do pimba.
    Milhões pandémicos. Charivari climático.
    O tempo-corrente não prima por grande-espingarda. Raros clarões de lucidez manam de raras figuras utentes de exposição pública. E então (ex-agora) olimpicamente adormeço, voo baixinho para terra de a

    Segunda-feira. Sol amplo abrindo a segunda semana do mês penúltimo. Faço por aprender coisas em/de um domínio tido por admirável: o mundo-digital. Só pelo entardenoitecer me será dado voltar a meados do século XIX – pela mão do narrador Dickens (Charles). Não uso pressa. Entre as 14 & as 17 horas, a este ponto permaneço.

    É vinda a noite. Está (des)feito o dia. Tingidos de nocturna poção, ainda alguns humanos cirandam pelas vi(d)as próprias. A mulher da peruca: as próprias sobrancelhas dela são a lápis. É toda glabra, a rosa de sua cabeça. Terá passado já a seus setenta. Costumo vê-la na paragem-bus. É discreta. Pouco conversadeira, faz de saquinho-compras a sua vida sem entrada no panteão-biográfico-nacional.

    Terça-feira.

07/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 816 a 818

© DA.

816

Quarta-feira,
3 de Novembro de 2021

    Vi hoje uma cadelita de olhos muito puros. Não são muitas as pessoas de meu conhecimento cujo olhar equivalha em pureza aos da cadelita que me olhou. Talvez os dedos de uma mão bastem a contá-las. Já não sei. Sei pouco de umas poucas coisas. Gosto muito de aprender – mas não sei muito por aí além.
    Escrevo este bilhete no fito de guardar os olhitos dela. Talvez os sonhe uma destas noites. Não é impossível. Tenho sonhado coisas que, não valendo tusto ou pataco, mais valera não me fazerem entrepiscar os neurónios aturdidos pela ínvia relojoaria do sono.
    Também quero seja constante deste bilhete o frio urdido pelo entardenoitecer. Vim ver o meu Irmão. O Lar fica em uma promontório serrano, é aqui afiada a cutelaria eólica. Mais isto: dei ração-seca a seis gatos que ao pátio da instituição se acolhem. É um momento feliz. E mais puro, ele também, por mais raro.

817

Quinta-feira,
4 de Novembro de 2021

Vozes rumorosas neste canto do bairro.
Vozes por vãos & desvãos de escadas & prédios.
A Encarnação tem cancro, anda amarela como os autocarros.
Coitada da Encarnação, talvez lhe não chegue o Natal.
Tem ido muito à farmácia, como a Meca os sarracenos.
É o entretém dela, coitada, vai dando corda à esperança.
A esperança é a última a morrer, não a Encarnação.
Falam da Encarnação em surdina, já a esquecem.
O bairro sem Encarnação será como com ela é.
Esta evidência só dói a quem mais não tem que fazer.

Certa gargalhada bem grasnada soa do segundo-andar.
É o prédio pintado a rosa pingue-deslavada.
São mulheres-da-limpeza, riem-se à bandeirada.
Antes rir, Encarnação, pois então, do que chorar.
Outras mulheres de outras limpezas aqui não moram.
As que bebem riso, depois mamam do que choram.
À boca do entardenoitecer, há geral sossega.
O nascimento não volta, ’inda a morte não chega.
Somos de vozeados pensamentos silenciosos:
e seguimos as modas, somos pundonorosos.

Por vezes choca, é chocante a autoridade da idade.
Anunciação, de 86, treme até frios que não há.
Saco pré-cadavérico de si mesma, é órfã de filhos.
Mora no rés-de-chão – felizmente, escadas nenhumas.
É no prédio azul-pingão de cal nenhuma.
Roçam-se em bolor as garagens húmidas.
Já mais que cinco vezes as devassaram ciganos.
(Mas isto não pode vozear-se, é “racismo”.)
(A melhor maneira de não se ser racista é deixar-se roubar.)
(Digo a verdade curial como um justo, bebedor embora.)

Ser bem-formado não obriga a diploma escolar.
Ser bem-formado é do chàzinho em casa, casa havendo.
Este é um bairro que algum chá formou em crianças.
São estas hoje senis exemplos de boa-formação.
Rumoram como moram: em surdina anónima.
(Anónima até chegar o escriba que as nomeia.)
A Encarnação-Cancerígena é de mansas gentilezas.
Alimenta gatos, quase é vadia quanto eles.
Mas a carta do IPO é de impreterível glioblastoma.
E eu leio tal carta às escuras, que susto é nascer.

(...)

818

Sexta-feira,
5 de Novembro de 2021

    Saindo, acabei dando passeio à senhora-da-asneira. A estação dos CTT a que me dirigi, achei-a intransitável. Fila de velhos tipo ténia (a bicha, não os velhos) – saí mal entrei. Resolvo para a semana o que não resolvi hoje. Não há mal.
    A hora é de sol franco. O arvoredo apetece. Tem o ar certa qualidade de cal. Ao umbroso abrigo de tílias ainda fartas, não desfolhadas ainda pela época, seis aposentados gozam a paz do recanto. Disto deles uns cem metros, fumando como um buda tóxico. Faço, por assim dizer, contratempo – enquanto ao doméstico recato não retorno, não me parece insensato fruir esta luz no geral portuguesa & no particular coimbrã. Não avizinho nem se me avizinha gente da estirpe-gentalha. No bornal (cujo fecho se irremediou em estragação), porto Ruy Belo & Jacques Prévert: não estou portanto só mas tão-só a sós. Vim de camisola de malha cinzenta. Tem berlindes de borboto que me distraio a catar. Segundo o espirituoso dichote, é de pura-lã-virgem por correr mais do que o pastor a ovelha que a deu. Sim, não é mau o bocado. Macio, o lápis alinhava sem esforço o registo.
    Passa um fulano de expressão escarninho-mesquinha. Vai só, mas decerto ruminando alguma ideia ácida. Terá quarentas, não mais. Na retaguarda, a uns dez metros, vêm quatro mulheres encorpadas como os pegões das pontes. Uma estoira de cabeleira oxigenada, de um amarelo-palha-açafrão. Outra é de unhas gelatinadas. A terceira (agora que passou) transporta um cu às camadas freáticas como os acordeões & as gargalhadas escaqueiradas. A quarta é bonita, não se pinta nem se fez tatuar.
    Procedo a este & afins registos sem metafísica nem ilusão. Estou vivo entre vivos, movo-me entre movimentos, exerço uma acção sensitiva sobre as essências & as aparências do mundo. Há dois dias, anotei certo olhar de certa cadelita. Calha-me hoje um cão famélico. É de olhos tremendos, também ele – mas, neste, doem-me seus tiques de medo, sua evidência de batido & desprezado. Preto, de farripas creme. Já não é moço. Macérrimo, espera a improvável esmola que não tenho para dar-lhe. Preferiria não o haver visto.
    Já arrefece. Palmilhei uma meia-légua em outro sentido (outro qualquer sentido como é de conformidade a quem diversamente interpreta o mesmo trecho). Vão dar-se as cinco (17h00m), anoitece agora mais cedo, é fruta da época. A caminho destoutro alhures, aconteceu-me ver um rapaz que há bons quarenta anos não via. Está velhíssimo. Tinham-me dito (no ano passado) que estava preso por causa de umas trafulhices quaisquer. Há quatro décadas, era um louraço de que as raparigas gostavam. Tinha paleio – e até motorizada. Está acabadote, coitado, este robert-redford da zona Relvinha/Brinca/Loreto. As duas visões (cão & ex-recluso) entristuraram-me. Pode ser que entretanto se me dissipe a predisposição macambúzia.
    Revi uma vivenda azul no caminho das quatro horas.
    Vivalma lhe não vi, sob o céu ainda de todos.
    Uma idosa de sapatilhas-adidas veio ao euromilhões.
    A década bate carta por carta nos marcos de pedra.
    Tanto dá como não dá dar & não-dar.
    Na incansável (mas tão cansativa) pantalha televisiva, anões da politiqueirice grunhem boas-fés de pacotilha. A senhora do segundo-andar cria sardinheiras na varanda. São bonitos pontos encarnados em perspectiva crepuscular. (Aquele cão amargurou-me.)



03/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 815

 



815

Terça-feira,
2 de Novembro de 2021


Desferi ontem algumas linhas
Só mui vagamente relacionadas
Com a dita & suposta realidade.
Não me arrependo ou congratulo.
Devassei o meu dia em usufruto.
Foi-me suficiente o tempo.
Reiteram-se-me linhas-de-força
Linhas comportamentais próprias
Capazes de não ceder à desorientação.
E para amanhã planeio expedição.

Vêde & lêde: não é expedição ousada
É tão-só ir-me a renovar o passe
Sim, o dos autocarros municipais.
Sou freguês deles enquanto respiro
Inscrevo-me neles como corpo
Corpo transitário & transitório
Capaz de amor como de rejeição
Apto a ser esquecido antes de lembrado
Coração figurado tinido a cavaquinho
E amante de seu verso & de seu vinho.

Desfiro hoje linhas novas ao curso
Do mês novo em o corrente ano velho
Coisas que em linha me felicitam
Digo: me exaltam pacata felicidade.
Não todos os dias mas hoje sim
Hoje sim revivo instantes juvenis
Instantes de antes dos mortos & do anis
Quando era para não ser bem isto
Digo: quando de mim mesmo contemporâneo
E mais original do que mero sucedâneo.

A serenidade possível ocorre ainda
Ocorre que me acorre aleatória.
Experimento de momento estas linhas
Talvez um pouco menos que de costume
Obscuras, cifradas, chanfradas, iniciáticas.
Sim, um pouco mais claras talvez
Agora que saí da banheira reciclado
Pingando água & sabão como um justo.
Não tem nem causa mal ser comum
Em dia assim pluvial & qualquer-um.

Roupa lavada, decente, pronto
Me aguardava sobre o tálamo amplo
Em que à jacência dou de sono
Grassa lá fora o indeciso outono
Que desbravar apetece em marcha aberta.
Talvez, sim, ’inda hoje um pouco
Me dê ao ar silvestre entre cimentos
Través a frugal urbe indiferente.
A pé, colhendo o frio disponível
Redimir-me-á a hora irredimível.

Bom é em decente atavio ser portador
De lembrada bagagem, de que não-menor
É ter sido amado por quem já lá está.
A essa afeição sem preço cotável ou cotejável
Hei-de eu adir linhas de outra gente
Exemplo: Proust discorrendo sobre Música
Exemplo: Dickens nataliciando a Pobreza
Exemplo: Pessoa inglesando a Lusa Paróquia
E nos choupos altos o subido vento
Dando-me em rosto inteireza & fragmento.

Sim, invicto ainda da futura noite
Essa noite que termina & determina
Invicto ainda dela, alinho novidades
Velhas novidades da invisibilidade
Triste seria não ter um verso
Um só verso oponente ao olvido
Ao morto & ao matado & ao vivido
Aí onde grassa a vozearia do terminado.
Vida minha & minhas singelas ruas
São lavadas a sabão em condição de nuas.

Me não afligem já quimeras malsãs
Capazes de fiar trevas & desflorar manhãs.
Não. Ando mais pela Casa do Sal
Ali onde vinga a larga avenida
& os Conimbricenses de Portugal
São universais como a mesma vida.
Toco os vocabulares crisântemos
As lexicais anémonas, os cravos póstumos.
(Não, Sebastião, pelo sonho não é que vamos
Pois que nem já falamos, só falimos.)

Desfiar não seja desfear
Que ontem ’inda lembrança desfiei
De meu Pardal de 1981, real sem literatura
Mui feliz ele me fez, sagaz & petiz.
Outro real sem literatura nem graça
É o êxtase parolo ante a Web Summit
Que todas as televisões lambem ajoelhadas
Pindérica catedral de pretenso futurismo.
Um raio viesse que a tudo & todos fulminasse
Com potes de trampa que do céu desabasse.

Doo-Vos (de doar, não de doer) tão-só linhas
Que partilháveis serão se merecedo(ado)ras.
Muito aqui coevamente vive
Muito aqui coetaneamente convive.
Softwares-de-gestão & presidenciais marceladas
Números perdidos por passos idem
Lustral banho de ignara gargalhada
Folclorismo de plástico de putativas tradições.
Amparo a papel-tinta um ir-sendo-pessoa
(minúscula, não a que era Fernando em Lisboa).

Culpam agora as vacas pela emissão de metano
É como culpar as putas pela tesão dos camionistas.
Farto-me de rir à face da idiotia
& do apaneleiramento do mijar-sentado.
Uma coisa é o Di Caprio a afundar-se co’ Titanic
Outra bem diversa é o preço do pão ali na loja.
Estreei uma botelhita de soro fisiológico pró-óptico
Choro por receita, também eu falsário & anedótico.

Procedo (passa já das lorquianas cinco-da-tarde)
A uma sonoplastia para figurados surdos
Que tal sonoplastia é afinal a poesia
Sermão de cego que nenhum vidente encomendou.
Ainda assim, procedo & prossigo.
Desconfio de amanhãs-que-cantem
Como canta o, perdoável afinal, Tony Carreira.
Querer-me-íeis esbracejando qual doidinho-sinaleiro?
Desço devagar a ladeira que meu Irmão subiu:
& ambos itinerários vêm de Mãe que nos pariu.

A haurir o profundo ar já noctívago vou
Decidi-me sem esforço, é conforte o intuito
Penso eu que ocultas linhas lá fora
Se me revelarão graciosas, que não gratuitas.
Não garanto. Não prometo. Sequer afianço ou avalizo.
Eu vou-me a ares sem talvez ser preciso
Mas vou, vou sim, vezes há em que um homem
Sabendo-se velho se passa por jovem.
É agora.
Vinde comigo lá afora.

Ei-lo, ao velhomundonovodosaindavivos.
Mirai como ele é cativo dos cativ’iv’os:
Lojas de últimas néon-luzes (pouco remanescente)
Passantes de trela-cão a mijar por sólido
Bocarra umbro-cavernosa das oficin’autos
(Com o advento dos electrocarros, fecham todas)
Senhoras de olhos pisados por solas de mau matrimónio
Palavras estilhaçadas que tento colar a cuspo.
E uma libertinagem de sacola
Que aprendi mui depois da escola.

É, como gosto, pluvial a novanoit’antiga.
Sempre afinal saí, corro mundo, sei isto.
Digo: conheço esta porra toda, não nasci anteontem.
Volvo-me por vezes telegráfico & stop.
Mas não agora, não agoragoragora. AlfaBravoCharlie.
Sei onde instaura sentido a vírgula, sei.
Sei que antes de tinta-areada há que dar esfregaço.
(E que convém comer antes de meter bagaço.)
Só não uivo mais alto porque de cio as lunares ocasiões
Já dependem de sorteio como o euromilhões.

Palmilhando a Estrada de Eiras, ri-me sozinho.
Ia de guarda-chuva aberto – e a rir-me sozinho.
Disto me lembrava: após o quarto filho, minha Mãe
Alumiou dois rapazes gémeos – mas um deles, preto.
Meu Pai, desconfiando tão-só cinquenta-por-cento
Mais ainda maldisse a política afrocolonial de Oliveira Salazar
O Morcego Eunuco de Santa Comba Dão
O nosso Franco sem divisas generalíssimas
O Cabrão que de Portugal
Deu metáfora no Campo do Tarrafal.

Passou-me cerce tal riso, que me vi
Que me vi & comovi ante a palhaçada não-cómica
Da Vida-Como-Ela-É-Ou-Parece-Ser-
-Quando-À-Face-Da-Estação-Velha-Coimbra-B.
Chovia que nem Deus no-la negava.
Contei as horas – e da conta me perdi.
(Foi o mesmo pela minha Segunda-Filha.)
Mais murcha que o pénis a flor-do-engate.
Sim: é ver Um Dia, Todas as Noites, de 11 a 9
Páginas de O Preço da Chuva – e olhai quanto chove.

Olhai quanto chove – mas de V.º sítio de leitura.
O meu, que de escritura, é este: à face de Coimbra-B.
Mais rarefeito é o trânsito rodoviário ora.
(São as 19h55m – e sim, ainda sei d-escrev-iv-er.)
Estive aqui mesmo no Inverno 1987/88: mau Inverno.
Eu estava de luto, ganiam os cães que eu era.
(A seguir a tal Inverno, nenhuma houve primavera.
A não ser que. Mas esperai. Lêde & esperai.)
Precipita-se em poalha-d’água o céu rarefeito:
E coice de abandono quilate-dilate-bate em meu peito.

Quase me custa por vezes não ser um homem-de-Deus
Mas um do Deus-dos-Católicos, esse que ceva padralhada
Dedicada a enrabar acólitos & enfrascados sacristães
Que roubam em vinho o que não comem de pães.
(Deixemos isto: o senhor papa Francisco,
Cujo endereço desconheço enquanto mandava Videla O Assassin’Argentin’o
Pode contemporizar quanto queira: morre em barro
Como me morrem isqueiro, morrão & cigarro.)
(Juvenal, Castro, Capitão-Mor, Leitão:
Mais sete da CUF que já cã não estão.)

Li devagar & pouco Whitman, cuidado co’ bicho:
É que nos faz crer que nem tudo é lixo
Na USAmérica pesada, enfartada, presente
Que confunde a cifra com a sombra da gente.
Sim, Álvaro de Campos o leu também:
E, órfão de pai, viu que sua mãe
Se casava/emigrava com o farto bigodes
Rumo-África-do-Sul-ou-te-calas-ou-te-fodes.
Li Walt Whitman antes de sair de casa:
O mesmo resulta grão-ou-não-grão-na-asa.

Recordo agora, de Trás-os-Montes-de-Portugal, um Moura
Instruendo que era & foi de certa infantaria escolar
Que em minha mocidade a Mafra foi parar.
Solidário moço. Só minha lembrança o doura.
(Mas agora: será vivo, frutificou, é feliz, publicou?)
Foi na incorporação de Março/1988, eu ia tardio
Tinha pedido espera, era casado, cursava Letras
Mas não era ainda pai, só esgalhava punhetas.
O Moura-de-Bragança. Calado & Bexiga-de-Almeirim.
Camilo-de-Lisboa. Sousa-de-S.-Martinho-do-Bispo. E vinho para mim.

Ali é Coimbra-B, tida por Estação Velha, nova em 1864.
Vinham livros franceses empacotados.
Anteros ricos açoreanos endinheirados
Compravam Proudhon & Hugo & a Lua!
Coimbra era Universidade – e o resto, nudez de rua.
É a minha terra. Atenção, é a minha terra.
Não me venham com industrialismos nem torgas-da-terra.
(O Torga é trasmontano & rápido brasileiro:
& cuido que cuidava menos de verso que de dinheiro.)
(Eiroeiroeiroeiro.)

Dizia-Vos: Desferi ontem algumas linhas
E hoje não faço diferente, alheio ou diverso.
(Tenho voz mas falo de mais a sós.)
Exemplo: amanhã visito a meu Irmão José Daniel.
Exemplo: é, depois da mudança-da-hora, a prima vez.
Exemplo: a escuridão é reforçada mas ele é vivo.
Esperai.
Preciso de recompor isto.
SenhorProfessorEliasRodriguesFaro.
Preciso de recompor isto, claro.

Retornando a casa, já pelo Arco Pintado
Sorrio lábio-tristonhamente à passagem
Pela fronte do estabelecimento a que capataz
Capaz & dedicado – Senhor Reis da Poceram –
Acorria – até a domingos & feriados.
Senhor Reis, cancro-de-laringe:
Senhor Conceição, perto-do-mesmo.
Não há muitas linhas mais que disfarcem
Que disfarcem a minha pertença
A cada minha Filha, essa pertença imensa.

 

02/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 813 & 814



813

Segunda-feira,
1 de Novembro de 2021

    Noite. Para já, noite. Os vivos visitaram os cemitérios, floriram & velaram os intervalos da chuva. Santos & fiéis-defuntos partilham o inicial par de dias do penúltimo mês. Em Glasgow, os genopatas do G20/“países mais ricos” brincam aos incendiários-planetários. Por mim & cá comigo, cuido tão-só de meus crisântemos vocabulares. Estraçalhei em devido tempo certas “oportunidades” – pois ora ainda bem!
    Noite. Por enquanto, esta. Até que uma menos efémera se me instaure de patas m’atiradas ao peito.

814

    Malgrado certa resistência (quase) subconsciente minha, a Política interessa-me. A nacional tem, é claro, primazia. Com o espessar da idade, ocorre comigo um paradoxo inelutável, este: indignação & divertimento mesclam-se em simultaneidade. Roubalheiras, indecências, oportunismos, pilhagens & pilhérias – tudo concorre para fazer do meu espelho uma espécie de altar de santo, mesmo que de-trazer-por-casa.
    Assim dado intróito a rebate, mais digo: as cenaças correntes de CDS-PP & PPD-PSD são maravilhosas. Ao avesso do que sucede no Bloco de Esguelha, no CDS não compensa a garotice inimputável. Queira-se ou não, aquele foi o partido de um Adriano Moreira – como pode, pois, ser o mesmo sob a égide creche-&-desaparece de um Chicão? No partido fundado por Sá Carneiro, a novidade é nenhuma: desde 1974 que aquele é um atol em que se entredevoram barões & tubarões… de escabeche.
    Quanto ao senhor Presidente da República, continua a ser o que de ser nunca deixou: um comentador de café com o chinelinho a puxá-lo para a feira. Qualidade suprema de Marcelo: não ser Aníbal. É uma figura de (aparente, ao menos) bem com a vida, não um espantalho ósseo-cadaveroso – digo eu sem estar a ser encomiástico.
    O resto é o resto: impensavelmente subido ao secretariado-geral da ONU, o pantanófobo Guterres, o mui católico António Guterres – lá anda nas pantalhas dos mundos de cristal. Eriça-me a penugem da nuca vê-lo em constante posição de bajulador dos oprimidozinhos, dos refugiadinhos, dos pobrezinhos – nem uma simbiose dos padres Américo & Cruz com a Teresinha de Calcutá & a Vossa Senhora de Fátima seria tão sant’antónica quanto este Guterres de crucifixante parlapiê.
    Lá fora, as anedotas de ruim-gosto Trump & Bolsonaro respondem & correspondem à inefável estupidez, aliás militante, dos respectivos eleitores seus. Na Coreia do Norte, viceja a dinastia interminável dos matraquilhos atómicos. Em Israel, Auschwitz chama-se agora Palestina. No Afeganistão, vitória dos primatas que nem para frescos rupestres prestam. França & Inglaterra (e, não tarda, os países nórdicos) foram afromuçulmanizados sem retorno. A Rússia cacareja gorilas perigosos. A China tornou bípede a vesp’asiática. Índia & Paquistão fedem. A África (toda) é irremediável. Vão por enquanto safando-se, por sua descomunal extensão, o Canadá & a Austrália, nações simbolicamente súbditas da talvez não-perpétua Senhora D.ª Isabel II.
    Não cuideis de olhar-me como salvífico messias portador de curandeira alternativa. Nem quando durmo me vejo optimista como pandorgamente o nosso Costa se mostra. Há mais de vinte anos, eu ainda penava por jornais regionais – duplamente penava: em pena de escriba como em penitência de jornalisteiro. Deixei-me disso. Fatigaram-me até à repugnância os anões mentais das autarquias pequenitas, o carreirismo merceeiro de fregueses & freguesias, o analfabetismo diplomado de repartições, churrasqueiras, associações, cenáculos, grémios, ateneus, sínodos, conclaves, estábulos, curros, currículos, versos & versículos, divertimentos & divertículos. Enojado embora, diverti-me à tripa-forra. Confesso. E ainda me acontece quando, por vezes, não durmo nem sonho que acordo.


01/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 812

© DA.

812

Domingo & segunda-feira,
31 de Outubro & 1 de Novembro de 2021

    Em esta trepidante & contínua aventura chamada A-Minha-Vida, não cessam florescimentos nem deflagrações de largo espectro de acção supimpa. Ou então não, eu que me vá a enganar outro(s).
    Sem engano: o meu dia, dei-o mormente a Mestre Charles Dickens. Chá & Charles – assim foi. Já ontem, pela noitinha, ele me apetecia. Hoje, dei-lhe forte. Fora do aquário privado que esta casa é, a condição meteorológica instigava o sono sem utopias nem decepções. Dei-me a ambas, digo, aventuras: ler & dormir. Mesmo dormindo, todavia, não se me escapuliu ensejo de (re)citador:

    “He had been, when young […], a student of natural philosophy, and had attended lectures; but he run wild, misused his opportunities, gone down, and never risen again. He had no complaint to offer about that. He had made his bed, and he lay upon it. It was far too late to make another.”

    Ora, o itálico acima é, todo ele, do grande Senhor Ch. Dickens (trecho de Signal-Man, vindo a lume no Natal de 1866).
    Desperto em razoável estado de frescura – e é já segunda-feira, 1.º de Novembro. Volto a ter dezassete anos. É 1981. Acontece-me ingente tragédia. No meu quarto de rapaz solteiro, crio há meses um pardal. A 1.11.81 (domingo), um gato mata-mo. Recupero o cadáver mínimo desse meu companheiro alado. Quarenta anos (des)feitos hoje. Aprendi a lição: quatro décadas volvidas, ainda alimento aves – mas à distância só. Em casa, é um gato que tenho.


Canzoada Assaltante