03/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 815

 



815

Terça-feira,
2 de Novembro de 2021


Desferi ontem algumas linhas
Só mui vagamente relacionadas
Com a dita & suposta realidade.
Não me arrependo ou congratulo.
Devassei o meu dia em usufruto.
Foi-me suficiente o tempo.
Reiteram-se-me linhas-de-força
Linhas comportamentais próprias
Capazes de não ceder à desorientação.
E para amanhã planeio expedição.

Vêde & lêde: não é expedição ousada
É tão-só ir-me a renovar o passe
Sim, o dos autocarros municipais.
Sou freguês deles enquanto respiro
Inscrevo-me neles como corpo
Corpo transitário & transitório
Capaz de amor como de rejeição
Apto a ser esquecido antes de lembrado
Coração figurado tinido a cavaquinho
E amante de seu verso & de seu vinho.

Desfiro hoje linhas novas ao curso
Do mês novo em o corrente ano velho
Coisas que em linha me felicitam
Digo: me exaltam pacata felicidade.
Não todos os dias mas hoje sim
Hoje sim revivo instantes juvenis
Instantes de antes dos mortos & do anis
Quando era para não ser bem isto
Digo: quando de mim mesmo contemporâneo
E mais original do que mero sucedâneo.

A serenidade possível ocorre ainda
Ocorre que me acorre aleatória.
Experimento de momento estas linhas
Talvez um pouco menos que de costume
Obscuras, cifradas, chanfradas, iniciáticas.
Sim, um pouco mais claras talvez
Agora que saí da banheira reciclado
Pingando água & sabão como um justo.
Não tem nem causa mal ser comum
Em dia assim pluvial & qualquer-um.

Roupa lavada, decente, pronto
Me aguardava sobre o tálamo amplo
Em que à jacência dou de sono
Grassa lá fora o indeciso outono
Que desbravar apetece em marcha aberta.
Talvez, sim, ’inda hoje um pouco
Me dê ao ar silvestre entre cimentos
Través a frugal urbe indiferente.
A pé, colhendo o frio disponível
Redimir-me-á a hora irredimível.

Bom é em decente atavio ser portador
De lembrada bagagem, de que não-menor
É ter sido amado por quem já lá está.
A essa afeição sem preço cotável ou cotejável
Hei-de eu adir linhas de outra gente
Exemplo: Proust discorrendo sobre Música
Exemplo: Dickens nataliciando a Pobreza
Exemplo: Pessoa inglesando a Lusa Paróquia
E nos choupos altos o subido vento
Dando-me em rosto inteireza & fragmento.

Sim, invicto ainda da futura noite
Essa noite que termina & determina
Invicto ainda dela, alinho novidades
Velhas novidades da invisibilidade
Triste seria não ter um verso
Um só verso oponente ao olvido
Ao morto & ao matado & ao vivido
Aí onde grassa a vozearia do terminado.
Vida minha & minhas singelas ruas
São lavadas a sabão em condição de nuas.

Me não afligem já quimeras malsãs
Capazes de fiar trevas & desflorar manhãs.
Não. Ando mais pela Casa do Sal
Ali onde vinga a larga avenida
& os Conimbricenses de Portugal
São universais como a mesma vida.
Toco os vocabulares crisântemos
As lexicais anémonas, os cravos póstumos.
(Não, Sebastião, pelo sonho não é que vamos
Pois que nem já falamos, só falimos.)

Desfiar não seja desfear
Que ontem ’inda lembrança desfiei
De meu Pardal de 1981, real sem literatura
Mui feliz ele me fez, sagaz & petiz.
Outro real sem literatura nem graça
É o êxtase parolo ante a Web Summit
Que todas as televisões lambem ajoelhadas
Pindérica catedral de pretenso futurismo.
Um raio viesse que a tudo & todos fulminasse
Com potes de trampa que do céu desabasse.

Doo-Vos (de doar, não de doer) tão-só linhas
Que partilháveis serão se merecedo(ado)ras.
Muito aqui coevamente vive
Muito aqui coetaneamente convive.
Softwares-de-gestão & presidenciais marceladas
Números perdidos por passos idem
Lustral banho de ignara gargalhada
Folclorismo de plástico de putativas tradições.
Amparo a papel-tinta um ir-sendo-pessoa
(minúscula, não a que era Fernando em Lisboa).

Culpam agora as vacas pela emissão de metano
É como culpar as putas pela tesão dos camionistas.
Farto-me de rir à face da idiotia
& do apaneleiramento do mijar-sentado.
Uma coisa é o Di Caprio a afundar-se co’ Titanic
Outra bem diversa é o preço do pão ali na loja.
Estreei uma botelhita de soro fisiológico pró-óptico
Choro por receita, também eu falsário & anedótico.

Procedo (passa já das lorquianas cinco-da-tarde)
A uma sonoplastia para figurados surdos
Que tal sonoplastia é afinal a poesia
Sermão de cego que nenhum vidente encomendou.
Ainda assim, procedo & prossigo.
Desconfio de amanhãs-que-cantem
Como canta o, perdoável afinal, Tony Carreira.
Querer-me-íeis esbracejando qual doidinho-sinaleiro?
Desço devagar a ladeira que meu Irmão subiu:
& ambos itinerários vêm de Mãe que nos pariu.

A haurir o profundo ar já noctívago vou
Decidi-me sem esforço, é conforte o intuito
Penso eu que ocultas linhas lá fora
Se me revelarão graciosas, que não gratuitas.
Não garanto. Não prometo. Sequer afianço ou avalizo.
Eu vou-me a ares sem talvez ser preciso
Mas vou, vou sim, vezes há em que um homem
Sabendo-se velho se passa por jovem.
É agora.
Vinde comigo lá afora.

Ei-lo, ao velhomundonovodosaindavivos.
Mirai como ele é cativo dos cativ’iv’os:
Lojas de últimas néon-luzes (pouco remanescente)
Passantes de trela-cão a mijar por sólido
Bocarra umbro-cavernosa das oficin’autos
(Com o advento dos electrocarros, fecham todas)
Senhoras de olhos pisados por solas de mau matrimónio
Palavras estilhaçadas que tento colar a cuspo.
E uma libertinagem de sacola
Que aprendi mui depois da escola.

É, como gosto, pluvial a novanoit’antiga.
Sempre afinal saí, corro mundo, sei isto.
Digo: conheço esta porra toda, não nasci anteontem.
Volvo-me por vezes telegráfico & stop.
Mas não agora, não agoragoragora. AlfaBravoCharlie.
Sei onde instaura sentido a vírgula, sei.
Sei que antes de tinta-areada há que dar esfregaço.
(E que convém comer antes de meter bagaço.)
Só não uivo mais alto porque de cio as lunares ocasiões
Já dependem de sorteio como o euromilhões.

Palmilhando a Estrada de Eiras, ri-me sozinho.
Ia de guarda-chuva aberto – e a rir-me sozinho.
Disto me lembrava: após o quarto filho, minha Mãe
Alumiou dois rapazes gémeos – mas um deles, preto.
Meu Pai, desconfiando tão-só cinquenta-por-cento
Mais ainda maldisse a política afrocolonial de Oliveira Salazar
O Morcego Eunuco de Santa Comba Dão
O nosso Franco sem divisas generalíssimas
O Cabrão que de Portugal
Deu metáfora no Campo do Tarrafal.

Passou-me cerce tal riso, que me vi
Que me vi & comovi ante a palhaçada não-cómica
Da Vida-Como-Ela-É-Ou-Parece-Ser-
-Quando-À-Face-Da-Estação-Velha-Coimbra-B.
Chovia que nem Deus no-la negava.
Contei as horas – e da conta me perdi.
(Foi o mesmo pela minha Segunda-Filha.)
Mais murcha que o pénis a flor-do-engate.
Sim: é ver Um Dia, Todas as Noites, de 11 a 9
Páginas de O Preço da Chuva – e olhai quanto chove.

Olhai quanto chove – mas de V.º sítio de leitura.
O meu, que de escritura, é este: à face de Coimbra-B.
Mais rarefeito é o trânsito rodoviário ora.
(São as 19h55m – e sim, ainda sei d-escrev-iv-er.)
Estive aqui mesmo no Inverno 1987/88: mau Inverno.
Eu estava de luto, ganiam os cães que eu era.
(A seguir a tal Inverno, nenhuma houve primavera.
A não ser que. Mas esperai. Lêde & esperai.)
Precipita-se em poalha-d’água o céu rarefeito:
E coice de abandono quilate-dilate-bate em meu peito.

Quase me custa por vezes não ser um homem-de-Deus
Mas um do Deus-dos-Católicos, esse que ceva padralhada
Dedicada a enrabar acólitos & enfrascados sacristães
Que roubam em vinho o que não comem de pães.
(Deixemos isto: o senhor papa Francisco,
Cujo endereço desconheço enquanto mandava Videla O Assassin’Argentin’o
Pode contemporizar quanto queira: morre em barro
Como me morrem isqueiro, morrão & cigarro.)
(Juvenal, Castro, Capitão-Mor, Leitão:
Mais sete da CUF que já cã não estão.)

Li devagar & pouco Whitman, cuidado co’ bicho:
É que nos faz crer que nem tudo é lixo
Na USAmérica pesada, enfartada, presente
Que confunde a cifra com a sombra da gente.
Sim, Álvaro de Campos o leu também:
E, órfão de pai, viu que sua mãe
Se casava/emigrava com o farto bigodes
Rumo-África-do-Sul-ou-te-calas-ou-te-fodes.
Li Walt Whitman antes de sair de casa:
O mesmo resulta grão-ou-não-grão-na-asa.

Recordo agora, de Trás-os-Montes-de-Portugal, um Moura
Instruendo que era & foi de certa infantaria escolar
Que em minha mocidade a Mafra foi parar.
Solidário moço. Só minha lembrança o doura.
(Mas agora: será vivo, frutificou, é feliz, publicou?)
Foi na incorporação de Março/1988, eu ia tardio
Tinha pedido espera, era casado, cursava Letras
Mas não era ainda pai, só esgalhava punhetas.
O Moura-de-Bragança. Calado & Bexiga-de-Almeirim.
Camilo-de-Lisboa. Sousa-de-S.-Martinho-do-Bispo. E vinho para mim.

Ali é Coimbra-B, tida por Estação Velha, nova em 1864.
Vinham livros franceses empacotados.
Anteros ricos açoreanos endinheirados
Compravam Proudhon & Hugo & a Lua!
Coimbra era Universidade – e o resto, nudez de rua.
É a minha terra. Atenção, é a minha terra.
Não me venham com industrialismos nem torgas-da-terra.
(O Torga é trasmontano & rápido brasileiro:
& cuido que cuidava menos de verso que de dinheiro.)
(Eiroeiroeiroeiro.)

Dizia-Vos: Desferi ontem algumas linhas
E hoje não faço diferente, alheio ou diverso.
(Tenho voz mas falo de mais a sós.)
Exemplo: amanhã visito a meu Irmão José Daniel.
Exemplo: é, depois da mudança-da-hora, a prima vez.
Exemplo: a escuridão é reforçada mas ele é vivo.
Esperai.
Preciso de recompor isto.
SenhorProfessorEliasRodriguesFaro.
Preciso de recompor isto, claro.

Retornando a casa, já pelo Arco Pintado
Sorrio lábio-tristonhamente à passagem
Pela fronte do estabelecimento a que capataz
Capaz & dedicado – Senhor Reis da Poceram –
Acorria – até a domingos & feriados.
Senhor Reis, cancro-de-laringe:
Senhor Conceição, perto-do-mesmo.
Não há muitas linhas mais que disfarcem
Que disfarcem a minha pertença
A cada minha Filha, essa pertença imensa.

 

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Canzoada Assaltante