14/11/2021

PARNADA IDEMUNO - 820 a 829 (4 + 5 sonetos)

© DA.


820

Terça-feira,
9 de Novembro de 2021

Sobre a tília em crescente a Lua
refrigera já o revés da luz.
É o pré-recolhimento dos penados,
coitados dos que a abrigo não tornam.

P’ra bandas do Choupal é tudo oiro,
desse ouro não cotado ou miserando.
Benigno arvoredo nos concita
a sombra de um sorriso gracioso.

Já vês, tu Lídia Laura, quão bem-dita
é a sorte minha hoje pela noitinha:
por moedas pouquinhas esplanado,

gozo o sereno fresco de Coimbra.
Doutra fortuna, ó lídima Lídia,
cobiçoso me não verás, nem perto.

821

Deu-me hoje para o soneto versilivre,
ó minha Dinamene incorrupta.
Antes versos catorze que enfim sempre
para a droga ou pior, ó cara-linda.

Sete horas penei hoje doutras voltas,
que delas me era dar obrigação.
Ao dar estão elas dadas & enxutas,
outras venham por mor d’inda estar vivo.

Pretérita até s’um dia torna
a memória-futuras das crianças:
viola-a8s) o olvido galopante

que ao humano faz boca-de-riso.
(De catorze, vão treze aviados:
sejam estes dois últimos rimados.)

822

Sete horas orei hoje a outro orago.
Carago, já lá vão & a cá não voltam.
Noitinha, saí-me a dar afago
a cães que eu sou & q’se me revoltam.

Passou ora um gajo de bicicleta,
sacana d’orelha ao telemoble!
Sou duma geração tão obsoleta,
que o temi varado dum automoble!

Ou então, casta Clara preciosa,
que à rosa deves nada & a mim n’idem,
quão me sobra, soçobra sem remédio.

É talvez, de bourgeois, épater tédio…
Não sei, sabê-lo-á, que é Ninguém.
Ou então, Clara casta & preciosa…

823

A mágoa é uma criança alta:
cresce tanto as paredes numeradas
que risca a lápis a mágoa-malta
de operárias casas não-nomeadas.

Saudade é coisa matraquilhada
por de clichés useiros inscientes.
Comigo, é tudo que vale nada:
tudo me presenteia de ausentes.

Admiro o meu Almada espertalhaço:
comeu d’arte na mesma ao Eixo d’Aço….
Já o Pessoa tirou seu circunflexo:

não foram os Ingleses ask for nexo…
A mágoa é uma alta criança:
de pasto de velhinhos enche a pança.

824

Quarta-feira,
10 de Novembro de 2021

Penei ontem ainda o meu bocado
p’ra cozer uns sonetos esquecíveis.
Torrei até queimar alguns fusíveis
por quarteto-soneto versejado.

Já hoje fiz outras coisas pelo dia,
aprendendo coisitas sem esforço:
mas da cadeira me ergui de dorso
dorido tão, que em mim eu não cabia.

Transpiro os rios frios da velhice,
suando estopinhas inclementes.
Vem tal, talvez, do uso de aguardentes

& de saudades vãos de uma Alice.
Naturais, já me sobram só dois dentes:
mas mordo mais sonetos, minhas gentes.

825

Ai ó Alice Alice da branca carnação!
Alice, Alice, quem foi que te desdisse
meu desamor, causa tua & de razão?
Vil foi quem houver sido, ó Alice!

Deu-te anilha um que é lá da Guarda,
bravo marmanjo sem literatura.
Se me dei eu a outras, foi loucura
da tropa que tu és sem me dar farda.

Vivo hoje com senhora mui lavada,
chama-se Doroteia & é feiosa:
mas coradita & fresca qual a rosa

que o rocio refresca d’orvalhada.
Muito vamos ao teatro & a exposições.
Nem ela é Dinamene, nem eu, Camões.

826

’fonei ontem a Joaquim Delfim Ferrão,
q’inda filho de outros pais é meu irmão.
Tergiversámos sobre «Os Belenenses».
Ele é rico & eu pobre: mas pertences

haurido hei eu dele generoso.
Às vezes (sacana!), dá-lhe prò gozo
& procrastina a esmola em bolachas:
& eu greto-me todo, eu abro rachas.

Quando moços, fazíamos batota
mentindo eterna nossa mocidade.
Ele é rato-de-campo; eu-de-cidade.

Fomos de excursão a Aljubarrota
& à sarracena Silves noutra idade.
Isto é que é um soneto de qualidade.

827

Vi cá ’baixo ver o como se vivia:
é igual a amanhã & mais um dia.
Sentei-me a um canto do meu idioma
& fiz de lírio seco em redoma.

Sem pais, vivo a minha orfandade.
Sou correcto em as filas-repartições
& de uma Dinamene sem Camões,
bárbara-escrava de minha cristandade.

Dou esmola a mil cegos de outiva
(pois/que/nela/vivo/já/não/quer/que/viva)
& já fui rapazito sem sonetos.

E fortuna q’inda a vida me não deu,
digo-Vo-la ora & já sem escarcéu:
Filhas havendo, quero ora Netos.

828

Aos cães atirei (que m’a não quiseram)
qualquer prosperidade sossegada.
À flor como ao fundo, eu valho nada:
tais os humanos todos que vieram.

Nem frios há já como antigamente,
dói-me o Verão postiço de onze meses.
Constantino de Pesadelos & Reses,
afinal, ó Redol, ó boa gente.

Meu caso só conta porque o conto
– de resto, a irrelevância nem estremece.
Se apetece ser outro? N’apetece,

que igual a tanto vale igual a tonto.
E aos cães atirei (quiseram nada)
ossos & e a minha carne lavada.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante