Madeira
Segunda-feira
passada, através de um calor de sufocação, preparava-me para estacionar o carro
quando um agente de polícia me sinalizou que o não fizesse ali.
O
agente inclinou-se com cortesia à janela direita e explicou-me: “Há um cavalo morto, tem de passar por
aqui a máquina para o levar.” Estacionei noutro sítio e fui ver. Era
verdade. No terreno baldio onde acaba o bairro social (pintado, com humor, de
cor-de-rosa), havia um animal entregue à impenetrabilidade da morte. Era um
pónei acabado. Perto dele, um pónei vivo olhava o morto com a mesma humana
incompreensão. Talvez fosse irmão dele. Nem eu nem o guarda sabíamos porquê. Se
de doença, se de sede, se de quê. Um animal deitado de vez na erva exausta,
apenas. Abatido pela inclemência do sol, parecia o que era: um saco de ossos,
carne, pele, cabelo – um saco igual àquele em que nos embrulhamos para existir,
faça chuva, faça sol. Fazia sol. Jazia todo o sol que há, nessa segunda-feira
esbraseada que já não podia punir o cavalito, o cavalito que nenhuma
terça-feira torturará mais. O ar vibrava de vidro derretido. O gás da luz cozia
as casas como a ovos geométricos. Nenhuma brisa chegava de nenhum mar. A única
árvore do sítio dardejava riscos de giz de passaritos de ardósia. O calor era
tanto, que a eternidade se tinha tornado um fenómeno local. A marca da camisa
tatuava-se-me sobre o mamilo do coração. Era uma cena triste. Por um momento,
desejei que não fosse verdade, que o polícia e a realidade e o sol se tivessem
enganado, que aquele vulto jacente não fosse um pónei morto mas, afinal e
tão-só, um cavalito de pau ali abandonado à condição de madeira sem magia dos
carrosséis desmantelados. Que ainda fosse, enfim, uma brincadeira de crianças.
Mas era o que era. E o que era, era triste e ao sol. “Os animais são como nós”, disse eu ao polícia, só para que,
dizendo alguma coisa, alguma coisa nos desse a ilusão de ser possível
sobreviver ao calor e à tristeza e ao pónei. Ele concordou com um menear de
cabeça. A verdade é que não havia nada a dizer. A máquina falaria, arquejando
de gasóleo na remoção do corpo. Não fiquei para assistir a essas exéquias
mecânicas. Ao fim do dia, quando a noite me concedeu o cessar-fogo, voltei ao
carro. Antes de meter a chave, decidi regressar ao baldio. Nenhum pónei, vivo ou
morto, por ali siderava na sufocação fátua da lua de Junho. Regressei a casa
pensando no pónei vivo. Já tinha a crónica. A crónica que é, afinal, sobre ele.
Resume-se a isto: é nos vivos que devemos pensar. Póneis ou não, irmãos ou não,
é nos vivos. A eles devemos a sombra em plena canícula, a água no cálido
deserto, o soro em hora de veia aberta, a palavra quando o óxido da indiferença
(n)os arrepanha de ferrugem. Os mortos cantam, mas os vivos contam. Caso
contrário, a vida torna-se tão improvável como um lugar de estacionamento num
carrossel de vivos cavalitos de osso, carne, pele, cabelo, madeira.
1 comentário:
Dói, a morte... Estive a velar alguém há poucos dias. Sei.
É sempre muito bom ler-te, Daniel! :)
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