20/01/2013

Trabalho do dia 8 de Janeiro de 2013, terça-feira que foi




SEIS TRÊS VEZES CADA VEZ PARA FAZER-ME TUNA CADA VOZ

Leiria, 7/I/2013, segunda-feira

I

Tenho sabido desconhecer com pertinaz valentia o que aí vem.
Uma pessoa nasce, o corpo faz-se homem, o coração nem tanto.
Apurei razoável técnica no atirar pão a pombas, entretanto.
Entretanto e a tantas, que de pertinaz contumácia são elas também.
Ao meio-dia e qualquer coisa telefonei já ao sobrinho Ca’litos.
Fez-se ele outro homem, trinta mais cinco contam seus dele os anos.

O que aí vem:
este cão dourado esperando, vivendo só cada dia só;
a ambulância em sossegada marcha regressando de serviço;
o bigode do senhor polícia pensando no jogo de sueca sábado próximo;
a reuma-pneuma da senhoria cheiinha de euros na Caixa;
a manteiga liminar do pão do amor fatiado em dois corpos.

Não desconheço tudo, que o olhar exerço bem, só que verbalmente.
Anoto com minúcia o desmando convencional dos elementos mundiais.
A minha rua, que foz se faz em avenida, basta-nos bem por cosmos.
Sempre bastou.
Aos anos que assim estou/sou.
Periferia é o que posso trazer da Poesia.

II

Falei com as filhas, uma só de cada vez por enquanto.
Não pude ainda organizar para elas o espectacular ágape.
Sumos e torradas para todas ambas, uma vez na vida os três.
Tenho dado pão conjunto a outras pombas.
Um homem é um homem, há que municiar provisões.
Os meus Pais morreram, as ainda me vivem.

Portanto:
a chegada de luz no rosto em sombra deve versejar.
Versejar-se, não: o próprio não conta, sua criação é que sim.
Não é que com isto defenda o estruturalismo abiográfico.
O que defendo, é o que não ataco mas acometo:
o amor invencível, a ligação invencível, a invencível perda.

Chego-me ao balcão e, porquinho-da-Índia, grunho delicadezas.
Um copinho de doce, uma locução meteorológica, um aleluia português.
Nêsperas & damascos, botas-de-borracha & charcos, hesíodos & plutarcos.
É a terça-feira que todas as segundas profetizam à primeira.
Não é difícil.
Difícil – é não saber desconhecer: mas isso eu sei. Ou hei.

III

Pássaro não seco, sumarento antes, congregarei meus benévolos fantasmas
em mental diáspora por vezes livresca embora mas não sempre.
Linhas e linhas de montes montando a geometria afinal una:
quanto basta a que cardíacas cordas se façam tuna.
Da pessoália fernandina, a prazenteira tríade não era
um pacote de cigarros / uma chávena de café / um romance policial?

Era. E não só tal era, claro que não, mas isso era.
Penso por vezes nessa ilha-de-vozes Fernando chamada.
Penso nele como em Pessoa que se conhece na rua, mas dentro não.
Ele tirou o circunflexo ao O para se um dia na vida em vida publicado em Inglês.
Coitados dos Ingleses, coitado do Crowley, que Maugham parodiou
e cuja mansão o Jimmy Page comprou.

Vou a Pombal amanhã? Vou hoje?
A decisão cabe ao meu avatar literário.
Uma taça de sopa, as migas de um resto de pão, uma atenção
prestada ao acumen de que Poe faz a distinção
abdutiva.
E que o resto do dia, Pombal ou não, se viva.

IV

Que o que aí vem, novidade seja – não no falar mas no escrito.
Falar – é tipo Otelo Saraiva de Carvalho.
O escrito é Poe, é Pessoa, é Kafka, é Joyce, é Proust – e é agora.
Agora é a síntese de enquanto-há-tempo.
Não é queimar uma revolução, é fazê-la.
Uma pessoa entende esta sextilha como um recado já não futuro.

Agora, agora – é quando ela chega, assim de verde-preto enroupada.
É como se ser e aparecer tão bonita lhe não custasse nada.
Uma rosa de dentes em piano é sua dentição de marfim,
a mim o quase-ébano dos lábios me custando carmim.
As senhoras rodam em falas de salão, o chá bule-se a si mesmo.
E não sei que seja, se a beleza não for sempre cataclismo.

Dou um recado em cinza desta tarde, que luz foi a que pôde.
Ao tempo tudo concorre, acorra nada embora porém.
Eu sempre soube disto, eu juro que sempre soube.
Era portanto no tempo em que a minha Mãe,
desertada de filhos entretanto crescidos-idos à vida,
à ávida vida, dizia:

V

Seria preciso que não percebera de tua senhoria o mando
para que regular coubera minha presença mandada.
Isto, bem no sei, foi tudo espera mais que nada.
E agora os dias são mais que amanhã, d’aves um bando
que a gente coleccionou de quanta ave amestrara.
Recorda tu: praça-dos-táxis, Coimbra, ao Calhabé:

andava eu então sabendo o que da própria Mãe a morte é.
Moedas sempre poucas, mas tal riqueza de esperar,
qu’inda hoje em triplas sextilhas sei recoleccionar
essas horas-de-chuva, esse verão-de-ervas, quando, no Café,
um telefonema podia, por poema, valer a leitura,
toda a leitura, toda a secura, toda a espera afinal procura.

Sou ainda esse gajo, esse almocreve doido por lápis & azeitonas
que por Lisboa rastejou perfumes de mal-lavado.
Era na Rua de S. José. As putas mais masculinas e boazonas
deixavam pelo chão as roménias e as ténias do esburacado.
Espera. Tu agora não respires. Atende. A gente agora compreende.
Maravilha de aqui ao pé: vai estalar: é no Calhabé: vais-me telefonar.

VI

Se eu escrevesse: OLHA, MORREU O ALVES DA PASTELARIA;
ou se: COME METAFÍSICAS, Ó PEQUENA DE CHOCOLATE,
ninguém senão de mim se riria (mais do que leria ou Leiria),
dada a crua ignorância do dislate.
Mas no entanto o Alves morreu
– e, graças-ó-caralho, o Alves não era eu.

Eu só preciso de me não mandarem versos as pessoas que não são versos.
Tenho a caixa electrónica do correio cheia de poemas-lidl.
Eu não sou a caixa-de-exclamações-do-Continente,
aí-ó-foda-se!, aí-ó-gente!
Eu sou, de facto, um poeta-de-pastelaria
mas não sou nem o Alves nem morri (nem seria agora que morreria).

O tédio não me mata, só me refracta ou retrata, nem me retracta.
O facebook é porreiro porque, a cada música que não compus
e lá-nele meto, pareço tê-la composto e ser um gajo bestial.
Não sou. O que se passa, é ter-me o tédio nascido em Portugal.
O Alves do Pessoa é outro gajo: espreme por aí muita borbulha
que eu, sendo da Pedrulha, não pus. Nem pus, nem acne. Nem Tabacaria.

TRÊS SONETOS PARA ASSESTAR O FIM DO DIA

I

Percebo da juventude a vontade aérea.
Não má é coisa tal, que eu já não tenho.
Sobretudo, e sobre tudo, sobrevoa a via venérea
dos mortos que amei e que mantenho.

E de vivos, tu, nada? De vivos tudo,
que deles tudo vivo, como se família
me fosse o sobrevoo sobre tudo
o que é morto e vivo e caco de mobília.

Sim, percebo da juventude o arejar.
Do meu melhor lápis lhe dou o afiar
e o papel do caderno nunca é de menos.

Ainda ontem, que vi a Fátima ao passar,
disse-l’ eu assim: Ó Fatita, ó arejar!
Há muito a conheço: desde pequenos.

II

Pela morrinha matinal serás bem-vinda
a renascer preclara em tua luz.
A noite já não é, a noite é finda.
(Salvação-porra-caralho-ó-meu-Jesus!)

Dos pés que trazes frios para a cama,
os toques são ligeiros de pardal.
Encosta o gelo leve a quem te ama,
qu’inda bem que tudo ora é conjugal.

A meus que amo fora de mulher,
o amor não confundas, que o mesmo é:
um querer ter, e tê-lo, e nele crer
e sempre ter sido como hoj’ ele, a nosso pé,

diz que sim, que teu Pai é vivo, q’ o laranjal
é na Rua das Pedras (a da Bruxa), Guia, Portugal.

III

Ramura de lílios trouxera coisa pouca
marujo que abrevindera doutrasbandas.
A não merecia Maria, de tanlouca;
merecia, e as teve, sesmaritimandas.

Luz dazeite vingara vinagrencómio.
Corria carrodebois que mui gania.
Atão mazist’é ora manicómio?
Não, qu’isto é duro ouro-ferraria.

Diz-me: Vens cedo tu p’ra casa tua?
Dizes-me: Eu vou e vou vestida e toda nua!
Ó céus abreviados de meus torrões não costumados!

Ó véus transdecerrados de meus crus antepassados!
Diz-me: Vens cedo tu p’ra casa tua?
Dizes-me: Eu vou e vou vesporti e toda tua!

SE TE NAMORAREM AO CABO DO TEU DIA, TU OUVE

A pessoa que chega ao fim do dia de trabalho é uma pessoa que se fez boa.
Não há que dizer dela a não ser que chegou, que (se) partiu mas chegou.
Se chegou, foi suficiente: e isso é coisa boa, a mais boa
que há a dizer de uma pessoa.

TENHO SONHADO MAIS

Tenho sonhado mais que de costume.
Percebo na incongruência que toda a gente morre mas eu também.
O amargo do sonho é isso não me fazer espécie alguma.
O amargo de acordar é ainda ser espécie.

Quando ao fim de cada dia falamos do que de jantar,
eu sei que não estou sozinho, vivi já num quarto-renda,
eu não ando aqui só no pátio-das-cantigas-do-chapéus-há-muitos,
eu às vezes digo arroz-de-feijão, eu às vezes digo ruy-belo.

Acordo do corpo, os pés mexem-se como lulas autónomas.
A boca estala babas acumuladas.
Eu às vezes pareço sinceramente um velho sinceramente.
Outras vezes acordo, dou pela roupa no sítio, não se passa nada.

O borrão da quinta, o borrão da tinta, a ínsua de larangineiras:
terras de Pais, idos-idos-não-olvidos-e-isto-por-uma-ou-duas-
-gerações-inteiras. Tinteiras.

Tenho sonhado mais.
Olha,

esta noite

Canzoada Assaltante