O amanhã de Hegel a
partir de uma cabeleireira
Costuma vir aqui à Rita uma cabeleireira muito bonita a
que os insensíveis podem chamar gorda mas eu não. O que ela é, é de uma pujança
sumarenta. Discretamente a aprecio, sobretudo quando bebo a conta, que é quando
a mente se me evade de própria vontade à grave lei da gravidade, parecendo então
flutuar na superfície lunar. De abundante bunda andante ela é, deveras e de
facto. Mas – aquele rosto fotografa-se a si mesmo, de tão clara gravura o mesmo
é de e em si. Os dentes não são menos do que perfeitos marfins rendilhados. Os
lábios valem ambos por um bífido tratado da arte de recortar. As pestanas
pulsam sedas lubrificadas a óleo de noz doce. As orelhas parecem poucas, por só
duas e de tão porcelana. E os olhos escurecem discrições do mais virginal
pudor, atenta a qualidade pluvial desses charcos.
A sul do rosto, as mãos, assim papudinhas, pedem
brinquedos masculinos, que eu aliás tenho. O bom seio aponta-a ao futuro, que
risonho largamente a merece toda. De diáfanos tules revestida, odalisca-se sem
esforço à fantasia do retratista acidental em que me converto cada vez que a
marro, perdão, narro. Sucedeu ontem com ela uma coisa muito engraçada.
A coisa com ela muito engraçada ontem sucedida foi que,
folheando ela o jornal em distraída solidão (nunca, felizmente, a vi
acompanhada), se dela soltou a seguinte exclamação:
– Ó caraças do meu
Sporting!
Foi inevitável: nós, homens de esplanada-galeria,
desatámo-nos a rir como perdizes benfiquistas ante a falência do leonino
perdigueiro. Ela ficou a modos que embaçada. Isto, primeiro. Mas depois também
alinhou na perdigotagem hílare. Aquilo passou.
Esta manhã, ela voltou. Vinha mais bonita e mais atrevida.
Até nos bom-diou, a sacanita. O colo vinha-lhe enfunado de uma gaze roxa à
Senhor-dos-Passos que não só lhe ficava a matar como nos matava, a nós homens
de galeria-Rita. O amplo seio, de uma turgidez fasta e nefasta, inchava de
seiva respiratória e esplendente de carnação a mais moranga. Levíssimas
sandálias ourejavam dela os pés muito brancos, muito alados, muito capazes da
mais etérea volatilidade. O todo da figura grassou entre nós, través e a nós
cada um, o aplauso cardíaco-eufórico da arritmia. Parecia até que a cor houvera
mudado à manhã do dia. Ofertara-lhe eu sem desperdício a fortuna do borboto em
cotão do meu bolso. Só por ela deixara eu, avelhentados os dentes, o serrilhar
onicófago. Sim, juro. Mas ela nem me conhece nem me reconheceria d’ébano entre
homens claros.
Ela virá amanhã, confirmando na vi(n)da a tese tripartida
de Hegel: ontem/tese/hoje/antítese/amanhã/síntese. Na mesma será bonita por
mais um dia. E nem sabe que o seu cabeleireiro aparou cabelo a uma crónica, o
que só em beleza a prestigia.
E amanhã será, por síntese, ó Dalila!, para este insensato
Sansão, um outro dia.
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