Aguarela portuguesa
com brinquedo verde
O vento faz-se sentir, altera (redispõe) a paleta dos
elementos mundiais, entre os quais ele mesmo.
Uma senhora com duas crianças, uma já andarilha e falante
(Mariana), outra que é Eduardo e que de carrinho-rodas é trazido e levado. O Eduardo
só crocita, por enquanto. Passa-se isto numa praça a que a manhã estendeu a
todo o diâmetro o linho do sol. O Eduardo atira fora um pato de plástico verde.
Sente-se manietado, quer livrar-se da tira de lona que lhe cinge diagonal o
peito brevíssimo. A Mariana lambe em delícia o creme de um pastel maciço que o
açúcar polvilha de átomos de luz branca – como acontece ao firmamento nocturno
cada Verão, quando a suprema tela, isenta de nuvens, logra acesso óptico à
poalha diamantina em miríade esterlina. Em poucas manhãs, será Ano Novo. A mãe
não é já criança, não todavia velha já. É uma Isabel como tantas isabéis de por
aí: um vaso de que brotam flores pueris.
Em o entretanto de tudo isto, o vento vai mudando as cores
à aguarela: encrespa-se de castanho o verde rio, azulam-se as árvores de
sentinela ao céu agora âmbar, trotam, muito gendarmes, os cachorros vadios ora
tocados a cor-de-rosa e a amarelo-torrado. Quase álgido, o ar movediço torna a
respiração um maquinismo benigno. Não é difícil nem precário entrever as
longínquas praias desertas: estendais de ouro comum ao giz volante das aves
marinhas, às eróticas dunas configuradoras de ancas feminis e às crespas fragas
paredando o que é terra em desfeita de mar.
Mais perto do lápis, Isabel, Mariana e Eduardo terminam
sem estrépito a vinda à pastelaria. Saem os três da presente dramaturgia. É
quase meio-dia.
A uma mesa de tampo azul-ferrete, um rapaz de quase
cinquenta anos urde sonetos difíceis e ilegíveis. Tem no bornal publicações amarelecidas
de outros sonetos de outros rapazes a outros ferretes azulíneos postos. Este
não comeu bolo. O pastel que lambe – é o da Língua Portuguesa, essa viva
confeitaria de tantos açúcares. Ao primeiro dos dois tercetos (onde se começa
dando a litotes poente da composição quatordécima, como é sabido), distrai-o a
volumetria lípida de uma matrona brasileira que faz do próprio telemóvel um
altifalante em tejadilho de carrinha de circo. Adiposa como uma bochecha
esmurrada, não parece sentir o envolvente-vento-que-vem-vindo nem pertencer ao
mesmo mundo circunspecto do Eduardo, cuja ex-mesa aliás ocupa. Atabafou-se a
tropical willendorf de flanelas moles como véus de lamas sobrepostas. É de
olhos bonitos e boca feia, orbes mamários de trémula gelatina em bandeja de
contralto-castafiore, mãos aduncas de quem sofre não o pão mas o ganhá-lo.
Dez minutos mal contados pós-meio-dia, ergue-se o
sonetista. Lesto como se não suporia, acocora-se à base do pilar da galeria.
Cata do chão certo pato verde que dele foi há meio século quase, quando a
Isabel dele era viva e as pastelarias eram mais raras, mas nem por isso menos
as aguarelas que o muito crocitar entretanto lhe/vos veio (a)ventar.
4 comentários:
E de palavras pintaste uma tela perfeita!
Lindíssimo, o texto... Obrigada!
Obrigado por leres.
Apesar do meu daltonismo achei a aguarela perfeita.
(Já hoje "disse" à Malena que ela escreve bem e só não te digo o mesmo porque não gosto de me repetir.)
:)
Pronto. Fica dito a preto-e-branco, Rui Pascoal.
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