Vendo perfume
As minhas infância e adolescência decorreram no lance norte da mui formosa e mui histórica cidade de Coimbra. Chamava-se a área Zona Industrial da Pedrulha, que hoje está quase por completo obliterada. Rúem de pé as fábricas: como árvores de que despediram os pássaros operários.
Recordo: ao entardenoitecer, o bairro-aldeia respirava o perfume doce das bolachas da Triunfo. Ser criança respiratória desse incenso de açúcar equivalia a uma espécie de levitação. Paro agora de recordar e vejo as ruínas da Triunfo (bolachas-massas-rações), as ruínas da Fábrica de Cervejas de Coimbra (Topázio, Ónix), as ruínas da Estaco (louças sanitárias), as ruínas da Gomes Porto (fundições), o descampado onde era o Matadouro Municipal, o esqueleto da Fiaco (fiações, têxteis), o fantasma da Atlântida (imprensa, editora) e ainda esses dois espectros fátuos da infância e da adolescência que fui e não voltarei a ser.
Continuo a olhar e a ver: Portugal é hoje uma Pedrulha aumentada: por toda a parte encerram fábricas e serviços, escolas e maternidades, freguesias e sonhos. É um país proibido pela ganância histriónica de meia-dúzia de palhaços do circo político-partidário que ressuscita incessantemente da estrumeira rotativista à la século XIX, numa espécie de páscoa vitalícia borrada de carnaval perpétuo.
Meia-dúzia de cevados que chafurdam na esterqueira infligida aos outros, aos que querem trabalhar e não têm onde, aos que querem um tribunal e lho fecham, aos que querem um centro de saúde e lho aloquetam, aos que querem uma sopa e lhes dão palha. Vale-me este mínimo: a liberdade de dizer a essa canalhada que, num concurso de matar porcos à chapada, eles seriam os primeiros a fugir das chapadas.
Não receio o caciquismo endémico desta ou daquela autarquia. Eu só receio que o futuro se pareça com o fim da minha adolescência, lá onde o entardenoitecer deixou de ser perfumado pela bolacha da esperança justa e lavada e pedrulhense e portuguesa.
4 comentários:
apeteceu-me passar um bom bocado a ler-te... gosto muito, daniel * um beijinho *
Obrigado, amiga. Bem-vinda.
Não entrei por acaso mas quase...foi pela curiosidade suscitada por um comentário dum amigo.
Gostei!
É irónico dizer-se: gostei! - tratando-se do assunto aqui exposto.
Rectifico: gostei de ler.
Voltarei. Vou anotar nos meus Favoritos.
Beijinhos
Sempre bem-vinda, Mariazita. Obrigado.
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