CELEBRO A NOSSA SAÚDE FUTURA / QUERO MUITO EMBALSAMAR AS NOSSAS VIDAS / MALAPARTE NA FLORESTA DE RÀIKKOLA / MEMÓRIAS PARA O FUTURO / O MESMO FIO DENTAL PODE
I. CELEBRO A NOSSA SAÚDE FUTURA
Pombal (Café Ripa e Cervejália), tarde de 2 de Abril de 2010
Celebro a nossa saúde futura e o coração de toda a gente nas nossas mãos leitoras. Conheço finalmente algumas coisas, os perfis ceando sós cozido-à-portuguesa em tabernas frias. Sou muito mais esperto do que é preciso, pasto com os burros a palha rala da poesia. Aquele homem tem o pescoço cheio de cabelo vivo na pele muito vermelha de galo. As nossas mulheres alimentam de vasos a floresta setentrional das nossas casas ao sul. As nossas mulheres tornam-se mais e mais e mais ainda os retratos das nossas mães. Uma coisa é a gente andar aqui para não enganar ninguém mas alguém, até por pena. Quando revisito a minha terra primeva, sou outra vez o meu Pai à procura dos filhos, e eles nada. As coisas bonitas têm uma força que exulta, uma luz toda de dentro para fora, uma celebração. Custa-me pensar nas pessoas que se parquepublicam aos domingos, à beira do rio para nada. Outras vezes nada me custa, excepto viver. Vale-me que as vossas mãos (e as vossas mães) me lêem os vasos, as artérias, as matérias, o pêlo do pescoço.
Tempo das dimensões suavizadas pela cabeça, seu sistema electroneuronal, sua vida de bicho urbano. Nossa vida de cabeça pela rua sendo fruto preto.
II. QUERO MUITO EMBALSAMAR AS NOSSAS VIDAS
Pombal (Casas de Pasto Solmar e A Social), tarde de 3 de Abril de 2010
Quero muito embalsamar as nossas vidas tal que memória de ex-corpo delas reste em paz. Atum de marca Pescador, porto Alegre, brandy Croft, verde Tadeu, moscatel Mural. Um relógio de pêndulo retine o tempo de madeira. Sob um céu caixa-de-sapatos, há pouco, o vento lateral e a minha felicidade partilharam bandeiras. Sobretudo ao alto corredor da ponte sobre o Arunca, como sobre o Pavia antigamente, lá-vai-lá-vai. É muito bonito um rio chamar-se Homem. Trouxe pão endurecido e restos de frango, encontrei pombas e pardais e gatos e cães republicanos a quem tratei regiamente. Depois, leitura e pensamento de dois afixos funerários: o senhor Arlindo, de 90 anos, e a senhora Maria do Rosário, aos 88, deixaram de ser, residentes que foram. Também há muito deixaram de ser o Restaurante Verde Gaio e o Café Pérola. As pessoas deixam muito de ser – mas de uma vez. Os sítios reconfiguram-se, aguentam-se quanto podem. Um corpo feminino extraordinário passa em parada singular: beleza forte, beleza feliz, segura de si-mesma-ela-própria, mocidade e fulgor da carne irradiante. Quero muito embalsamar – sem tolas necrofilias porém – as nossas vidas. Pombal, um sábado. Voleibol na televisão. Recordo Castêlo da Maia. Recordo Baltimore. Agora não já, mas já fui a S. Bernardino e ao Baleal. Que luzeiros são estes na estival noite interior? Que gelos agulhados siderais dentro? Se eu morrer, que farei de tanto amor? Não é que os pense, mas (escre)vejo-os em recorrência: pátios poeirentos de traseiras de prédios, onde a nespereira enferruja de açúcar e ex-crianças movendo pneus a compasso de paus. Educam-nos (e amam-nos) para lebres, acabamos láparos. Mas tenho ainda alguma coisa que fazer. Tenho alguns sábados coleccionáveis em fascículos. Visão rápida na rua d’A Social: duas flores amarelas muito altas, uma delas de óculos. Macia sintaxe, morfologia escorreita, prazer de café-com-livros: e alguma solidão, vá lá, que não ando aqui para enganar ninguém. Este é o nosso sangue de roupa d’alma vestido. Estas são as nossas ruas – ou pelo menos as ruas por onde nós. A tardinha torna-nos finisseculares a todos. Calma. Calma, não se passa nada. Há pessoas fazendo filhos nuas apesar de ou contra outras a este instante mesmo. Sim, os Chineses vêm aí. É a licorosa, por assim dizer, força dos quanto vão adormecer no hipofrio.
III. MALAPARTE NA FLORESTA DE RÀIKKOLA
Pombal, tarde de 1 de Abril de 2010
Kurt/Curzio diz coisas da margem do Ládoga, na floresta de Ràikkola. Também refere a floresta de Inari e a foz do Juutuajonki. Renas, gatos, lobos, cães e pessoas velhas convivem com a ideia glacial: neve e morte, o branco e o preto das dimensões do olhar. A Lapónia, o Tirol e a Baviera não excluem a Península dos Pescadores. Estradas de Ivalo e de Petsamo, adidas a paragem em Sodankylä e a frente beligerante em Alakurti e Salla.
Depois, em momentos que por regra são excepção, as pessoas vingam estar vivas, movendo-se por atavismo, espectrando as montras vivas de suas, delas, condição moritura. São movimentos onomásticos e anónimos, são urbanizações corredoras em marcha-lenta. Cada uma pessoa saberá ou não de si e/ou de outra nota da escala: lá por dó, cá por só. Cada duas, pois não sei. Rumores verdes inaudíveis à espécie devinda desumana: o musgo, a urze, a giesta, o alegado parasitismo da acácia. Tradição de metros: gongorismo e www.ismo. A pressão dos rumores é acontecimento em si mesma: assim se amarela o branco das paredes. Mas depois, tudo depois, se ainda.
IV. MEMÓRIAS PARA O FUTURO
Pombal, fim da manhã de 31 de Março de 2010
(leitura da edição do dia do Correio da Manhã)
Em Rio de Mouro, há uma avenida chamada Sidónio Pais. No Linhó (Sintra), há um supermercado com Lda. no fim chamado Abel da Silva Reis. O Rio Sado é muito dado à apanha ilegal de meixão. Roubaram comida (arroz e massa) de uma escola das cercanias de Coimbra. Há um barco espanhol chamado Playa de Arbeyal. Nantes e Brest são em França. Randam é Recardães. O Mosteiro de Santa Maria é em Alcobaça. Serra do Bouro e Caldas da Rainha têm muito a ver uma com as outras. Há uma travessa em Lisboa que pertence a Santa Quitéria. Búlgaros, cabo-verdianos & romenos transitam com alguma facilidade pela capital da Nação. Toda a gente sabe, em princípio e à partida, que o Hospital de São João se demora no Porto. Os renaults Mégane e Laguna são desiguais. A Praça de Espanha é cá, não lá. O Bairro de São Pedro, em Elvas, costuma presenciar agressões de ciganos a bombeiros, ainda não se sabe muito bem porquê, ay. A barragem do Fridão é no Rio Tâmega. A Capela da Senhora da Ajuda e de São Tiago é em Aveiro. Tua e Pocinho integram a Linha do Douro. João Cravinho condena a corrupção íncola: é excepção. Nomes de algumas regiões da bela Itália, também temos: Ligúria, Emilia Romagna, Umbria, Basilicata, Toscana, Las Marcas e Apúlia. Mais: Lombardia e Veneto, Lazio e Campania, Calábria e Piemonte. Em Santa Clara de Cuba, há um hospital chamado Arnalfo Milian Castro. No oeste da Índia, mais precisamente no estado de Gujarat, parece haver uma empresa de navios mercantes chamada Kutch Vahanvati cujo dono também tem nome, que é Kasam Ali.
V. O MESMO FIO DENTAL PODE
Louriçal, manhã de 29 de Março de 2010
O mesmo fio mental pode atar os nomes e as obras de Beethoven e Herculano. Aconteceu-me esta manhã, no regresso do Grou, onde fui a conhecer uma serralharia industrial. O meu carro, a minha fisiologia e eu sulcávamos a manhã dúbia: céu de pasta de chumbo ocasionalmente tracejado a dardos solares, massa de pinhais invocando a espécie, casarios sem viv’alma à vista, laranjeiras currais com porcos, rádio acesa em Beethoven, daí que Herculano. Tive de parar no Café Figueiredo para satisfazer uma urgência bexigosa, deixei-me estar um bocadito a ler as últimas da padralhada pedófila nacional e estrangeira: um bolor de sacristia, uma tesão de catequese. Fruí a música de Ludwig, recordei as voltas tão portuguesas de Alexandre entre os anos 1853-54. Ontem, com o João Artur, toques de conversação afloraram o também grande Le Carré, além das ilhas do Oceano Pacífico (o zamericanos contra os japas na II Guerra Mundial). E hoje? Pasta de chumbo e massa de pinhais, jogo de cores-palavras, revoadas de luz e contraluz, música sempre muita e perturbadora sempre. Rapariga couraçada de fiambres coça uma reentrância nalgal em perfeita distracção e plena Praça D. Luís de Menezes ao Louriçal. Por mim, posso o que faço: registo o verde muito vivo da hera que trepa o antigo armazém do arroz, a fivela em casquinha que segura a bacia do pedreiro Damião, as letras verdes do Talho Argentino, a vivenda nomeada Aux Quatre Vents ali em cima no outeiro, o sangue afogueado em derme do rosto desta mulher de grenha ruça, os caçadores líricos de lepidópteros e de mulheres mais secretas ainda que de costume. Uma espécie de paz fulgura – e é o Tempo. Dou-me muito a pastas de pinhal e a massas de céu. Romances, rimanços e romanzeiras. Ribeiras, recatos e regatas. Beleza não pusilânime da nossa Língua. Ludwig e Alexandre. Esta segunda-feira, ainda, os viúvos do casario aferventam caldos sós. Conheço alguns na região. Eles vivem. Fervem postas de peixe-vermelho. Tomam clarete sem ser por festa. Nas salas breves e viúvas, sobem retratos esfumados, a cada um seu patrimatrimónio. São as boleskine-houses possíveis deles: Grou, Foz, Ratos, Foitos, Serafim, Vale das Moitas, Outeiro Martinho, Vieirinhos, Carriço, Matas, Torneira, Cochinchina. Uma certa e indeterminada inocência fluindo na hora: fragrância fria do ar corrente, mulher pequena e vermelha de botas de borracha pretas. Embalagens de bisc8s. Xadrez calceteiro dos passeios. Queres que te seja sincero? – Alguma solidão. Carrinha Ford azul-eléctrica operada por uma mulher gorda e atraente, cheia de viço e seivas lípidas, decote cartográfico com refegos digitalizáveis à unha. Rapaz barbado com camisola-de-treino de um azul carregado como nuvem azul em céu branco. Ouvi dizer que se dá, ele, um bocadito à infusão de ervas fumadas, o que o não impede de portar graciosa fraseação e modo gentil no cumprimentar. Entra o lampantanas do Inácio, desatando a chover grosso às 12h44m. O periquito Tito verdeja pelo chão à cata de migalhas cereais. O patrão Lucídio gosta de trocadilhar “chemisa” por “camisa”. Baltimore de Poe e Louriçal de nós: mesmo fio denmental. Cápsula plástica de vinho abafado caída pelas mossas do chão. Encerramento de centros de atendimento permanente nas vilórias: “vitórias” outras tantas da Demóniocracia destes filhos-da-puta todos. Maravilha luminotécnica de metonímia, de conventos à chuva (deles a tristeza histórica, grave) como agora o convento daqui sob a chuva daqui, de camiões carregados de cobre para Manuel Godinho. Pedofilia de astral católico: meninos pios e sacerdotes luminotécnicos. Uns cornos de plástico aferrolhados à testa dominante. Falar com um português: Pedro Santos de seu nome: a Junta, as obras pequenas (valetas, que, enfim, a Junta de Estradas, a “Cambra” etc. não limpam). A tarde grisa, tipo Leiria, mas Louriçal ainda. Ainda e sempre. Fixações de Beethoven, ou mera literatura pequeno-civil, ou apenas ter lido (muito!) Herculano.