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Pombal, fim da tarde de 15 de Junho de 2009
Pelo começo do fim da tarde, o ar embrulha-se de electricidade que chega aos nervos.
O mundo aparece como suspenso de si mesmo. A energia é quase uma força malévola. Estamos como para chover. A tensão local é ctónica – ansiedade de refresco zéfiro, de uma massa fria que temperasse. Acontece um pouco de água vertical, finalmente.
Anamnese. Placebo. Homeopatia. Convenção. Código.
Antes do trabalho da noite, sessão de leitura do jornal da véspera. Café quase vazio, entre as seis e meia e as sete da tarde. Advesperascit, como aprendido em Phyllis Bentley. Agressões a polícias. Esfaqueamentos na linha de Cascais. Irrelevâncias estatísticas. Papel.
Depois, na noit’agora. Uma sala higienizada, iluminada a branco. Mobília fórmica. Instrumentos, máquinas, apetrechos, acessórios. Fluxo de informação. Planos super, justa e infrapostos: palavras alheias filtradas pelo manancial íntimo, onde a fusão nuclear se dá linguagem a ponto de ser-lhe-se siamesa. Trabalhos sinónimos da mesma hora que os subjaz. Operações ubíquas: as vidas por todo o lado. Nesta sala, oito pessoas. Face aritmética, contabilidade humana, rol e ror. Entre faces, fluxo de comunicações, abordagens mais ou menos providas de técnica & manha & competência & conhecimento.
Democracia das fisiologias: ciclo instrumental das vivências, nutrição, assimilação, evacuação. (Por exemplo: um dos meus ofícios é respirar – trata-se de uma auto-remuneração, a prazo: como todos os ofícios e como todos os salários, a prazo.)
Como frases de música, manam na tarde que acaba as fluorescentes nomenclaturas: Joaquim Agostinho, que vi passar (isolado, claro, primeiro na fuga, claro, de camisola amarela, claro) rumo à Figueira da Foz pelo túnel da Estação Velha; Ibraim, Costeado, Romeu, Abreu e Jesus (antes dele na baliza, Rodrigues), todos do Vitória Sport Clube; Carlos Cano e Joan Manuel Serrat, entre cidades com mar e cidades sem rio; Gaudí, Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, homens proprietários de lápis e de linhas; manteiga Primor, gelados Águia, pastilhas May e Pirata, Bic Laranja e Bic Cristal; gasosas e laranjadas Buçaco, Serranita, Laranjina C, Fruto Real, Rical e Superfresco; cervejas Marina, Cuca, Clock e Cergal; aquele desenho de Steinberg; Tony Weare, insuperável na informação infante; Cristovam Pavia, J. H. Santos Barros, Oliveira Marques, Joel Serrão, poetas e historiadores; isto tudo ao mesmo tempo e no Tempo Mesmo.
Um rio passa e é, em banha de prata, que o toma a seda lunar. A hora filtra árvores em as margens – e o sono dos animais metaboliza até o açúcar dos frutos. Somos todos por cada um. Estamos a atenção interior. É a memória nascitura: em pragmatíssima magia. Cada pessoa. A cada pessoa, seu bosque e seu rio. Fábrica de páginas, viver través. Uma espécie de enternecimento ante o cadastro postal, os despojos dos nomes, as sombras transparentes em escritura, fotografias das crianças, objectos (chinelas, púcaros, enxadas, lenços) que os velhos deixaram pela casa, o rio lustral de argênteo luar entre tintas-da-China: bosque, animais dormindo, máquinas quietas, música cromática, fortuna do íntimo cinema.
Os senhores Nunes, Paula, Pimentel, Carvalho, Ribeiro, Catarino, Gonçalves, Alcides, Abílio, Rogério, Ernesto, Sério, Barbosa, Morais, Pinto, Botelho, Daniel, Maricato, Manuel, Quintas, Augusto, Pais, Sacramento, Amaro, Elói, Borges: eram da minha rua, já lá não moram senão de nome, são do bosque, adormeceram, o rio é e passa. As senhoras Rosário, Ana, Edite, Odete, Armanda, Maria do Sol, a Mãe do Pedro Amaro, a Mãe do Victor Doutor, Teresa – eram, adormeceram, eram senhoras que o luar tomou em casquinha, falando escuramente as águas (tamisadas, matizadas).
Infâncias como nuvens: massas esparsas, esgarçadas, luminotécnicas, altas. Distraídos gestos vivos repetindo (prolongando, pois) os mortos. Atavismo, instrução, verões comuns no progressivo inverno pessoal. Gambiarras eidéticas, fundamentos portáteis de tanto menino envelhecendo, de tanta velha que menina foi.
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