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1 de Junho de 2009
Junho começa com um funeral. Morreu o meu amigo Alves Mateus. A cerimónia final está marcada para o sol das quatro e meia da tarde, na Igreja Matriz de Pombal.
E no entanto a manhã é bonita. Parece um país a estrear, um território neófito. Estamos todos a acontecer, os vivos. Às sete horas, foi bom circular quase nu pela casa calma. Também foi bom sair à frescura inicial de Junho. A realidade abre-se como uma larga toalha de mesa larga. As mulheres só não andam descalças porque parece mal, diz-se. A cor parece açúcar nas coisas: árvores como clarões verdes, o azul é de longe-mar, as blusas femininas cègarregam coruscações sonoras, os pés brancos estalidam virações de ribeiro, os cães públicos são muito decentes em seus casacos castanhos e é branda a violência escarlate das esplanadas e dos reclamos. Troco algumas sentenças meteorológicas com o Jorge do Santa Luzia: que está mais fresco hoje, em relação à brasa de ontem. Verdade. Levíssima onda zéfira torna benfazeja a exposição da pele. Só tenho a lamentar que um dente avariado me povoe a boca de um latejar mesquinho. Tirando isso, dou-me bem a irrelevâncias e a metafísicas.
Tal como me acontecem muito as manhãs, assim me florescem dentro certas imagens salvadas da torrente ledora. Digo: que certas intermitências imago-verbais se me impõem sem pré-aviso no fluxo cursivo da actividade mental. Trata-se de um cinema intermitente, este fenómeno – que, aliás, suponho afim de todos os leitores de todos os (mesmos e outros) livros:
um romance policial de 1968, “Tænk På Et Tal”;
um senhor dinamarquês chamado Anders Bodelsen;
um prospecto da Portugália Editora dos anos 60 do século passado (Vergílio Ferreira, José Gomes também Ferreira e Guilherme Castilho fasciculador da Correspondência de António Nobre);
a cidade de Paris à chuva cheia de citroëns e de solitários;
Lowry no México;
Osvaldo El Gordo Soriano no interior argentino;
a cegante Luz de Agosto do senhor Faulkner;
a Leiria do Padre Amaro;
a despoliciada Évora do jovem Eça em 1867;
as tintas marinhas e cerúleas de Brandão;
os orientes de Pessanha e Wenceslau;
a Holanda de Freeling, a Holanda de Ramalho, a Holanda de Espinosa e a Holanda de Vasco da Gama Fernandes;
a Barcelona de Rodoreda, a Barcelona de Montalbán e a Barcelona de Mendoza;
a Coimbra de Trindade Coelho e a Coimbra de Adelino Veiga;
Braga e Penacova conforme o transeunte Antero de Figueiredo;
o nascimento cubano de Calvino e o nascimento belga de Cortázar;
a Évora de Vergílio;
a Alhandra de Soeiro;
a América de Miguéis e a América de Sena;
a fusão regiana Portalegre - Vila do Conde,
Setúbal e Arrábida de Osório;
os milhares de lápis de Leal da Câmara;
a Viena do Bernhard;
Ingrid Undset em fuga da Noruega;
o Senhor da Serra;
a atenção gandaresa de Carlos de Oliveira;
o Largo de Manuel da Fonseca;
a solidão portuária de Cavafy;
o Maine de Crayencour dita Yourcenar ;
a diferença chamada Fernando Sabino ;
da Estrela à Covilhã com o Horácio de Ferreira de Castro
– e
essa estranha irmandade, no coração inquilino da cabeça, de Augusto Gil, Sebastião da Gama, Cesário Verde e António Nobre:
fiéis, recorrentes, coruscantes intermitências.
1 de Junho de 2009
Junho começa com um funeral. Morreu o meu amigo Alves Mateus. A cerimónia final está marcada para o sol das quatro e meia da tarde, na Igreja Matriz de Pombal.
E no entanto a manhã é bonita. Parece um país a estrear, um território neófito. Estamos todos a acontecer, os vivos. Às sete horas, foi bom circular quase nu pela casa calma. Também foi bom sair à frescura inicial de Junho. A realidade abre-se como uma larga toalha de mesa larga. As mulheres só não andam descalças porque parece mal, diz-se. A cor parece açúcar nas coisas: árvores como clarões verdes, o azul é de longe-mar, as blusas femininas cègarregam coruscações sonoras, os pés brancos estalidam virações de ribeiro, os cães públicos são muito decentes em seus casacos castanhos e é branda a violência escarlate das esplanadas e dos reclamos. Troco algumas sentenças meteorológicas com o Jorge do Santa Luzia: que está mais fresco hoje, em relação à brasa de ontem. Verdade. Levíssima onda zéfira torna benfazeja a exposição da pele. Só tenho a lamentar que um dente avariado me povoe a boca de um latejar mesquinho. Tirando isso, dou-me bem a irrelevâncias e a metafísicas.
Tal como me acontecem muito as manhãs, assim me florescem dentro certas imagens salvadas da torrente ledora. Digo: que certas intermitências imago-verbais se me impõem sem pré-aviso no fluxo cursivo da actividade mental. Trata-se de um cinema intermitente, este fenómeno – que, aliás, suponho afim de todos os leitores de todos os (mesmos e outros) livros:
um romance policial de 1968, “Tænk På Et Tal”;
um senhor dinamarquês chamado Anders Bodelsen;
um prospecto da Portugália Editora dos anos 60 do século passado (Vergílio Ferreira, José Gomes também Ferreira e Guilherme Castilho fasciculador da Correspondência de António Nobre);
a cidade de Paris à chuva cheia de citroëns e de solitários;
Lowry no México;
Osvaldo El Gordo Soriano no interior argentino;
a cegante Luz de Agosto do senhor Faulkner;
a Leiria do Padre Amaro;
a despoliciada Évora do jovem Eça em 1867;
as tintas marinhas e cerúleas de Brandão;
os orientes de Pessanha e Wenceslau;
a Holanda de Freeling, a Holanda de Ramalho, a Holanda de Espinosa e a Holanda de Vasco da Gama Fernandes;
a Barcelona de Rodoreda, a Barcelona de Montalbán e a Barcelona de Mendoza;
a Coimbra de Trindade Coelho e a Coimbra de Adelino Veiga;
Braga e Penacova conforme o transeunte Antero de Figueiredo;
o nascimento cubano de Calvino e o nascimento belga de Cortázar;
a Évora de Vergílio;
a Alhandra de Soeiro;
a América de Miguéis e a América de Sena;
a fusão regiana Portalegre - Vila do Conde,
Setúbal e Arrábida de Osório;
os milhares de lápis de Leal da Câmara;
a Viena do Bernhard;
Ingrid Undset em fuga da Noruega;
o Senhor da Serra;
a atenção gandaresa de Carlos de Oliveira;
o Largo de Manuel da Fonseca;
a solidão portuária de Cavafy;
o Maine de Crayencour dita Yourcenar ;
a diferença chamada Fernando Sabino ;
da Estrela à Covilhã com o Horácio de Ferreira de Castro
– e
essa estranha irmandade, no coração inquilino da cabeça, de Augusto Gil, Sebastião da Gama, Cesário Verde e António Nobre:
fiéis, recorrentes, coruscantes intermitências.
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