Entregues ao(s) bicho(s)
O lobo agora não faz de lobo, faz de cordeiro. Mas só até às eleições. Nem por isso, porém, deixamos de estar, na mesma, entregues aos bichos, a saber: o asno que nos leve ao burro carregado de livros, o porco com gripe, a vaca louca por sopas de cavalo cansado, a pulga atrás da orelha, o cão com dono que não ladra mas morde a cadela apressada, o gato frio por lebre escaldada, o rato de automóveis, os bois pelos nomes atrás do carro, o touro pelos cornos, a ave de arribação, o pássaro na mão e as gaivotas em terra, o macaco no seu galho de imitação, o leão da Estrela, o tigre da Malásia, o porquinho da Índia, o salto de pardal, o camaleão vital, a pescada de Janeiro e o bacorinho de S. Martinho, a marmota de rabo na boca por onde morre o filho de peixe que não sabe nadar, a sardinha da matança que puxa a brasa à galinha da vizinha, o carapau de corrida, a joaninha que voa voa (e o lobo a fazer de cordeiro em Lisboa), o caracol de pauzinhos ao sol, o menino e o borracho, a formiga que fuma cigarras, a bota da perdigota, as moscas de apanhar vinagre, a ovelha local que não berra para não perder o bocado autárquico, os carneiros contados da insónia, o carneiro do patrão quando está com a mosca e a cabra-cega da mulher dele, a girafa de litro para esquecer o elefante da memória e o romance da raposa lido a mata-bicho pela manhã antes que se faça tarde e seja noite.
Não, o lobo por agora não faz de lobo. Faz de cordeiro cordeirinho, de mui manso mui mansinho. No Outono, todavia, o cair da folha reerguê-lo-no-á. Outra vez lobo. Tão mais feroz quão mais ferido.
E se não formos nós a pagar por ele, serão os nossos filhos, se não souberem nadar como o bacorinho do S. Martinho.
2 comentários:
Caro Daniel Abrunheiro,
Cá o Cidadão curtiu bué este artigo no seu "Rosário Breve", em "O Ribatejo" que é de leitura sagrada!
Invejo-lhe o espírito!
Brilhante. Um rosário.
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