01/06/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (2)

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26 de Maio de 2009

Porto, Abril de 1969” – é a data oficial da composição e da impressão de “A Palavra Fascinante”, obra de H. Silva Letra para a Editorial Inova. Compôs e imprimiu a Empresa Industrial Gráfica do Porto, Lda.
H. Silva Letra: pouco, quase nada, sei deste autor. Que nasceu em Vieira de Leiria no ano 1927. Que foi tradutor. Que escreve muito bem: “A Palavra Fascinante” é prosa poética de muito bom quilate:

Oitenta cidades tinham sido subitamente bombardeadas, pelo que parecia sem qualquer justificação, desaparecendo algumas por completo – todavia não estava lá ninguém –, sendo nelas destruída inclusivamente parte da própria substância da noite.
É certo que existe noite por todo o lado e que a falta aqui pode muito bem ser remediada com um pouco de noite vinda dali, se, quem possuir excedentes de noite, quiser oferecer um pouco da que tem em demasia
.”
(p.25)

Talvez o pouco que sei de H. Silva Letra seja perfeitamente suficiente. Tenho o livro, que é o que fica. Não pretendo aqui reatar o velho debate (debater com quem, aliás?) do biografismo como fonte gnósica hermenêutico-exegética – e demais palavrões ociosos que tais. Não. Leio “A Palavra Fascinante” – letra por letra, quarenta anos e um mês depois de dada a lume.

(E, a páginas 60, este perfume espinosiano, por assim dizer:

E se o corpo morre, a máquina de pensar pensamentos que é cada um também morre.”)

******

Irrita-me tanto bocejo. Fico de olhos embaciados, custa-me ler. Irrita-me este desconserto do corpo, que afinal deito cedo e cedo reergo. A i-razão de tanto bocejo, desconheço que coisa quer a boca escancarada golfando-se oxigénio à pressão, o estralejar do esqueleto, a distensão da máquina muscular, o sacana do tédio trepando-me aos ombros como um papagaio de pirata desempregado.

Escrevo para não morrer tanto – ou ainda: um pouco antes de amanhã. E para viver gramaticalmente, sujeitando até a ilusão a uma norma sempre esplendorosa: a ortografia dos corpos pessoais, a beleza ridícula da cidade, as pombas incontáveis medindo o chão com as patitas estelares, recenseamento e sufrágio de fantasmas muito vivos escorando as palavras possíveis, na manhã fresca. Escrevendo, poupo-me a viver tanto: acodem-me então (agora, ontem) planos e lances que enumero ainda e sempre e enquanto não entrar na morte com justiça e o mais elementar dever (ter vivido) cumprido. Enumero:

cabeça amarela de mulher cujo coração poliglota toma café;
voz pastosa do fumador de cigarrilhas licenciado em medicina;
cachalotes brancos dados à costa para dormir eternamente: carrinhas brancas estacionadas ao alto da avenida, prédio cor-de-salmão recortando o céu fundo, sobre um quintal de pereiras e latas redondas com glicínias amestradas;
o livro de H. Silva Letra (1927 - ?);
a chuva de outro-ano-outro-inverno no Largo 5 de Outubro, onde e quando a solitária tremoceira atendia advogados e ciclistas extraviados;
bocas engessadas de cigarros; belas árvores de braços abertos no ar: como Cristos vegetais;
uma camioneta verde em direcção à serra:
a mulher do campo com totó enredado a nylon;
a comodidade da indiferença, que sempre salvaguarda o utente;
o trabalho que isto dá;
a familiaridade do idioma convocando os animais idênticos;
o conforto absolutamente milionário de tanto livro;
a economia das formigas, as humanas e as outras;
as consultas no centro de saúde, o bar dos bombeiros, as pereiras de quintal, um policial dinamarquês de 1968 servindo-me de sedativo passaporte para a noite;
o poço do corpo na ínsua do ainda-tempo;
e versos como tangerinas rutilando a ouro a vencibilidade da manhã:

enumerei.

Violenta tempestade atinge Norte da França – garante o noticiário da tarde, costa do dia a que vão dando os despojos e os destroços do mundo. Crimes económicos fazem parte do rol, a que se juntam as últimas desportivas, o presidente francês e o do Sporting de Braga, a recessão sul-africana no primeiro trimestre do ano, as brincadeiras sobe-e-desce das bolsas, o senhor Oliveira e Costa no Parlamento com cinco pedras na mão contra Dias Loureiro et alii, dissolução presidencial do Parlamento no Níger, queda brutal de encomendas à indústria na Zona Euro, 122 kilogramas de cocaína enlatada nos Açores (menos uma hora nos Açores), um tal Vital, oito mortos pelo menos em incêndio num hospital turco, a temperatura é amena e o sol brilha com mansidão.

1 comentário:

xana disse...

“E se o corpo morre, a máquina de pensar pensamentos que é cada um também morre.”

Nem todos, alguns, tornam-se pelos seus actos (de qualquer espécie) imortais.

Dentro destes, ele há, ainda, aqueles com alma.

Canzoada Assaltante