para o Zé Oliveira
1
Quando era tão pequeno que o futuro me parecia a maior das coisas, gostava de encontrar nas estradas e nos montes uns homens que se curvavam para olhar por uns binóculos de tripé que eram – mas isso só muito mais tardagora o soube – de topografia. Eram senhores calados que andavam por caminhos e por montes sem serem pedintes. E eu quis logo ser um deles, mas não me lembrei de pedir isso a meu Pai.
2
Não me lembrei de pedir para ser topógrafo – e lixei-me. Ser pianista estava fora de causa: as duas mãos são necessárias, e eu tenho uma em constante amparo do coração desde que te vi passar na procissão do Senhor da Agonia. Ias vestida de azul, uma espada de prata mantilhava a hemorragia roxa do Senhor que tomou fel por nossa água, depois de tantos montes e tantos caminhos.
3
Também não fui nunca, até agora, contabilista. Contador, sim. Contabilista, não. Gostaria de me ter tornado contabilista. Os números todos ali certinhos. A lei percebida, a lápis primeiro, depois a tinta. E uma máquina de números com fita redonda de rolo, frrre-frrre, tudo ali certinho e uma vida toda ali certinha. Mas não. Sou contador.
4
Sou contador de árvores. Tornei-me contador de árvores quando adoeci para sempre. Da janela da enfermaria, subiam luas. Eu contava-as todo o dia: uma, duas, duas, uma. Eu aumentava-as: um cedro e um cipreste, outro cipreste, outro cedro. Quando me deram alta para viver alhures o restante , maravilhei-me com as árvores inumeráveis que me competia numerar. Era trabalho para toda a vida. E só com os dedos da mão esquerda, pois que a direita continua amparando o coração e a agonia.
5
Gosto muito de ouvi-las usar o vento para falar como o mar. A mesma coisa – quando o vento ergue nelas a garganta do lobo. O sol fá-las explodir de pássaros, a chuva rompe em aplausos perante elas. Até há uma série na televisão em que uma menina tem por confidente uma árvore: sim, sim, verdade!
6
No adro da igreja, a cameleira dá frutos de sangue em mesa de camilha. Passo lá as tardes de sol a respirar e a contar a camélia: uma vez muitas vezes. À noite, durmo planando sobre as lanças dos pinheiros, que manam do mar em que tornam a terra. E não posso esquecer quando fui gigante na plantação de eucaliptos: eles, a meus pés, como se eu fosse Deus. Ou, pelo menos, um homem muito grande.
7
A vida não quis que eu fosse um homem muito grande. Nem topógrafo, nem pianista. Aceito o que ela quis. Quis ela que eu fosse contador de árvores – e é o que sou: um contador de árvores. Nos incêndios de cada Verão, passo fome e frio. Quanto mais fogo, mais frio. Quanto mais frio, maior a agonia – atrás de cujo Senhor te vi passar, minha espada de prata.
8
Também nos sonhos conto árvores. Abre-se o mar de uma vez só, como um pano rápido de palco. Em cena, a calda eterna do oceano e, sobre ela, os barcos, cujos mastros são árvores inteiras e verdadeiras: barcos movidos a vento dando em laranjeiras, oliveiras, ulmeiros, tílias, pessegueiros, robles, limoeiros, pereiras. São árvores que nascem do fundo do mar, traspassam os barcos e sobem para as estrelas, que também conto para que nas mãos me nasçam os cravos roxos que te vi oferecer ao Senhor da Agonia.
9
Quando adoeci para contar árvores, estava já filmado o filme da minha vida: um menino descobridor de topógrafos que me pareciam fotógrafos-de-cavalinho-de-pau com a cabeça oculta num pano preto e um balde de líquido aos pés para que o cavalinho matasse esta sede de imagens. Sei que meu Pai me aprovaria o ofício. Ele fez o mesmo – contou árvores até morrer e até viver.
10
Agora, tenho de ir-me embora. Espero que haja árvores, lá para onde vou. De lá nascem todas, aliás. Umas para o ar, outras rumo ao níquel ardente da noz do mundo. Hei-de contar os bichos cegos que as trepam ao inverso. Hei-de contar as pedras que sonham ser cuspidas pelo fogo. Hei-de contar ao meu Pai, no reencontro, quantas árvores contei e quantas vezes – uma, duas, duas, uma.
Quando era tão pequeno que o futuro me parecia a maior das coisas, gostava de encontrar nas estradas e nos montes uns homens que se curvavam para olhar por uns binóculos de tripé que eram – mas isso só muito mais tardagora o soube – de topografia. Eram senhores calados que andavam por caminhos e por montes sem serem pedintes. E eu quis logo ser um deles, mas não me lembrei de pedir isso a meu Pai.
2
Não me lembrei de pedir para ser topógrafo – e lixei-me. Ser pianista estava fora de causa: as duas mãos são necessárias, e eu tenho uma em constante amparo do coração desde que te vi passar na procissão do Senhor da Agonia. Ias vestida de azul, uma espada de prata mantilhava a hemorragia roxa do Senhor que tomou fel por nossa água, depois de tantos montes e tantos caminhos.
3
Também não fui nunca, até agora, contabilista. Contador, sim. Contabilista, não. Gostaria de me ter tornado contabilista. Os números todos ali certinhos. A lei percebida, a lápis primeiro, depois a tinta. E uma máquina de números com fita redonda de rolo, frrre-frrre, tudo ali certinho e uma vida toda ali certinha. Mas não. Sou contador.
4
Sou contador de árvores. Tornei-me contador de árvores quando adoeci para sempre. Da janela da enfermaria, subiam luas. Eu contava-as todo o dia: uma, duas, duas, uma. Eu aumentava-as: um cedro e um cipreste, outro cipreste, outro cedro. Quando me deram alta para viver alhures o restante , maravilhei-me com as árvores inumeráveis que me competia numerar. Era trabalho para toda a vida. E só com os dedos da mão esquerda, pois que a direita continua amparando o coração e a agonia.
5
Gosto muito de ouvi-las usar o vento para falar como o mar. A mesma coisa – quando o vento ergue nelas a garganta do lobo. O sol fá-las explodir de pássaros, a chuva rompe em aplausos perante elas. Até há uma série na televisão em que uma menina tem por confidente uma árvore: sim, sim, verdade!
6
No adro da igreja, a cameleira dá frutos de sangue em mesa de camilha. Passo lá as tardes de sol a respirar e a contar a camélia: uma vez muitas vezes. À noite, durmo planando sobre as lanças dos pinheiros, que manam do mar em que tornam a terra. E não posso esquecer quando fui gigante na plantação de eucaliptos: eles, a meus pés, como se eu fosse Deus. Ou, pelo menos, um homem muito grande.
7
A vida não quis que eu fosse um homem muito grande. Nem topógrafo, nem pianista. Aceito o que ela quis. Quis ela que eu fosse contador de árvores – e é o que sou: um contador de árvores. Nos incêndios de cada Verão, passo fome e frio. Quanto mais fogo, mais frio. Quanto mais frio, maior a agonia – atrás de cujo Senhor te vi passar, minha espada de prata.
8
Também nos sonhos conto árvores. Abre-se o mar de uma vez só, como um pano rápido de palco. Em cena, a calda eterna do oceano e, sobre ela, os barcos, cujos mastros são árvores inteiras e verdadeiras: barcos movidos a vento dando em laranjeiras, oliveiras, ulmeiros, tílias, pessegueiros, robles, limoeiros, pereiras. São árvores que nascem do fundo do mar, traspassam os barcos e sobem para as estrelas, que também conto para que nas mãos me nasçam os cravos roxos que te vi oferecer ao Senhor da Agonia.
9
Quando adoeci para contar árvores, estava já filmado o filme da minha vida: um menino descobridor de topógrafos que me pareciam fotógrafos-de-cavalinho-de-pau com a cabeça oculta num pano preto e um balde de líquido aos pés para que o cavalinho matasse esta sede de imagens. Sei que meu Pai me aprovaria o ofício. Ele fez o mesmo – contou árvores até morrer e até viver.
10
Agora, tenho de ir-me embora. Espero que haja árvores, lá para onde vou. De lá nascem todas, aliás. Umas para o ar, outras rumo ao níquel ardente da noz do mundo. Hei-de contar os bichos cegos que as trepam ao inverso. Hei-de contar as pedras que sonham ser cuspidas pelo fogo. Hei-de contar ao meu Pai, no reencontro, quantas árvores contei e quantas vezes – uma, duas, duas, uma.
Caramulo, tarde de 22 de Fevereiro de 2007
2 comentários:
Bom dia,
Daniel,
para continuares
a celebrar
a poesia!
Bom dia!
Há uma nespereira que...
Em verdade, em verdade vos digo: na chamada blogosfera, há todos os outros blogues, e há este. Este é que é!
Cumprimentos.
Enviar um comentário