1
Do alto dos recifes, redescubro o mar com o espanto calmo de sempre. À vista do oceano, ninguém tem idade. Eu também não. À noite, na noite da montanha, basta-me fechar os olhos para subir aos recifes e perder a idade.
2
Mesmo que uma pessoa não tenha lido sequer um livro, o facto é que a mente é uma biblioteca maravilhosa. Todas as histórias se congregam debaixo do cabelo, olhos adentro. Toda a vida, toda a morte, todo o céu e toda a terra. Toda a pessoa, lá em cima, nos recifes.
3
Era um automóvel de apenas dois lugares. Tinha escrito nos flancos uma marca de bolachas, rações e massas alimentícias. O carro estava vazio. No alto dos recifes, abandonado, declinava o caso de um mistério talvez triste, talvez final – e decerto humano, como só os mistérios automóveis.
4
Quem – ou quens – deixou aqui este carro e porquê? Vejo o carro e na minha cabeça (lá dentro, na biblioteca) volta a passar a história não filmada de Helena C., a quem a tristeza irreversível atirou, com carro e tudo, dos recifes para o mar. Mas este carro está aqui. Helena C. é que não.
5
Lá em cima (cá em cima), o vento alonga o trapo sempre lateral da sua tenda invisível. As orelhas gelam como folhas de couve visitadas pela geada. A matrícula é de há dois anos. Os recifes e o mar são de sempre, comemorados pelas estrelas seus aniversários sem origem nem final.
6
É um carro branco. Do espelho retrovisor pende um crucifixo sem adoradores. O cinzeiro peja de pontas mordidas. Há uma lata de cerveja amolgada aos pés do lugar-do-morto. Ou do lugar-do-ausente, coisa que pode dar no mesmo.
7
Massas purpúreas tornam lento e sanguinolento o céu de fim de tarde. Os recifes recebem o cromo na cara. Em baixo, o mar desenrola a fita imemorial. Não vejo corpos boiando ao dissabor do sal. De quem foi – ou terá sido – este carro improvável?
8
Helena C., morena de cabelo preto, nariz partido para baixo como um imigrante do Norte em tempo de gaibéus, olhava a partir da profundidade da sua biblioteca pessoal. Matou-se, atirando-se, com carro e tudo, da serra para o mar. Mas este carro não é dela. Só esta história é que é para ela.
9
Tenho de ir descendo. Tenho de ir andando. Uma pessoa nunca pode ficar onde está. É como o aviso eléctrico das cabines de alta tensão: perigo de vida, perigo de morte. Talvez faça uma sopa de peixe, chegando a casa. Talvez telefone à polícia por causa do carro solitário ao alto dos recifes.
10
A notícia veio depois nos jornais. Deputado e secretária misteriosamente desaparecidos. Duplo assassinato ou fuga amorosa – ou duplo suicídio amoroso? Se os jornais não sabem, por que raio deveria a rádio saber? Eu não sei. Bolachas, rações, massas alimentícias – em letras azuis. Imagino. Conto. Convosco. Sem Helena C.
Do alto dos recifes, redescubro o mar com o espanto calmo de sempre. À vista do oceano, ninguém tem idade. Eu também não. À noite, na noite da montanha, basta-me fechar os olhos para subir aos recifes e perder a idade.
2
Mesmo que uma pessoa não tenha lido sequer um livro, o facto é que a mente é uma biblioteca maravilhosa. Todas as histórias se congregam debaixo do cabelo, olhos adentro. Toda a vida, toda a morte, todo o céu e toda a terra. Toda a pessoa, lá em cima, nos recifes.
3
Era um automóvel de apenas dois lugares. Tinha escrito nos flancos uma marca de bolachas, rações e massas alimentícias. O carro estava vazio. No alto dos recifes, abandonado, declinava o caso de um mistério talvez triste, talvez final – e decerto humano, como só os mistérios automóveis.
4
Quem – ou quens – deixou aqui este carro e porquê? Vejo o carro e na minha cabeça (lá dentro, na biblioteca) volta a passar a história não filmada de Helena C., a quem a tristeza irreversível atirou, com carro e tudo, dos recifes para o mar. Mas este carro está aqui. Helena C. é que não.
5
Lá em cima (cá em cima), o vento alonga o trapo sempre lateral da sua tenda invisível. As orelhas gelam como folhas de couve visitadas pela geada. A matrícula é de há dois anos. Os recifes e o mar são de sempre, comemorados pelas estrelas seus aniversários sem origem nem final.
6
É um carro branco. Do espelho retrovisor pende um crucifixo sem adoradores. O cinzeiro peja de pontas mordidas. Há uma lata de cerveja amolgada aos pés do lugar-do-morto. Ou do lugar-do-ausente, coisa que pode dar no mesmo.
7
Massas purpúreas tornam lento e sanguinolento o céu de fim de tarde. Os recifes recebem o cromo na cara. Em baixo, o mar desenrola a fita imemorial. Não vejo corpos boiando ao dissabor do sal. De quem foi – ou terá sido – este carro improvável?
8
Helena C., morena de cabelo preto, nariz partido para baixo como um imigrante do Norte em tempo de gaibéus, olhava a partir da profundidade da sua biblioteca pessoal. Matou-se, atirando-se, com carro e tudo, da serra para o mar. Mas este carro não é dela. Só esta história é que é para ela.
9
Tenho de ir descendo. Tenho de ir andando. Uma pessoa nunca pode ficar onde está. É como o aviso eléctrico das cabines de alta tensão: perigo de vida, perigo de morte. Talvez faça uma sopa de peixe, chegando a casa. Talvez telefone à polícia por causa do carro solitário ao alto dos recifes.
10
A notícia veio depois nos jornais. Deputado e secretária misteriosamente desaparecidos. Duplo assassinato ou fuga amorosa – ou duplo suicídio amoroso? Se os jornais não sabem, por que raio deveria a rádio saber? Eu não sei. Bolachas, rações, massas alimentícias – em letras azuis. Imagino. Conto. Convosco. Sem Helena C.
Caramulo, tarde de 31 de Janeiro de 2007
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