18/08/2005

História das camisas e não só

Procedo com regularidade a obras de reparação numa casa chamada memória. Removo soalhos apodrecidos, pinto paredes, desenferrujo janelas, mudo lâmpadas – e o passado brilha de novo, falso como o futuro. Arriscarei muito, afirmando que toda a gente assim faz?
Só vivi três semanas em Cabo Verde. Bastam-me esses 21 dias, no entanto, para toda uma empreitada memorial em que os andaimes da verdade suportam sem custo nem vergonha a ficção operária. Quer isto dizer que minto? Não. Quer dizer que finto.
Escrever é antecipar Alzheimer. Esquece-se o trivial, o imediato. Mistura-se o importante, o afectivo. Baralha-se o factual, o histórico. A história das camisas, por exemplo.
Eu levei quatro camisas novas no saco de viagem Lisboa-Sal-Praia. Iam dentro das peles de plástico. Novas, berrantes, frescas, de mangas e ideias curtas: portuguesíssimas camisas. Nunca as tirei do plástico. Mas tirei-as do saco. Na véspera de (v)ir embora, dei-as aos bons homens que atendiam às mesas os comensais de hotel. Não o fiz por esmola, óbolo, gratificação, caridade ou cristandade. Dei-lhas porque sim.
Eram homens com qualidades. Homens produtores de boa fala, ritmo tropical, sorriso franco, avisada recomendação, atenciosidade profissional. Fora de serviço, a outros balcões, bebi copos altos com eles. Conversei, soube de filhos, trabalhos e dias. Eles ofereceram-me a alta recompensa do serviço à hora do serviço e do conhaque à hora do conhaque. Na antecâmara dos adeuses, eu só tinha, de material que lhes oferecesse, as camisas. As camisas eram quatro, quatro eram eles. Assim foi.
Havia outra pessoa, no entanto e ainda, a quem agradecer. Era uma rapariga.
Para descrever-vo-la, forço-vos a seguinte imaginação: de uma estante alta, um tombado frasco de mel derrama, em vertical hemorragia, uma lentíssima lágrima de néctar; solificando-se na queda, modula uma cabeleira florestal, um egipto oftalmológico, um nariz mental, uma boca oblíqua, um vale dos reis sob delta de pescoço, uma barriga musculada, adiante e pernas de suporte de templo grego: ei-la, ela. Ofereci-lhe a cara despedinte. Ela despediu-se-me na boca.
De modo que estou, desde então, em obras. Arriscarei muito, afirmando que toda a gente assim estaria, doutor Alzheimer?


(Escrito para o sítio na net: www.liberal-caboverde.com
na tarde de 17 de Agosto de 2005, em Tondela.)



11 comentários:

Anónimo disse...

Ai.

SDF disse...

Brilhante como sempre, D.!

Gosto de te ler assim...

Anónimo disse...

é só para dizer que estou de olho no teu blog... Tudo bem, meu vira-lata?

Daniel Abrunheiro disse...

tudo bem, corte-e-costura

Daniel Abrunheiro disse...

tudo bem, corte-e-costura

Anónimo disse...

Continuas abstémio? Agora, com este calor, um galão não me parece boa ideia...

Anónimo disse...

E, já agora, que tal colocares a hora correcta no teu bloge? É que são quase oito da noite e na hora do comentário aparece perto do meio dia...

Anónimo disse...

Tá bom, man, mas a Feliciano tb num me parece mal

Daniel Abrunheiro disse...

deixem mazé as minhas amigas em paz!

Daniel Abrunheiro disse...

deixem mazé as minhas amigas em paz!

SDF disse...

"num" sei o que é que "num" parece mal, mas como sou bem educada, aqui fica o meu muito "obrigadum" ;o)

Canzoada Assaltante