17/08/2005

Cem anos sem sono

para A.S.
O que desejo, basta-me esperar para ter: do Outono falo.
Acolherei na aldeia, sob o castanheiro, as horas mais que estas frias.
E refarei a ficção de brincadeira e de sempre.
Ela é: permitir à cabeça um recuo de cem anos no Tempo e na História.
Todos os verões pratico tal recuo inofensivo.
É quando quero adormecer, quando a realidade se deixa esvaziar em torno como um saco de pano, como um balão de menino envelhecido.
Quase sempre consigo esse milagre.
A electricidade desaparece.
A noite toma-se de uma pureza mais pura e mais negra.
Os pomares cheiram.
As estradas minguam, reaterradas.
As casas piscam olhos de azeite, bruxuleando dentro a lareira vermelha, onde fuma o caldo, perto de que bocejam os casais casados, dorme a velha no altar de pau.
Gosto dessas noites seculares de minha mentira.
Não fazem mal a ninguém e permitem que eu durma.
E não outra coisa que isso – adormecer – desejo.
Contra Agosto, contra o néon, contra as motorizadas que serrilham o silêncio com uma tosse de gasolina de metros de cauda.

Não me tem feito particular mal, estes primeiros 41 anos, iludir a natureza do Tempo com a imaginação da Natureza.
Julgo que o não tem feito, mais bem dizendo.
De olhos tapados duplamente pelas pálpebras e pela noite contemporânea, abro a vista mental à ruminação do Outono, e pós Inverno, de há um século.
Deixa de ser preciso, o meu corpo tabágico de agora.
Uma azulada fluorescência abandona quem durmo, levando-me.
Lá fora, o quintal amarela-se de out(ro s)ono.
Ervas antigas reflorescem, passíveis de caligraphia.
Tetravós de pardais dormem como frutos de pé, as patinhas pedunculares amarrando o ramo.
A Lua suscita ohs de cemitério ultra-romântico.
E eu azulo pelo anil benfazejo deste Outono dotado da sabedoria milenar dos recém-nascidos.
Então sim, então admitir talvez Deus e Seus Anjos agricultores;
Suas Alminhas de encruzilhada;
Seus Mártires apedrejados e comedores de gafanhotos.
Panteísta ou não, telúrico sempre, o já-sonhador pode alterar-se, o que é tornar-se outro.
E vaporizar sendas, córregos, arroios, veredas, alm'alamedas, atalhos, azinhagas, choupais, choupanas, arborescências, eiras – com a humidade da boca.
Desprovido do contumaz relapso eu, iridesce ele, matizado de furta-cores a que a prata da Lua empresta uma couraça de carocha voadora.
Tanta silhueta negra apregoa a nudez arábica do Tempo redivivo: os ramos que raspam o céu de vidro, letras ilegíveis para aprender de cor.
Sem corpo, nem a ideia padece orfandades ou desamores de outro corpo, outra hora (não esta) amado com cadência, leite, violência, deleite.
Cadentes riscos siderais, em vez: são no céu esmigalhados diamantes, boquinhas de brilho que apetece pintar de púrpura.
A aldeia dorme, a minha aldeia de que sou.
Lobos não extintos farejam a tépida lebre, que penugeou de odor o caminho sobre que, amanhã (se eu dormisse sempre, para sempre), cabras unhariam de fartas quentes tetas suspensas.
As mesmas solenes indignadas cabrinhas cuja feminilidade atormenta o pastor como iniciou o poeta.

Isto é tudo uma boa coisa, escreve ele.
A nobre paz, larga como uma procissão vista de lado, é de uma nobreza sem dinheiro.
Toda a serra lhe pertence.
E os pinhais, que asmam a ilusão sonora do mar, adensam a alma respiradora de resina.
A miséria cessou.
Não há bancos usurários, inexistem os prestamistas, esquecem quaisquer anjos-da-guarda a 32 por cento.
Há casebres adormecidos, tão-só.
E neles gente não temente porque tenente, dona de seu mesmo futuro (hoje) pó.
Isto é tudo um bom japão, se tal me consentem a diplomática educação e a matemática cortesia.

Mas – que é isto? – de novo sinto o material pé direito, tornado cera pelo abandono do outono do sono, e a impaciente bexiga ressinto, pedra-pomes tornada.
Sou de novo o condenado eu a agora.
E, acordando na abafada noite deste indesejado agorAgosto, deixo tombar o caderno no banal tapete de quarto de cama banal.
E é que me levanto e vou mijar, grunhindo de tristeza, primeiro, e de humano mortal contemporâneo alívio, depois. Ou agora.


Botulho, Tondela, noite de 11 e madrugada de 12 de Agosto de 2005

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa-noite.

Canzoada Assaltante