7. Nem Parecem Mortíferas as Sombras
a) Quinta-feira, 31 de Outubro de 2019
Em sossego atento, escutando a
Carlos Fuentes, o descomunal mexicano de superlativas elegância &
sabedoria-em-prática. Aproveito muito, enquanto chove no mundo local. Sinto-me
gratificado por esta invernosa despedida de Outubro. Tirando a tosse cavernosa,
estou bem na hora. Por o tempo destas linhas, não saí ainda de casa. Tenho de
fazê-lo hoje, sem mais procrastinação. Prédio afora, terei tanto de reencontro
quanto de achamento – já o sei.
À cautela, raspei ontem à noite a
pilosa queixada. Subirei na vertical ao duche, daqui a um par de hora, para
fruir a chuva domesticada.
Fuentes elabora, redivivo. Nomes
& lances manam daquela consciência tão clara. Monstro da literatura duradoura
– e dura de ouro.
(Tusso até me subir à boca o
coração.)
Sempre saí, chuviscava, não achei
frio nem frio me achei. Resolvi duas coisas, duas outras ficam esperando-me no
porvir, se vier.
Revi parciais do meu mundo, de que
constam operários em fim de jornada, vêm dessedentar-se ao bebedouro de pobres
que há anos nidifico.
Poalha, a moinha toma tudo.
Relapsa a nostalgia p’la Cidade.
Idêntica idade, identidade
apõe a todos-os-santos ao entrudo.
Achegam-se os mais velhos à
lareira,
em funcho há castanha em cozedura.
A dor dos outros é sempre futura.
‘manhã vamos de barco à Figueira.
Tardia, a comoção já nos não leva
pela mãozinha dócil de manteiga.
Tardia é a alegria. A dor, primeva.
Envelhecer é coisa nada meiga.
Morreu Dias (José), fui dele amigo,
nove dias depois só mo disseram.
O q’escrevi com ele, não escreveram
os ensimesmados a sós consigo.
Um triste (de bigode rarefeito)
pede fiado ao amo bebedouro:
este lhe serve cálix morredouro,
aquele rechupa sede pelo peito.
Ser testemunha antiga sem mais fala
q’a da avó mais velha analfabeta
– ser deposta boca de quem se cala,
matina q’a noite faz obsoleta.
O Sílvio (contas certas) não obriga
quem de fora lhe vem por a visita.
O Álvaro Martinho traz cantiga
que à força do passado revisita.
b) Sábado, 2 de Novembro de 2019
Sinto a infiltração da idade – e
nem sempre por algum mote negativo. Mesmo ante as contrariedades devindas que,
activa ou passivamente, engendrei eu mesmo – mesmo ante essas (con)sequências,
encolho bastas vezes os ombros & assobio enquanto sigo o(s) meu(s)
(des)caminho(s).
Falo com & para mui pouca
gente-gente. Nos sonhos, por igual, sou mais ouvinte do que falante. Tenho
sonhado muito. Acordo sempre algo aturdido pela lógica implacável desse
universo-alternativo da nebulosa-cerebral. Esqueço rapidamente as peripécias.
Não são pesadelos nem jardins, os filmes que sonho. São outra roupa num corpo
diverso. Nem menino nem senil, é como se tivesse experimentado uma espécie de
eternidade limitada ao stock
existente. Já acordado, sacudo o pêlo, bebo água da garrafa á cabeceira, fumo
se tiver à mão, iço-me para a hora nova. Mudo, as mais vezes. Surdo, não. Há
cantos da casa mais propícios à música. Não telefono nem me telefonam. Está tudo bem – responderia eu se mo
perguntassem. Ainda bem, porém, que mo não perguntam, escuso de aldrabar, seja
quem (não) for.
Mercê de curiosidade selectiva, vou
(col)matando a pouca conversação: interesso-me por papéis vivos, linhas vivas,
imagens capazes de vergar o Tempo em espirais alternativas. Um duplo-homicídio
na Irlanda, ano 1921. Um sêxtuplo (salvo erro) em miseráveis subúrbios de
Glasgow, acho que em 1984. O andrógino Rapaz Jorge em 1981. Correrias em
Munique nas décadas 20 & 30 do XX. É corrupio-de-pandora, por assim dizer. Dou
de comer ao lápis, tinta por vezes. À dor, nem tanto.
Em povoação tomada de invernia,
pela noite, é ainda possível ambular sem prejuízo do mundo. É além a casa do
Ambulante. Por ter de manhã cedo azeitado as juntas do portão, o ferro não
chia. Em surdina, o rádio rastilha valsas. No lar, o brasido remanescente pede
reforço de provisão. O cão, muito velho, abre um olho, boceja, quase dá ao rabo
uma voluta de boa-vinda. A mesa expõe tesouros da horta, do mar & da serra:
cebolas, bacalhau, queijo. A cafeteira azul, uma vez reanimado o lume, já mana
perfume. Da rede-mosquiteira suspensa, toucinho salgado & manteiga abordam
a mesa. A luz é cediça. Ergue-se vento no pátio, fremem no pomar as macieiras.
O noticiário da radiofonia reporta a um exterior demasiado longínquo
(felizmente). Jornais antigos esperam a enésima releitura. Hoje, porém, talvez
não. Agora, a doçura mela os olhos. A poltrona, a prudente meia-distância da
lenha viva, serve de placenta. As valsas voltam. Fios rarefeitos de sentido medusam
pela mente já só semiciente. Estraleja o pinho, casado com o pedaço de oliveira
no altar ígneo. Nem lembrança nem espera. Nem espera nem lembrança.
Truz-truz.
Da casa, ó senhor!
Quem luz?
Senhoria, é Leonor!
Entra pois, Leonorita,
entra e toma tu assento.
Entro sim, só um momento:
venho lá da Dona Rita.
E que me quer a boa Rita?
Pois é isso, já vos não quer.
Que me dizes, Leonorita?
Já lhe não vem por mulher…
Ao contrário dos católicos, vivo de
desaparições. Não há nisto gravidade. Graves deveras, são raras as coisas. E as
coisas apresentam-se duramente concatenadas. Se um ror de palavras me pede
alinhamento, sou grato. A mocidade foi. E não volta. Não é natura dela. Chegou,
morou por aqui um bocadito – e pôs-se nas putas, bem fez ela. Em o lugar dela,
range ossos certa condição que não é ela, é outra coisa, conspícua recolecção,
lentidão agravada, não outra pessoa mas menos pessoas nessa pessoa. Força-se
aqui – mas sem desespero – um ensaio de matrícula na noção compreensiva. Versos
muito mais felizes já o terão eventualmente logrado – não importa. Ou: não me
importa. Importa-me, isso sim, muito sim, a palavra-justa (assim com hífen para
substantivar foros de, precisamente, justa-posição). Ela é por-si, consigo,
em-si – vida melhorada. E não só livros habita. Bocas que pelo mundo não
escrevem – também dela são capazes. Tenho recolhido muitas, que em solidão frúo
na ciência antecipada de comigo as não poder levar lá para onde foram os que já
não podem ler. Posso deixá-las, isso sim, posso. Mais digo: todos os meus anos
falantes são mormente ouvintes. Entre eles, deles, faço de secretário.
Vou à janel’alta da sala, miro a
obra da noite neste trecho do mundo. Atrás de mim, nem cão nem lareira, nem
rádio valsante nem pomar de macieiras – mas.
Mas pontilhada a ouro é a tela que
se me abre à janela alta. A hora evacuou as vias, nem parecem mortíferas as
sombras. A colmeia humana aceita o anoitecimento, milénios de resignação são
imperiosa escola. Sinto em palavra o recolhimento. Nem demência nem euforia.
Nem baile, felizmente.
Atrás de mim, esparsos móveis dão
de si, emitem acústicas mínimas. Roupa-de-cama faz de mãe. Restos de refeição
já arqueológicos, assinatura da hora perdida.
Sim, há justiça no caos – até
cortesia, digo. Não mais forjarei um sentido – sequer alguma porta.
Certa vez (que esta noite demonstra
improvável), a uma mesa jantando em companhia de outros oito
filhos-de-suas-mães, calei-me mais que de costume. Penso que se celebrava uma
notícia de noivado. Fumei no quintal. Os carros visitantes afocinhavam o pinhal
d’em-torno. Talvez o mote do jantar não fosse noivado. Pode até ser que fosse
alegria de recém-divórcio. Antigamente, havia certo pudor. Agora, parece ser
razão de júbilo. Depende, se calhar. Comia-se, enfim. Aquela assembleia não era
especialmente bebedora, pelo que mais me restou. Voltei ao quintal a pretexto
de outro cigarro, trouxe comigo a botelha de conhaque, sentei-me numa pedra
trabalhada, recebi da Lua o clarão hipnótico. Essa gente (e a mocidade dela) já
não é. Sumiu-se na natura de sua via, eu na minha. O conhaque era bom, era um
heterónimo da seda, o fresco da exposição fez-me bem. Todavia, também me não
demorei. Agradeci boleia até à gare, esperei menos de uma hora pelo comboio.
Então, ardendo de prata, os arrozais emoldurados desfilaram. Pensei logo em um
dia escrever isto no pretérito – o que ora se faz presente, amanhã não.
Outra coisa: a morte como
hoje-perpétuo. Perpétuo até que o planeta se desfaça, depois disso o Nada
Maiúsculo Sideral. Adeus, sentimento; adeus, pobreza; adeus, nossa casa.
Todos temos alguns já. Quietíssimos
viajantes, amados nossos que de nós amor não urgem. Impermeáveis à febre, à
geografia, à fortunam ao carnaval erótico – e à infâmia chamada Religião.
Afortunados afinal, portanto.
Raspa-nos – não a eles já – o sal
dos anos. Temos visto cegamente tanta coisa. Fendemo-nos, ofendemo-nos – mas
pouco nos defendemos da malevolência consuetudinária. Nunca é o melhor dia para
que finalmente alguma coisa etc.
Mutilados – menos do corpo do que doutra
coisa. Cada vez mais fácil, topá-los. Um Eduardo entre eles. Conversei com ele
algumas vezes. Se tinha alguma coisa, partilhava: pão como vinho, velha ceia.
Ou deus frugal. Luís, outro que tal. Valdemar, filho de Sofia Sirius. Ernesto
Calendas, há muito falecido. Sepultados na vala municipal. António Polícia,
mais amigo de cães que da vida. Pepe Célere, famélico, imparável, colhido pelo
exacto comboio em que vinha Filinto Prates, o poeta de Memória Corrupta e de Peregrina
Imitação.
De mutiladas, sei menos. Não que as
haja menos. Menor é tão-só o meu conhecimento. A franqueza suporta este
parágrafo. Maria Irlanda, eis uma. Nos melhores anos, alourava o derredor de
si. Manipulava, qual grão-mestre xadrezista, pessoas, situações, negócios,
influências. Uma manhã de Maio, acabou. Junho nada repôs. Encostou-se ao tudo o
que viesse por nada que fosse. Não vou explicar tudo. Não sei tudo – mas sei
mais do que não digo. Maria Irlanda, era uma vez. Mutilada, mortífera sombra.
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