14/11/2019

CADERNETA PRETA - 4






4. Lapigrama d’Águas-Fortes

Sexta-feira, 25 de Outubro de 2019



Em profusão tudo menos estéril, águas-fortes impõem-se à atenção. Foi hoje o caso de arreigadas existências – resgatadas ao esquecimento umas, outras à ignorância. Uma mulher chamada Laura, viúva de um Astor. Uma outra, da família Dunlopes, demasiado cedo traída pela doença. Dois homens – Platon K. contando ideias a um Pierre B. Um fulano, salvo erro Hernâni, bolçando vulgaridades, não sei a propósito de quê ou quem. Mais coisas giras: burlas qualificadas, chapas torcidas em colisões rodoviárias de cacarácacá; renovações de contratos; abusos de confiança; a China Formigueira a fazer de vesp’asiática por esse mundo quase todo; corpos moços & dinamarqueses aproveitando o sol; atropelamento mortal numa zona de barracas “sociais”; um decote fêmeo palpitando frescura adiposa; livros de massa-folhada paginados a dedadas de manteiga & ambrosia-de-ovo; uma tenda de rua atirando granadas que são afinal ananases; apóstatas assoprando avenas do Averno; conluios semitácitos na dieta parlamentar em vigor; Ulisses de volta à navegações ensimesmadas; indeterminação já perpétua daquele capitão John Franklin de 1845; súbito raio de lembrança relativa àquele concerto maravilhoso do quarteto Opus Ensemble em meados de 80/XX no Teatro Paulo Quintela; a Religião (qualquer religião) como cancro incurável deste mundo sem remédio; a namorada assim para o namorado – Já estou a ficar com dormência nos lábios – e o namorado assim para a namorada – Quais dos quatro?; miséria obrigatória dos camponeses patagónios nos anos 20/XX (e ss.); um homem ainda moço chamado Severiano cuja exemplar solidão não pode ser repescada por causa de Idiliana – mãe dele – lhe ter queimado os diários; internamento psiquiátrico compulsivo de Ossianne, herdeira n.º 1 da descomunal fortuna Ariel-Tuning; aquele caso até hoje sem clareza de Manuel Maria Botelho Alcarraxe, caído de um céu por que não passavam naves aéreas; Lucas, o polícia, a quem Mena traiu por desfastio; leiloada em Londres a totalidade (conhecida) da obra pictórica de Ortiz Doom (quatro telas, duas serigrafias, lapigramas diversos & todos representantes do rosto de Mónica Prado, sua mãe); Florencio (sem circunflexo) residindo na parisiense Rue d’Alésia; acesso ilegítimo, por parte da gestora bancária, a contas gordas de nonagenário em coma vegetativo; mutualismo gregário da canalhada sacerdotal-pedómana; outra vez mortos nas ruas chilenas; ainda & sempre pindéricas brasuquices; um avo do clã Moreira contra outro gomo do clã Antunes; na Bolívia etc.; etc. na Venezuela; na Baixa da Banheira, uma velhota pergunta se lhe viram a netinha, que morreu de herôa há mais de dez anos; microchips a €2,5 (obrigatórios) no registo de animais-de-estimação.
São não-acontecimentos a que esta minha casa é propícia. Reportam a um mundo quase interessante & deveras impraticável. Só tenho de descerrar-lhes a metafórica janela da atenção. Exemplo: sepulturas sem nome dos monges da Cartuxa. Esquecido até do Prontuário Litúrgico.

Em tempos de maiores viagens, vi cantarias de mui polida brancura a que o frio fazia aderir o pó em vidro.
Vi em Penamacor uma sala-de-jantar muito bonita forrada a luz & fruta;
Vi em Esposende uma cadela gentia parindo quatro crias no imo de um arbusto;
Em Santiago do Cacém (terra do grande Manuel da Fonseca), vi uma mulher olhando em frente sem hesitação;
Em Odivelas, um rapazola vi traficando papeletas guardadoras de poeira injectável.
Viajo estes hojes de diverso modo. Apraz-me a lã destas meias, como me satisfaz haver lá fora o lago que me apetecer. Neva para os lados do hipermercado, cuja mastodôntica configuração troco sem esforço por duriense encosta graduada & vitivinícola. Na noite individual da cama, vogo a matina fria por sendas estaladiças de geada. No adro da cabana pastoral, já o honesto zagal sopra o breve lume sobre que se esbraseia o naco de toucinho & palpita a cafeteira coroada de borra fresca.
Alinhei no tampo da cómoda os ícones singelos:
de porcelana, um touro dourado de patitas & cornitos brancos;
Um cristo de serapilheira tingida de roxo & amarelo;
O dedal da Velhota;
Desasada, a chávena achada no areal da Figueira há trinta & dois anos; uma migalha rutilante que sigo sem saber se é de quartzo, se é o que resta de um olhar de ave;
Um número da Gaiola Aberta do grande Vilhena.

O tesouro enumerado no rol anterior é tão verdadeiro quão a lembrança do nascimento. Vale-me ele – e não poucamente ele me vale & vela. A ele hei-de juntar (de propósito, ou por acaso, ou por distracção) garantidas premonições, algumas das quais são:
Nunca ir nem a Buenos Aires nem a Viena de Áustria;
Rejeitar sempre a fala espúria, o vocábulo maninho, a ricaça-pobrete & o parvo-alegrete.

Eu desando disto há muitos anos. A velhice veio, como Outubro, a horas – mas, ao avesso do mês, não cederá ela lugar ao que for/fosse/já-lá-vai.
Aspérrimo sentimento algum por aqui? Não deveras. O tecto é baixo mas dá para se ser cosmonauta à mesma. Eriçada de estrelas a gambiarra-silveira cósmica, alicerça-a esta casa mesma. É quase como ir do Maputo à Beira à beira duma puta, isto de merecer literatura o quase-nada de quase-tudo.
Já na cozinha assobi’silva, peremptória, a chaleira. Há geleia-de-marmelo, pasta-de-sardinha, doce-de-tomate, biscoitos-de-arroz, chocolate & pão-branco. Escolhi a toalha de quadrados cor-de-musgo em campo púrpura. Não sei que horas (ainda) são. Não conto com elas. A sexta-feira veio, é quase ida. Não fui à caixa ver se chegou ou não certa carta.
Que sábado, enfim, seremos?    

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Canzoada Assaltante