5. Vagas Ondas
Sábado, 26 de Outubro de 2019
Prostração viral. Xarope
antitússico & pastilhas coiso. Canalização respiratória rumorosa, nariz
pingão de aguadilhas mucosas, lenços-de-papel enxugando quanto podem. Ossos
& fibras alquebrados como gravetos pisados.
Resisto mercê de versos de Garrett,
o Garrett já mais maduro de Flores sem
Fruto. Lentidão de essência. Sol no mundo local, é claro o sábado, não
sairei hoje do tugúrio, não ’inda. Se o amanhã contar comigo para o
cromo-de-caderneta, veremos. Segunda-feira sim, será dia de saída. Correios,
barbeiro, antiquário, voltas pelo labirinto simples da Cidade.
Enquanto não, então por aqui. Estar
adoentado é interessante. O corpo dedica-se mais ao egoísmo que lhe é próprio,
esse solipsismo sem ética, sem justiça, sem treino, sem outro objectivo, para
já, que o de chegar vivo a domingo. A mente evola-se. Por exemplo, penso um
pouco no argentino Macedonio Fernández. A viuvez dele, a demanda do livro
total. Ocorrem-me os também argentinos, e ambos Osvaldo de primeiro nome,
Soriano & Bayer. E o obscuro Sábato de O
Túnel. Borges, claro. Cortázar principesco, claro. Estes mortos redivivos
na minha prostração semideitada em mantas com inclinação angular de almofadões,
ao lado o frasco de xarope, a botelha de água morna, restos da ceia de ontem,
cigarros quietos uma vez na vida.
Nada precisa de mim, lá fora. Sem
sentimento nem ressentimento. Aproveito a quietude. Assimilo listas ao gosto
& à guisa do grande Umberto Eco, outro glorioso defunto. Assisti a uma palestra
dele na Faculdade, foi lá para os 80s/XX, Saramago também por essa altura e no
mesmo sítio, assim como Mário Viegas à frente do Teatro Experimental do Porto.
No princípio deste milénio, voltei a estar um pouco com Saramago, já Nobel ele
então, foi em Pombal, apresentei-o na Feira do Livro, foi giro, já tudo lá vai.
Para não desconsiderar, por injusto
cotejo a Agustina, penso na maravilhosa Yourcenar. A também Marguerite mas
Duras não me seduz nem interessa. Li dela alguma coisa, não restou grande coisa
– pareceu-me tipo Catherine Millet mas sem tantas piças.
Mulheres por mulheres, curti a
Highsmith & a Rendell, entretenimento prazenteiro me propiciaram com
suas/delas tramas criminófilas.
Devagar, mais Garrett. Um pouco de
Kafka. Laranja espremida. Bolachas. Coze-se carne de vaca, um naco dela, com
cebola & sal apenas. Mais logo, feijão-branco. Compota de morango. Mais
logo.
O sábado amadurece bem. Em um
parque, arvoredo bem tratado jubila ao sol moderado do mês. Pessoas formigam
por ali, não muitas. Vai à médica-dermatologista um rapaz com vermelhidão
suspeita em zonas da casca. Incisões certeiras expulsam lipomas de consistência
galinácea. Quistos dermoides ou sebáceos. A médica é competente, alivia o
maralhal sofredor & sofrido. Cicatrizes mínimas, bom trabalho de costura.
À praia da mente vêm chegando &
recolhendo-se mais vagas ondas: a figura trágica de Vítor Baptista predomina.
Datas dele: n. 18-X-1948; m. 1-I-1999. A 12 de Fevereiro de 1978, aquela cena
dele à procura do brinco depois de marcar o único golo desse Benfica-Sporting.
Tenho tudo anotado. A final da Taça de Portugal mais extensa da História: 9 de
Julho de 1967, ele muito novo no Vitória de Setúbal, vitória dos sadinos por
3-2 frente à excelente Académica dessa década. A degradação de V.B. (“o Maior”): álcool, gajas, droga,
furtos, prisão, morte ao raiar de ’99. Em paz, finalmente, já vinte anos se
queimaram ao sol. Foi o nosso George Best, dúvida nenhuma.
Costumeiras convulsões na América
do Sul. Afeganistão. Hong Kong. Síria. O Diabo-a-4-pintado-a-7. Parece haver
vietnamitas no tal camião-frigorífico-cadafalso no Reino Unido. Chile,
problemas & pedradas. Iraque, sessenta mortos em dois dias. Barcelona,
inquietação. Marselha, lixeira fanático-religiosa a-céu-aberto.
Aqui, não. Tusso, espirro, escarro,
fungo, lenços-de-papel sanita a baixo: o corpo diverte-se. Mas a mente também –
paralelismos ocorrem-me: Victoria Ocampo / Natália Correia; Woody Allen / Luiz
Pacheco; e sim, definitiva geminação George Best / Vítor Baptista. Inócuo
divertimento, que entretém o momento.
Também: clássica é toda a obra pretérita que logra manter-se actual. Neste
sentido, recebo sempre Sófocles como novidade. Idem-aspas quanto a Faulkner,
Goya, Paredes, Beckett.
Mais dois nomes que brilham nesta
caderneta: o coronel John Bevan & o agente-duplo Juan Pujol. Clássicos eles
também, por outras vias.
O sábado, de si mesmo viajante,
abocou a noite. Já esta exerce seu magistério terraplenador. Desta casa quieta
como a esta quieta casa partem & chegam motivos carregados de essência como
de ouro líquido as jóias a que chamamos laranjas. Cais da Rocha do Conde
d’Óbidos, Pas de Calais, Dover, Angra do Heroísmo. Abwehr, MI5, Securitate,
Stasi.
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