08/11/2019

CADERNETA PRETA - 3




3. Um Gajo Organiza-se

Quinta-feira, 24 de Outubro de 2019



Uma chamada Rosa com banca de flores, velas votivas, pagelas de miraculadores, de configuração facial por assim dizer macedónia, linhas de um vento de violentas violetas, por assim dizer também. Essa Rosa? Viúva de um Ortega inencontrável até nos mais ébrios arquivos desta quinta-feira. Rosa do Nascimento, cuja pobreza hereditária lhe cravou antiguidade desde a hora mesma de nascida.

Em esta casa sita em este outeiro é que congemino tal Rosa, viúva do desencontrado Ortega & órfã natural de um Sebastião estivador & de uma Cecília operária dali da farinha-de-peixe. Nisto, campainham-me o pórtico, atendo, são três meninas dos escuteiros do bairro, compro uma rifa de quermesse a cada uma, pode ser que me saia um livro.

A Quinta-Feira-24 deu-me café, pão-com-manteiga, bacalhau-com-batatas – e um ladrilho de marmelada, como usava, em pobreza senescente, o antigo Theophilo Braga. Voguei tinta-em-papéis: formigas patinhando leite. Houve mansidão decorrente de esperar nada. Escutei, por assim dizer, vozes de um que se chamou Fernandes; e também as de: Lajos, Mortimore, Clough, Alfonso, Azaña (que de mais pouco rimou com España), Federico, Salinas & Osvaldos (Bayer, primeiro; Soriano, depois).

Meias de lã grossas, cinzentas, palhetadas de castanho-ferrugem; calças de feltro azul; camisola amarela, daquela amarelidão de canário cirrótico – assim me estatuei pela casa desertada. Ouvi Bach transposto por Liszt, se não erro. Gás fugaz, cada hora. Todavia, assisti à pré-aurora. Vinha das costas do mundo, lá dos bastidores orientais. Pressa nenhuma me atarantava. Curti versos muito juvenis de Garrett, pensei-os (a ele & aos versos dele) no antigo Teatro Avenida, depois deixei-me dessas considerações e adormeci sobre almofadões amolgados como esposas inertes.

Há batatas de duas qualidades, na esconsa despensa tão minh’amiga. E ainda: pacote & ½ de farinha-de-cacau; quatro cebolas (uma média, três grandes); seis cabeças-d’alho; um garrafão a ¾ de azeite; oito postas de bacalhau de calibre muito jeitoso; um frasco outrora de cevada solúvel agora pleno de cotovelos-de-macarrão; um boião outrora de caramelos-de-fruta agora meio de arroz-agulha; um saco para três quilos agora quilo & ½ de trinca-de-arroz para pombas & pardais; duas sopas pó-instantâneas: uma de rabo-de-boi, outra de creme-de-marisco; latas de atum (oito), cavalas (quatro), sardinhas (duas); uma barra de sabão azul-branco por estrear; um garrafão plástico de lixívia; jornais velhíssimos para forrar gavetas & sonhos molhados, uma galinha de faiança com o costado oco para guardar ovos, deixada cá pelos vizinhos prévios.

Quanto à despensa referida no parágrafo imediatamente anterior, digo ainda que a prateleira superior me vai servir à maravilha para empilhamento de livralhada há demasiado tempo inumada em caixões de papelão. Vou lá enfileirar: o A.J. Saraiva da inquisição/cristãos-novos; a antologia seiscentista do Amadeu Torres (dito Castro Gil); o joão mínimo do Garrett; o Fielding do tom jones; o Milton perdido-paradisíaco; o enoch do Tennyson; o calhamaço-bio do Keats (não confundir com o Yeats); todo o Simenon que-não-maigret; o carriego & a infâmia do Borges; a bíblia dos Alcoólicos Anónimos; o são-francisco do juvenil Steinbeck; as cartas do Musil; toda a dourada geração do 27 espanhol (toda, a que tenho – pois muita me falta); as sobrevalorizadas lengas-tretas do Hemingway; dois MachadosdAssis; os Fialhos fotocopiados; a primeira edição do pilatos de Nemésio; os Namoras ao lado dos Vergílios só para fazer rir o Pacheco; para optimizar espaço, ponho lá também as melhores traduções da Europa-América, que são nenhumas; por ser sítio de mercearias, vou lá deixar esquecida do finado Eduardo Prado Coelho, aquela do “mais um copo de rum” & coisital; e a caixa outrora para sapatos cheia de cassettes de jazz-na-madrugada q’antigamente a Antena 2 servia a granel acho que aos sábados.

Pelo que podeis ver, portanto, um gajo organiza-se. No entrementes, escrevo as quatro letras da palavra hoje – e sei que não é vocábulo que dure muito. Enquanto porém dura, estou ainda sem saber se aqueles 39 mortos do camião em Inglaterra eram búlgaros ou, afinal, chineses. Mete-se a dar o Sporting-Rosenborg para a Liga Europa, partida que vou seguindo em periférica sorrelfa.

Derredor, há sossego neste trecho de bairro onde (me de)moro. O outeiro é, felizmente, ventoso – sempre gostei muito dos caprichos eólicos da Madre-Natura. Gosto do uivo vivo dele nos elementos mais vibráteis: telhas, arames-da-roupa, antenas, lembranças. Para pena minha, não choveu. Ou: se choveu, não (cho)vi – ou porque dormia, ou porque reiterava, nos papéis sobre a mesa maior da casa. A paciência que a Morte é obrigada pelo império da Beleza.

A Beleza?  
Bach.
A Damrau (Diana).
A Mitchell (Joni).
A Flack (Roberta).
N. Yepes dando-se-nos Recuerdos de la Alhambra.
Satie, chovendo ou não.
Certos plainos eriçados de minério da Beira Baixa.
A penichense Nau dos Corvos tendo aos pés o Tempo soluto, a irremediável beleza dessa dissolução.
Certo céu nocturno acontecido de 11 para 12 de Maio de 1994, à face do Jardim-Parque, ouvindo-se gaiteiros transviados na álea que se dá ao Mondego.

A Beleza?  
Bach.
A Amália.
Magritte 8º casal René/Georgette com seu cão depois da guerra, segundo São Paulo Simão.
Antónios (Nobre; Gedeão; Osório; dos Santos d’Alfama; Pina, Manuel; Maria Lisboa; Pinho Vargas; Vivaldi).
Hopper dando-se-nos falcões noctívagos de bares terminais.
Camus, fazendo sol ou não.
Certos canaviais esquecidos de gente que penteiam os ventos transviados como gaiteiros em Maio, pela noite.
Visto de Cacilhas, o postal de Lisboa sem sequer um antropóide à vista, o sol sim, dando-no-lo para sempre até ontem.
Certo céu matino acontecido a 1 de Janeiro de 1974, no sopé suave da macia encosta a nordeste da minha PaterMaterCasa.

Acabou-se a vela amarela que me perfumava de amarela discrição a cabeceira. Namoro há tempos uma cor-de-veste-do-Senhor-dos-Passos à venda na Rua da Sofia, tenho de aforrar moedas para ela. A sul da cama, no chão de tacos polidos, dorme, alquebrada pela espinha, a manta única sob que uso dormir. Mínimos acontecimentos embora, são lances que me existem. Já a noite, de lá de fora, atirou aqui adentro seus panos. E eu sem vela para ela.

(Projecto, ainda assim, algum futuro: faço amanhã a barba. E lavo-me as partes, de caminho.)

Tirando este, deixo por ora em paz os papéis da mesa maior. Ou seja: recolho-me ao & no próprio recolhimento. É sarau em monolugar. Eu sei. Faz mal nenhum. Espero para amanhã uma carta, far-me-ia bem que chegasse. Chegando ela, partiria eu – rumo por algumas poucas horas a outros azimutes da Cidade. Se amanhã não, só segunda ou terça, se lá chegar(mos).

(São asiáticos, os 39 mortos no bojo do camião-frigorífico apresado no Reino Unido.)

Mais tesouros simples de hoje:

um rapaz inglês relatando os piores anos sofridos à mercê da psicose maníaco-depressiva que desde menino o limita;
uns cabrõezitos islâmico-coisos vandalizando Marselha, que já foi francesa;
visão de manuscritos do argentino Macedonio Fernández, a quem Borges chamava “Mestre”;
destroços verticais de Berlim na Primavera-Verão de 1945;
rumores da canalização-cagadeira do vizinho de cima (que desconheço);
e houve ainda outra instância talvez merecedora de parágrafo próprio:

Foi pela implantação definitiva da nova noite. A parede-sul do quarto fez-se mar vertical, o qual eu sobrevoava do céu-norte da cama. Norte ou zénite, sul ou nadir. Embarcações transparentes sulcavam aquele pélago em derrotas imponderáveis. Gaivotas zuniam como parturientes. Apostos a invisíveis altos de rocha, faróis pestanejavam em pura orfandade. Ventos cruzados vieram maremotar-me o roupeiro, espalhando-me a pouca roupa pela água perpendicular da parede, destroçando-me a cadeira & o psyché de espelho-triplo, afogando na garganta do retrato o susto da senhora minha Mãe. Só quando despertei me decidi a dar paz ao televisor, que a frio ardia para ninguém, órfã lareira, praia esquisita.

Readormeci – mas isto foi escrevendo-se na mesma. Outubro vela-me os sonhos, os mais recentes dentre os que me fazem assistir em perplexidade & desconcerto às contas que a mente pseudoadormecida faz de cabeça. Ainda de domingo para segunda-feira (fazendo conta acordada, de 20 para 21): em filme-mudo & não a cores, além-corpo, achei-me habitando uma fracção de prédio antigo, desses com porteira à maneira francesa sitos em bairros ainda não racimulticultuconfessionais, por assim dizer. Parece que a minha condição monetária não era má de todo. Jantava fora, tinha mais livros do que quando acordado, quatro fatos completos & uma dúzia de gravatas (duas de seda), sapatos clássicos à utente de academia de música. Na sala-de-jantar, encimando a lareira, uma belíssima reprodução (a preto-e-branco embora) de um quadro de Hopper, aquele da mulher sentada na cama olhando a claridade da incerteza. Nisto, o marido da porteira, homem pequenino de maravilhosas mãos de tudo benfeitoras, chamou-me sem para tal abrir a boca. Acorri – mas levitando, vêde bem à convocatória, só que não foi na portaria que dei por mim, dei por sim mas foi na periferia da zona estuária, ali onde tanto era a Figueira da Foz ao pé da estação ferroviária como poderia ser Danzig ou Gibraltar ou Espinho ou Cornualha: era à face de movediças águas, enfim & pronto. Então, outras (con)fusões floriram: a minha Tia Maria da Visitação oferecia peixes vivos capazes de respirar o ar das pessoas sem problema algum, a quem oferecia ela o pescado é que não sei; estrangeiros do Norte alouravam o ar do momento, só que nos sonhos os momentos contemporizam anos, décadas súbitas, eternidades paradas como lagos, ainda assim não tive tempo de apurar o que fosse.
Animais benévolos subiram-me o corpo. Era já terça-feira, não conservei a propriedade da casa com porteira & faz-tudo, só a mulher ocupa agora aquela cama estuária.  


                                     

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Canzoada Assaltante