3. Um Gajo Organiza-se
Quinta-feira, 24 de Outubro de 2019
Uma chamada Rosa com banca de
flores, velas votivas, pagelas de miraculadores, de configuração facial por
assim dizer macedónia, linhas de um vento de violentas violetas, por assim
dizer também. Essa Rosa? Viúva de um Ortega inencontrável até nos mais ébrios
arquivos desta quinta-feira. Rosa do Nascimento, cuja pobreza hereditária lhe
cravou antiguidade desde a hora mesma de nascida.
Em esta casa sita em este outeiro é
que congemino tal Rosa, viúva do desencontrado Ortega & órfã natural de um
Sebastião estivador & de uma Cecília operária dali da farinha-de-peixe.
Nisto, campainham-me o pórtico, atendo, são três meninas dos escuteiros do
bairro, compro uma rifa de quermesse a cada uma, pode ser que me saia um livro.
A Quinta-Feira-24 deu-me café,
pão-com-manteiga, bacalhau-com-batatas – e um ladrilho de marmelada, como
usava, em pobreza senescente, o antigo Theophilo Braga. Voguei tinta-em-papéis:
formigas patinhando leite. Houve mansidão decorrente de esperar nada. Escutei,
por assim dizer, vozes de um que se chamou Fernandes; e também as de: Lajos,
Mortimore, Clough, Alfonso, Azaña (que de mais pouco rimou com España),
Federico, Salinas & Osvaldos (Bayer, primeiro; Soriano, depois).
Meias de lã grossas, cinzentas,
palhetadas de castanho-ferrugem; calças de feltro azul; camisola amarela,
daquela amarelidão de canário cirrótico – assim me estatuei pela casa
desertada. Ouvi Bach transposto por Liszt, se não erro. Gás fugaz, cada hora.
Todavia, assisti à pré-aurora. Vinha das costas do mundo, lá dos bastidores
orientais. Pressa nenhuma me atarantava. Curti versos muito juvenis de Garrett,
pensei-os (a ele & aos versos dele) no antigo Teatro Avenida, depois
deixei-me dessas considerações e adormeci sobre almofadões amolgados como
esposas inertes.
Há batatas de duas qualidades, na
esconsa despensa tão minh’amiga. E ainda: pacote & ½ de farinha-de-cacau;
quatro cebolas (uma média, três grandes); seis cabeças-d’alho; um garrafão a ¾
de azeite; oito postas de bacalhau de calibre muito jeitoso; um frasco outrora
de cevada solúvel agora pleno de cotovelos-de-macarrão; um boião outrora de
caramelos-de-fruta agora meio de arroz-agulha; um saco para três quilos agora
quilo & ½ de trinca-de-arroz para pombas & pardais; duas sopas
pó-instantâneas: uma de rabo-de-boi, outra de creme-de-marisco; latas de atum
(oito), cavalas (quatro), sardinhas (duas); uma barra de sabão azul-branco por
estrear; um garrafão plástico de lixívia; jornais velhíssimos para forrar
gavetas & sonhos molhados, uma galinha de faiança com o costado oco para
guardar ovos, deixada cá pelos vizinhos prévios.
Quanto à despensa referida no
parágrafo imediatamente anterior, digo ainda que a prateleira superior me vai
servir à maravilha para empilhamento de livralhada há demasiado tempo inumada
em caixões de papelão. Vou lá enfileirar: o A.J. Saraiva da
inquisição/cristãos-novos; a antologia seiscentista do Amadeu Torres (dito
Castro Gil); o joão mínimo do Garrett; o Fielding do tom jones; o Milton
perdido-paradisíaco; o enoch do Tennyson; o calhamaço-bio do Keats (não
confundir com o Yeats); todo o Simenon que-não-maigret; o carriego & a
infâmia do Borges; a bíblia dos Alcoólicos Anónimos; o são-francisco do juvenil
Steinbeck; as cartas do Musil; toda a dourada geração do 27 espanhol (toda, a que tenho – pois muita me
falta); as sobrevalorizadas lengas-tretas do Hemingway; dois MachadosdAssis; os
Fialhos fotocopiados; a primeira edição do pilatos de Nemésio; os Namoras ao
lado dos Vergílios só para fazer rir o Pacheco; para optimizar espaço, ponho lá
também as melhores traduções da Europa-América, que são nenhumas; por ser sítio
de mercearias, vou lá deixar esquecida do finado Eduardo Prado Coelho, aquela
do “mais um copo de rum” &
coisital; e a caixa outrora para sapatos cheia de cassettes de jazz-na-madrugada
q’antigamente a Antena 2 servia a granel acho que aos sábados.
Pelo que podeis ver, portanto, um
gajo organiza-se. No entrementes, escrevo as quatro letras da palavra hoje – e sei que não é vocábulo que dure
muito. Enquanto porém dura, estou ainda sem saber se aqueles 39 mortos do
camião em Inglaterra eram búlgaros ou, afinal, chineses. Mete-se a dar o
Sporting-Rosenborg para a Liga Europa, partida que vou seguindo em periférica
sorrelfa.
Derredor, há sossego neste trecho
de bairro onde (me de)moro. O outeiro é, felizmente, ventoso – sempre gostei
muito dos caprichos eólicos da Madre-Natura. Gosto do uivo vivo dele nos
elementos mais vibráteis: telhas, arames-da-roupa, antenas, lembranças. Para
pena minha, não choveu. Ou: se choveu, não (cho)vi – ou porque dormia, ou
porque reiterava, nos papéis sobre a mesa maior da casa. A paciência que a
Morte é obrigada pelo império da Beleza.
A Beleza?
Bach.
A Damrau (Diana).
A Mitchell (Joni).
A Flack (Roberta).
N. Yepes dando-se-nos Recuerdos de la Alhambra.
Satie, chovendo ou não.
Certos plainos eriçados de minério
da Beira Baixa.
A penichense Nau dos Corvos tendo
aos pés o Tempo soluto, a irremediável beleza dessa dissolução.
Certo céu nocturno acontecido de 11
para 12 de Maio de 1994, à face do Jardim-Parque, ouvindo-se gaiteiros
transviados na álea que se dá ao Mondego.
A Beleza?
Bach.
A Amália.
Magritte 8º casal René/Georgette
com seu cão depois da guerra, segundo São Paulo Simão.
Antónios (Nobre; Gedeão; Osório;
dos Santos d’Alfama; Pina, Manuel; Maria Lisboa; Pinho Vargas; Vivaldi).
Hopper dando-se-nos falcões
noctívagos de bares terminais.
Camus, fazendo sol ou não.
Certos canaviais esquecidos de
gente que penteiam os ventos transviados como gaiteiros em Maio, pela noite.
Visto de Cacilhas, o postal de
Lisboa sem sequer um antropóide à vista, o sol sim, dando-no-lo para sempre até
ontem.
Certo céu matino acontecido a 1 de
Janeiro de 1974, no sopé suave da macia encosta a nordeste da minha
PaterMaterCasa.
Acabou-se a vela amarela que me
perfumava de amarela discrição a cabeceira. Namoro há tempos uma
cor-de-veste-do-Senhor-dos-Passos à venda na Rua da Sofia, tenho de aforrar
moedas para ela. A sul da cama, no chão de tacos polidos, dorme, alquebrada
pela espinha, a manta única sob que uso dormir. Mínimos acontecimentos embora,
são lances que me existem. Já a noite, de lá de fora, atirou aqui adentro seus
panos. E eu sem vela para ela.
(Projecto, ainda assim, algum futuro:
faço amanhã a barba. E lavo-me as partes, de caminho.)
Tirando este, deixo por ora em paz
os papéis da mesa maior. Ou seja: recolho-me ao & no próprio recolhimento.
É sarau em monolugar. Eu sei. Faz mal nenhum. Espero para amanhã uma carta,
far-me-ia bem que chegasse. Chegando ela, partiria eu – rumo por algumas poucas
horas a outros azimutes da Cidade. Se amanhã não, só segunda ou terça, se lá
chegar(mos).
(São asiáticos, os 39 mortos no
bojo do camião-frigorífico apresado no Reino Unido.)
Mais tesouros simples de hoje:
um rapaz inglês relatando os piores
anos sofridos à mercê da psicose maníaco-depressiva que desde menino o limita;
uns cabrõezitos islâmico-coisos
vandalizando Marselha, que já foi francesa;
visão de manuscritos do argentino
Macedonio Fernández, a quem Borges chamava “Mestre”;
destroços verticais de Berlim na
Primavera-Verão de 1945;
rumores da canalização-cagadeira do
vizinho de cima (que desconheço);
e houve ainda outra instância
talvez merecedora de parágrafo próprio:
Foi pela implantação definitiva da
nova noite. A parede-sul do quarto fez-se mar vertical, o qual eu sobrevoava do
céu-norte da cama. Norte ou zénite, sul ou nadir. Embarcações transparentes
sulcavam aquele pélago em derrotas imponderáveis. Gaivotas zuniam como parturientes.
Apostos a invisíveis altos de rocha, faróis pestanejavam em pura orfandade.
Ventos cruzados vieram maremotar-me o roupeiro, espalhando-me a pouca roupa
pela água perpendicular da parede, destroçando-me a cadeira & o psyché de
espelho-triplo, afogando na garganta do retrato o susto da senhora minha Mãe.
Só quando despertei me decidi a dar paz ao televisor, que a frio ardia para
ninguém, órfã lareira, praia esquisita.
Readormeci – mas isto foi
escrevendo-se na mesma. Outubro vela-me os sonhos, os mais recentes dentre os
que me fazem assistir em perplexidade & desconcerto às contas que a mente
pseudoadormecida faz de cabeça. Ainda de domingo para segunda-feira (fazendo
conta acordada, de 20 para 21): em filme-mudo & não a cores, além-corpo,
achei-me habitando uma fracção de prédio antigo, desses com porteira à maneira
francesa sitos em bairros ainda não racimulticultuconfessionais, por assim
dizer. Parece que a minha condição monetária não era má de todo. Jantava fora,
tinha mais livros do que quando acordado, quatro fatos completos & uma
dúzia de gravatas (duas de seda), sapatos clássicos à utente de academia de
música. Na sala-de-jantar, encimando a lareira, uma belíssima reprodução (a
preto-e-branco embora) de um quadro de Hopper, aquele da mulher sentada na cama
olhando a claridade da incerteza. Nisto, o marido da porteira, homem pequenino
de maravilhosas mãos de tudo benfeitoras, chamou-me sem para tal abrir a boca.
Acorri – mas levitando, vêde bem à convocatória, só que não foi na portaria que
dei por mim, dei por sim mas foi na periferia da zona estuária, ali onde tanto
era a Figueira da Foz ao pé da estação ferroviária como poderia ser Danzig ou
Gibraltar ou Espinho ou Cornualha: era à face de movediças águas, enfim &
pronto. Então, outras (con)fusões floriram: a minha Tia Maria da Visitação
oferecia peixes vivos capazes de respirar o ar das pessoas sem problema algum,
a quem oferecia ela o pescado é que não sei; estrangeiros do Norte alouravam o
ar do momento, só que nos sonhos os momentos contemporizam anos, décadas
súbitas, eternidades paradas como lagos, ainda assim não tive tempo de apurar o
que fosse.
Animais benévolos subiram-me o
corpo. Era já terça-feira, não conservei a propriedade da casa com porteira
& faz-tudo, só a mulher ocupa agora aquela cama estuária.
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