6. Esferovite & Bailes-Ateneus
a) Domingo, 27 de Outubro de 2019
Recebamos & assimilemos, um
pouco ainda, este Outubro não de todo desprovido de glória, esta estação tão
predatória quão as melhores.
Já
anteriores linhas deram de si nomes confundidos pela omnipotência dessa
lembrança elaborada & voluntariosa chamada esquecimento. É mas não é, segue
sendo no sido qualquer-coisa-1970.
Como ver em um Victor Hugo apenas
um velhote barbado de branco numa ilha do Canal.
Como achar na mais gélida madrugada
o cadáver etílico de um Edgar Corvo.
Esses dois na multidão espectral de
um gajo outonecido à sua própria custa, aqui, portador de uma carta recebida em
data, como todas, definitivamente provisória.
Como Jonita Miguel, rapariga
escapada à imensidão canadiana, chegada enfim ao barulho-das-luzes das maiores
metrópoles que a sul congeminam o império & a carnificina sistemática.
Em outra linha de outro novelo, o
galego Jacob Letício rumando a equivalente sul ele também, onde o aguardava a
futura dinastia.
Em obliquidade, um Donato Faldar
reporta-se a um celeiro pela época das colheitas, à noite os migrantes tocavam
rabeca à face do fogão-a-lenha enquanto as papas ferviam.
Estigo-o-Muito-Claro trepou às
faldas da encosta, susteve-se para repor oxigénio, bebeu água do fio que vinha
gelando do cume, nenhuma fêmea o turvava nem já nem jamais.
Estas acções invisíveis percutem
címbalos inauditos. A manhã espraia-se pelo caderno em feitoria sem mal nem
bem. A véspera, nada isenta de certa doçura inócua, produziu seu lote.
Massivo nevão sitia o lugarejo.
Dele debandou o grosso de homens em idade viril. Vivem longe, ficaram os velhos
e o padre. Até Cristo tem frio. Já pouco gado ferve nos curros. Agosto fica
longe como um país ao sol. É mais dura a pedra, mais afiada. No Verão, pela
festa, os moços deixaram os paióis plenos de lenha. Criança alguma celebra a
terra. A infância acabou como vela soprada. Não Vos deixeis emaranhar de
tristura. É como é, são o que são as coisas, uma capela não faz Deus. Soalhos
de castanho estendidos em melhor tempo. Na venda, latas guardam alimentos
prontos, ferramentas esperam mãos que tão-breve não virão, o olor é compósito:
naftalina, bacalhau, café, sabão, cera, vinho, plástico gretado. A rádio
murmura lisboas improváveis.
Vai para cinquenta nevões, houve
aqui nomes. Sei alguns. Alguns resistem como podem ao meu lápis, tinta por
vezes. António Pratas, António Simões de Abadia, José Leão, Joaquim Pratas,
Arnaldo Benje Caniço, Augusta Sério, Norberto Corvo (irmão de Edgar), Nina
Veríssimo, Nino Júlia Mário, José Maria Morais, Maria Francisco Morais, Rogério
Nunes, Jaime Velindro, Alberto Rebelo Ribeiro, Alcides Botelho, Augusto Quintas
Borges, Elói Carvalho Elias, Carlos Eduardo, António Lopes Lucas, Edite
Maricato, Teresa Pais, Victoria Douta, Fernanda Mota Américo, Augusta Catarino,
Anabela Jeremias.
Poucas ruas não diminuem o
labirinto. Aqui sitiei a minha casa terminal. Leio pelas veredas o sânscrito de
ramitos & galhos caídos no cascalho ralo. Aramaica literatura minha, fácil
afinal se se tiver em conta o que por ’í vai de bom vinho.
Tinha armas em casa, o velho João
Barbeiro Notel. Não era caçador, amava os animais, todos eles, era buda de nem
moscas matar. Herdou o rifle de seu avô Benedito; a caçadeira, de seu tio
Álvaro Diamantino. Nunca usou maldade. Esteve todavia a ponto de fazê-lo – mas
contra si mesmo, quando a mulher o deixou por um criado-da-lavoura, como é de
papel-selado nestes folhetins da camiliana vida. Ficou-lhe leal o mulato Assis.
De ambos, resta nada senão isto: um rodapé de livro nenhum, caderneta-alguma.
Freixos & choupos bordam
similares aléns a poente, para lá arfa a instância aromática do mar.
Nisto,
Branquinho da Fonseca na Nazaré. Raul Brandão no Baleal. Fialho de Almeida
pitoresco pela Galiza. Forjaz Sampaio também pela mulher traído. Um Zamora em
processo histórico (capa verde). Kurt Tucholsky & José Cid, ambos
hoje-ontem-amanhã. Camilo de Oliveira & João Gaspar Simões naquela Figueira
que não volta. Maria do Céu Guerra & João Perry nessa mesma dita, mas
depois que ora é já tão antes.
Bato
no escuro. Trago à claridade. Não leste, escrevesses.
Pessoas ardendo à face do país
local: inscrevo-as na caderneta-razão em paralelo às minhas mansas – tão mansas
– mentiritas. Das mãos: uma quer, outra pode. Chama-se Sânscrito – ou Freixo –
ou Arma – ou Pratas.
Recolhe-se a casa Daniel, esteve de
plantão nocturno em sua farmácia de serviço, toma café-com-leite com Alice, a
mulher, & Alicita, de ambos a Filha Querida & Tida. Deita-se no sofá da
sala, não liga o televisor, farto anda ele de tanto Sócrates, tanto futebol,
tanta ex-mulher morta à porrada, tanta brasuquice novelesca. Daniel é sardento,
é franzino e Barbosa Adamantino. Não chegou a estudar para enfermeiro, os
velhos não podiam prover Coimbra, propinas, pensão, sapatos, viagens, comer,
livros, uma bica por festa. Não lhes guarda rancor, longe disso. A coisa é o
que é, enfermeiros & chapéus ele há muitos, doutor Vasquinho & suas
tias no Zoológico, o que nos rimos, Daniel, sim, Alice, o que nos namorámos
domingueirazitamente.
Ai tanta voz, Filipe Costa! Foste a
escutar João Sebastião naquela noite de nortada a mais cuteleira? Foste. E
feliz foste & oratório & tomista & tudo. Ainda nem mínimo indício
te ameaçava depressão. Ainda não eras, de ti mesmo, menos uma hora – como os
Açores são.
Mishima & Salazar em 70/XX
foram a enterrar. Deram ambos na rádio. O Pai ouviu as novas em silêncio.
Consultou depois a velha oliveira, deserta então de pardais. Alimentou pombos,
gatos, cães, patos, voltou à oficina para desligar a luz, veio pelo pátio com
um belo sorriso pátrio no rosto remoçado, beijou Hélia, a mulher, e deitou-se
com um suspiro de menino, assim-seja.
Piedade & Ricardo, Luiza &
David – r/c-esq.º, Miranda & Soeiro, Pinto & Paula – r/c-d.tº: ninguém
no primeiro-esquerdo; Saul a sós no direito; Carlos Alberto na mansarda, a sós
ele também.
Eu
sei, eu sei: é de esferovite o meu nevão. Não deixa, por tal, de ser gracioso,
como graciosa era a entrada a raparigas nos bailes-ateneus. É muito, muito a
norte deste cá. Mas olhai, isto não é hermetismo, isto é como tudo conVosco,
nada de novo debaixo da neve, tudo tranquilo na frente central. Menos tolerável
seria se nos conhecêssemos, os segredos de uns contra outros. A privacidade
dá-nos ao menos a ilusão do tesouro próprio, íntimo, gananciosamente
intransmissível. Em cursiva escritura, não é menos assim. Daí que eu vença
etapas na Revelação Aldrabona, ah pois é. Nem de existir mesmo precisais, Vós.
A voz, sim. Essa sim. Ouvi-a Vós:
Ouvi a Voz. De novo a ouvi – mas
não era já fármaco-depressiva como em anos piores, esses em que Álvaro, Manuel
& Cesaltino naufragavam de pé uma & outra & ainda & sempre
& mais uma vez. Não, já não. A minha mudez garantia-a. Era comigo como
alguma coisa a tiracolo. Dela eu próprio me agasalhei. Agora que o conto, chove
bem no país local. Terei de desandar de casa por algumas horas, espero que
poucas. Levo comigo uma carta, talvez me faça cortar o cabelo, aleluias
hossanarei ao balcão de Zé Carlos & Fátima, lá onde o viaduto se volve, de
Camões-Calhabé, Norton e Matos. E, se não tinta, lápis então.
Contado como vou contar, pode
parecer mais rápido do que foi sendo – mas não tão brusco quão o ter-sido.
Vamos:
I
Aldina Jorge, filha de Dário dos
Anjos, rumou a norte depois de concluir com certidão o estágio industrial.
Esperava-a uma colocação naquela fábrica têxtil sita onde a serra sobe. Pôs-se
a ganhar a vida sem soluços.
Antes do primeiro Natal, integrou o
grupo de cavaquinhos da associação recreativa da vila. Nessa qualidade, viajou
a certames municipais de gastronomia & artesanato. Ocupando a casa pequena
a partir da qual só pinhais respiravam, dispôs do logradouro como quis, até
horta-jardim exerceu.
Tinha vizinhos a setenta metros, o
guarda-caça Ismael Rosas & sua mulher Angelina, costureira para fora.
Alguns homens rondaram-na, que ela repeliu com gentileza, primeiro, e assertiva
rispidez, depois.
Depois do segundo Natal, foi
promovida a encarregada-geral, não interessa ser ou não boato que se fizera
amásia do patrão fabril. Nesse mesmo Janeiro, comprou carro. Foi nele a buscar
Dário dos Anjos, cuja solidão, escreveram por carta a ’Dina, o vinha tornando
impermeável à vontade de viver.
Na casa dos pinhais, o pai remoçou
como salsa à chuva. Fez de pronto amizade com o guarda-caça, cuja Angelina não
descansou enquanto lhe não passajou meias & camisas que a longa viuvez
tornara lamentáveis & lamentosas.
O cancro fulminou Ismael em menos
de um semestre, pelo que no quarto Natal Cristo renasceu para levá-lo sem
inquérito preliminar nem julgamento. Três anos volvidos, Angelina & Dário
casaram-se pelo civil, as noites tornaram a ser azuis, ’Dina foi testemunha, a
outra testemunha foi um rapaz chamado Raul Fausto, sobrinho da noiva.
Nesse ano, foi campeão o Sporting
de Braga.
II
Venceslau Agostinho, patrono dos
árcades de Setúbal, foi bonecreiro dos oito aos noventa & dois anos, idade
com que lindamente se finou – sem uma nódoa moral & sem dois tostões por
junto. Enquanto árcade-mor, que o foi por quase meio-século, legou uma bem
acima de razoável obra publicada – própria como, supervista por si, alheia.
Autor, criou Lamentação de Hermes, Penélope
com Aquele de Que Ulisses Não Soube e Estela
do Taumaturgo, além de crestomatias menores.
Editor, mecenou Carpo de Hollanda (Visões Legendárias), Melro Pasmaceno (Sonetos Autocratas Após Rebelião do Cometa),
Dorivaldo Rionomar (Lusitânia Invencível)
e Rosalina Guevara (Coração Armilar dos
Trópicos).
Fora de versos e de bonecos, pode
ser dito pouco mais de sua passagem pelo terreno caos. Se a alguém amou, nada
consta em litera’ ou oratura. Se foi odiado, o mesmo. À uma, compareceu ao
funeral uma meia-dúzia dos seus detractores académicos, vulgo Sibaritas
Arrábidos, para quem o culto do soneto é a demonstração mais cabal de que
Darwin era o vero AntiCristo. À outra, a viúva de Venceslau foi entrevista a
rir-se mais do que uma vez durante o velório, não a sorrir-se condoída mas a
rir-se-rir-se – todavia isso foi antes de saber que a junta do defunto não
chegava a dois tostões. Terceiro, a amante não fugiu, antes deu de si a línguas
& dentuças – mas dela radiou a invencível simetria de suas passadas, assim
como o escândalo de ser bonita, não linda, não bela, não formosa, não
toda-chicha, bonita sim: como as mãos lavadas, ou o cão esperando o dono
crepuscular, ou uma manhã sem amanhã.
Sepultado Agostinho, fomo-nos dali
a beber vinho.
III
Guadalupe da Paz Moreira,
recebedora de fodas em pensões de quartos-à-meia-hora, cuidou da mãe velhinha
até a doentinha se deslastrar deste morredouro de putas sem resposta ao motivo
de por-que-raio-se-nasce.
Pé-de-meia da falecida empochado,
retirou-se Guadalupe da tauromaquia de rapidinhas, asilando-se sem sobressaltos
em uma vida litoral cuja decência era à prova de espanhóis endinheirados. Não
vegetou, porém. Fez dois cursos profissionalizantes do instituto-d’emprego, um
de encadernação, outro de restauração de dourados. Se fodeu alguma coisita,
fê-lo ou por desfastio ou para não lhe perder a mão, que isto dá muita volta
& o amailo nunca se sabe.
Não praticou eremitério: travou
conhecimento com raparigas da sua geração, divorciadas quase todas, a quem
acompanhou em hílares bailes-das-velhas.
Faustino Miguel Amaral,
acordeonista-residente de um de tais antros onde a geriatria ainda se dá a
espasmos pasodoblantes, pareceu-lhe o que era: simpático, simples & caseiro
como a brisa nos cortinados, parceiro sem ardis & remediado de provisão.
Juntaram-se.
Foi boa ideia. Guadalupe
reconhecia, dele, a dedicação aos valores ditos pilares: casa, trabalho,
parceria. Serralheiro de dia de segunda a sábado, músico às quartas &
domingos (matinées) e noites de sexta
& sábado, Faustino dava tudo e pedia muito pouco. Era a verdadeira &
boa anti-história. Fazendo contas, ela arranjou emprego numa lavandaria,
pondo-se de lado o que ele ganhava com o acordeão + o salário dela, vivendo o
dia-a-dia com o pré de serralheiro. Deram entrada para um T1 perto da
Misericórdia. Sem filhos, foram afagando cão agora, gato depois, por aí.
Quando Armando, irmão dele, morreu
de leucemia, ela quis ir, mesmo sem aliança, ao funeral. A ex-mulher estava lá
– mas não houve sarrafusca nem nada que se parecesse, há sempre uma altura em
que para-quê-o-quê, não é verdade?
Um dos cães de Guadalupe &
Faustino era tratado em casa por Mondego – mas no Bairro da Misericórdia era
por Xerife que se dava. Morreu de hiperdiabetes & mais cego do que o Ray Charles,
o Stevie Wonder, a Helen Keller & o nosso poeta Castilho juntos – a mania
do pessoal era dar-lhe do açúcar das bicas no Café Social, ali entre a
Misericórdia e o Grémio.
Guadalupe, alertada por uma
enfermeira do Asilo, ralhava com o maralhal: – Não dêem lambarices ao meu Mondego que ele tem muito que comer em casa.
O maralhal retorquia-lhe: – Mondego? Mas
q’ais Mondego? A gente damos ó Xerife, mai’ nada.
O Mondego nunca conheceu cadela mas
o Xerife apôs-se a muitas, pelo que há descendência com fartura por aquela
vila-mar: netinhos, por assim dizer, de Faustino & Guadalupe. A vida ilude
repetir-se nesses cachorros desmemoriados que nem ao açúcar ligam, agora que,
felizmente, é mais corrente a noção de que os canídeos não metabolizam a
doçura.
Já só falta falar do pai do
Mondego-Xerife. Era Sidónio. Crismaram-no assim por ele mendigar a ração de
cada dia na sopa-dos-pobres da Misericórdia. O Sidónio uivava como um lobo
perdido sempre que lhe tocavam perto uma gaita-de-beiços. Infra-sons, ou coisa
que os valha, no espectro auditivo dele, não sabemos. Sabemos porém que tal
cena foi durante muitos anos um dos mais seguros êxitos de rua naquele pacato
bairro a que Faustino & Guadalupe, em boa-hora, nos levaram.
A Quarta-Feira dá de si o que lhe
apetece. A jornada, que foi particularmente pluvial, andou daqui para acolá –
mas eu, eu não. Eu consumi algumas pastilhas de resino (de extracto seco de
tomilho) a ver se enganava a tosse, estes arrancos cavernosos que me entontecem
até ao escarro forçado, oblíquo, agónico. Mais umas horitas vãs, menos uma
folha calendária, o dínamo-motriz não perde centelha, de estrelas a descomunal
arcada é hoje opaca, glaucomou a massa nublada, altas águas por cima, gelo por
baixo nós, disputam algures na China o World
Open de snooker, ontem ri-me com
gosto, recuperei da net um colóquio
sobre o grande Cortázar, o grande Carlos Fuentes era um dos da mesa mas foi
Aurora Bernárdez quem fez sorrir o mundo, contou ela que o Julio (então) dela
não falhava o vestir do seu robe-de-chambre
verde, invariavelmente o fazia, o que Aurora disse transformá-lo, dadas a
cor da vestimenta & a altura do marido, numa espécie de “mesa-de-bilhar na vertical”, muito me
ri, decerto também se riria El Gran
Cronopio.
É amanhã que saio, assim parece. É
por obrigação, não por devoção lírica. Alguma coisa aproveitarei, dando-me o
corpo para tanto. Uma parte da geografia, por imperativo da função devida, é
certa: sair do autocarro ali ao Palácio da Justiça, depois Correios perto da
antiga Auto-Industrial, Bota-Abaixo depois, depois logo se vê. O certo é haver
sempre fauna digna de linha escrita, não há que perdê-la. Ou como. Os percursos
são sempre generosos, o olhar é remunerado em géneros mais especiosos. Todavia,
não os antecipo. Fazendo-se idioma, entesouro-os avaramente no papel à mão. E
não me entedia tal (aparente) repetição? Não. Nada. Pelo contrário, a revisita
segura-me identidade, essoutro nome de pertença.
Sem escrita embora, a senhora minha
Mãe fazia o mesmo. Ela chamava-lhe “jogos”.
Observava, retinha, cotejava, especulava: rostos, roupas, sapatos, gestos.
Casas – como eram. O que entretanto aqui construíram, o que aluíram. Certo
trecho do Mondego (nome de rio, nome de cão), alturas da extinta Alta (crime
dos fascistas no poder, décadas de 40/XX e ss.), nomes de fantasmas que ela me
repetia para eu ser livro (&livre) um dia. Agora, portanto.
Em relance à minha espiral, convoco
certa noite do século passado em Madrid, voguei pelas ruas apinhadas,
agradou-me la movida, como eles
chamam ao corrupio a que se dão em ócio ambulatório, acho que apresentavam Lope
de Veja em um teatro de bela fronte, disso não estou seguro já, dei essas
voltas sem papel nem lápis, imperdoável mas pronto, lá vai; ou outra em
Sevilha, seis anos antes da de Madrid, o calor à meia-noite era de uma pujança
alucinante, como alucinante era o fêmeo gado pass(e)ante,
nunca-jamais-em-tempo-algum da minha vida vi tanta senhora comestível em tão
pouco tempo; outra noite, aquela que em Braga ajanelei, seis anos, não, cinco,
cinco anos antes dessa de Braga, era Janeiro, padeci sucessivas noites com seus
dias de uma infecção bucal muito imperiosa, fartei-me de encomendar a mudez
forçada ao diabo que ma carregara – pela boca, precisamente; sete anos antes de
tal abcesso, no decurso do Mundial da Argentina (sob ditadura ferocíssima
então, deveriam mas era ter boicotado aquela merda), jantei ao ar-livre, a
comida era arroz-de-vaca com ervilhas, tépida era a vida & tépida a
respiração, pois que perto oravam rosas ao luar que enfarinhava de prata o céu
dos senhores meus Pais. Volto a esta, a que amanhã chamarei ontem. Dínamo,
espiral, roda, (v)idas & vi(n)das.
Recortes, por colar, ui, são
matéria que me não falta, nunca me faltou, sem esforço prevejo que me não
faltarão.
Baptismo de um menino filho de
casal amigo, perfume da comida feita pelas senhoras avoengas, indiscutível
majestade dinástica daquela gente não-abastada mas ricamente provida de obra,
foi em aldeia dormente que o sol tornou volitiva de festa & volante de ouro
humílimo, boa lembrança, excelente recorte.
Casamento de P. com P.,
amicíssimos, ele já morreu, foi por acaso que encontrei a viúva no exacto 33.º
aniversário esponsal (um Agosto), lágrimas nos quatro olhos, andemos.
Funeral de Luís M.V.M. (outro
Agosto, outro desgosto), música dele tocada para ele pelos alunos dele, sol
fortíssimo, intolerável mas tolerado, foi naquela cidadezinha que as cheias de
outros invernos tomavam sem promessa de recuo.
Divórcio de J./C., esta é das
presentes evocações (ou recortes) a
mais antiga, houve amargura que transcendeu os desavindos, comentou-se muito o
des-enlace, à boca-mordida se disse mal dele, à boca dita se mordeu nela.
Posso (e aliás pretendo) estar
nisto a vida toda. Quando digo nisto,
digo isto:
Bordadura arbórea por caminho que
desço se vou á zona perfumada pela tenra Carolina J.;
Sapatos encarnados de Rogério Q.,
inesperada cor que esmifrou falas a ponto de murmurações em pleno velório,
delicioso escândalozinho de lugarejo;
Polícia reformado que mulher &
filha rejeitaram por causa de muitos vinhos & bebidas-finas, para além de
pormenores onerosos de retenção-na-fonte, vendo-se ora, o ex-polícia, em
aparato de sem-abrigo;
Baldio próximo da Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, nele armou tenda um dos circos mais pobres do mundo de circa 1970 d.C., foi das primeiras &
mais obstinadas tristuras que senti, ainda sinto, hei-de ressentir sempre, não
hei como escoá-la;
Em remota aldeia de montanha,
libertação de um gato que tinham enjaulado a pretexto de tinha, mal de pele que aquela gente de rarefeito juízo julgava
marca demoníaca, libertação que me fez feliz, uma vez na vida.
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