2. Jus aos Nomes
a) Quarta-feira, 23 de Outubro de 2019
Instantes há em que a ilusão da
a-temporalidade me toma conta da casa, planando no ar restrito da respiração,
de móvel a móvel, a imaginária imobilidade. Mal, não faz – nem bem. Um marulhar
de segmentos vocabulares, pedacitos de talvez-versos, música intransmissível a
outros humanos – que aliás nem há. É todavia de autoritária natura que as horas
recuperem terrenos que aliás nem houveram (por) perdido. Os nomes voltam, as
gaiolas transparentes da mente rangem, referências impõem sua efectividade: a
panela com sopa da véspera, o café velho, o pão já não muito novo, o pedaço de
toucinho ganhando amarelidão. E a casa pronta para mais instantes no tempo que,
vindo mais, se faz menos sem remédio.
No Reino Unido, trinta e nove
clandestinos encontrados mortos num camião que dizem provindo da Bulgária: o
alegado sonho ocidental, encontraram-no de olhos fechados. Hordas de gente
demandando o graal capitalista da velha Ilha. Esquerda & Direita atiram-se
sacadas de estrume aos respectivos focinhos. Bocejo ao meio-dia & picos.
Fiz café fresco, torrei umas lâminas de pão, a luz da quarta-feira é
adoradamente macilenta, faz bem consultar os longes salpicados de brinquedos:
casitas, vias rurais, mansidão de mula daquela ponte, observatório, mata
nacional, curro hipercomercial, bandidagem obsoleta, autocarros às moscas,
moscas de autocarro. Aqui, sala, cozinha.
Sala, cozinha, quarto, retrete,
banheira, porta-janela de vidro alto. Mas sobre a mesa vivem, de tantos mortos,
obras vivas. Papéis que as tipografias mancharam, prensaram, deram à revoada.
Sei-os tesouros, derradeiros como primeiros redutos do que verdadeiramente me
interessa, me cativa, me prende & me liber(t)a. Dois rapazes, por exemplo:
um Jorge, Adolfo outro. Ou Florencio (sem circunflexo, este), a sós. Orlando,
Rosado. Aurora, Magda. Monge, Raimundo. Não esperam, não vão, não pedem de
comer, nada pedem. Oferecem, majestáticos, quanto têm. Recolho, de todos,
quantas datas os enformam. Dou-me ao que me dão – e, nisto, nisso, cada diz
faz-se gomo da Incontável Laranja, fruto de si mesma, Mãe & Órfã.
Agora mas há oito dias: a meio da
tarde, lá em baixo, sim, na casa-de-pasto de Lurdes & Aristides, o meu
lápis dando-se a –
b) Quarta-feira, 16 de Outubro de 2019
Estas coisas são, ou foram, do
tempo em que o Tempo era de quatro estações ao ano, quatro estações certinhas,
vindas & idas à hora em ponto, quatro estações maiúsculas,
Primavera-Verão-Outono-Inverno, dava até para acertar o relógio por elas, e
agora que o conto já se sabe que não, agora só há dois tempos, só duas estações
– calor à bruta e/ou inundações instantâneas como explosões de mercúrio – e às
vezes na mesma semana, sol no Natal até às onze da noite & geada
ubíqu’aérea em pleno Agosto, é triste, é quase cómico.
Fazia mais ou menos um ano que os
manos Crispim tinham daqui debandado, dois coelhos na mesma cartola, fugiam à
tropa colonial & refaziam a vida com trabalho duro mas não mal pago como
cá, Germano Crispim & Serafim Crispim, filhos ambos do mesmo pai mas de
diversas consecutivas mães, o pai-Crispim era Arnaldo, a mãe de Germano era
Odette com dois tês, a mãe de Serafim era Celeste Aurora, boas senhoras ambas,
não há mal que delas dizer, já ambas lá estão, assim como o que a ambas fez mijar
ossos, por assim dizer.
E se agora o conto, é porque mo
pede a vida, está claro que a minha vida, a minha vida-moeda de bífida face: a
ainda restante & a já dissipada (pouco tudo & muito nada), esta que
levo e me traz do sepulcro ao berço sem altar pelo meio, não porque seja
importante por aí além mas porque sim, que é razão bastante.
Já o plantel a que pertenci tem
mortos, misturam-se-me porém incertezas com notícias seguras, respira ou não
Hilário?, talvez que sim Manaca, o melhor talvez seja enumera-los em caderneta
não-dicotómica, Matine logo a seguir, Juvenal, Castro, Leitão e Quaresma, Vaz
também, Nascimento também, Eliseu, Raul, Horácio e Vaqueiro, é muito triste
reiterar por escrito tantos cromos já esmaecidos, amarelecidos, tantos sorrisos
invadidos pela cola-de-farinha-cuspida, por escrito a morte parece – e é – mais
mortífera, sempre posso ir enfim à rede netcoisa saber mais, mas se calhar não,
fico-me com o que prefiro não saber, saber é por vezes uma agonia, aí
ond’&quando finalmente sabemos alguma coisa é então que nos vemos descendo
já para cromo, para lavado morto, morto de afinal memória bem menos infinita do
que o afinal dom esquecimento chamado, mas digo: de tantos outros a cujo escol
pertenci, pouco-nada sei, esfumaram-se na bruma nem peso levando consigo través
a brisa, digo: Isidro, Capitão-Mor, Sambinha, Quinito, Calado, Ernesto, Vala,
Tomás, Belo, Marques, Bento, Mota, Conhé, Mourinho, Móia.
Agora que o escrevo, moro com os
nomes acima denunciados e com os que irei delatando, ou relatando, ou atando,
ou hei-de contar (contar em número e contar de narração), como por exemplo
Rebelo, o canhoto rebelo pai de tanta meninada, valente Rebelo guardador de
redes e de linhas que não estas, antes fossem. E dele a Castanho e a Nau, um brevíssimo
sopro.
O que de tudo isto é verdade
embrulhada em prosa, enfim, não guardo expectativa de alheia confirmação,
leitura sequer.
É verdade irem-me rareando os
instantes contentes, euforia é mata-ratos que não fumo há trinta & três
anos, todavia ontem vinguei-me um bocadito, o caso & a ocasião foram que de
repente me apareceram ninguém menos que Pavão e Guerreiro, quase logo a seguir
deram-me à costa Damião e Trindade, que vingou na banca até administrador,
sacana bonito & de crisóstoma lábia. Pavão vem recuperando como pode de
duas mazelas cardíacas, aquilo da neta e do genro mortos em desastre de carro
abalou-o fundamente, a filha deu em doida de falar sozinha pela rua sem
telemóvel nem nada. Guerreiro faz jus ao nome, tem dentadura até aos olhos, rebenta
de saúde camoesa o ladrão, não há bem que se lhe não achegue desde aquele
bilhete inteiro da lotaria do Menino-Jesus que lhe deu & rendeu
seicentos-contos-seiscentos há tanto ano. Damião, o belo ruivo descoroçoador de
tanta cona vadia, mantém-se dandy
& tafula & correctíssimo portador de um atavio mata-quem-se-mexa.
Quanto a mim?
Quanto a mim, não me mantenho por
Voltaire ou Casanova como aqueles burgueses notários do Tiago Belga, tenho sim
mas é em pontas, derivo no conto disto, faço por não ser nada comigo, os
senhores fazei favor de cuspir para o lado assobiando para o outro.
Escrevo “todavia ontem” a propósito
de Damião, Trindade, Pavão & Guerreiro – mas talvez minta sem ser por má-fé
de contador, quando digo ontem,
enfim, pode ser que há cinquenta anos tudo me apareça ontem (e Outubro também, ou tudo), não digo pareça, digo apareça.
Pode fisicamente a memória
atraiçoar-me, que nem por isso lhe serei infiel: refiro-me a Óscar, o alto
Óscar (que confundo, sem cacofonia voluntária, com Alhinho) perpetuamente
envergado de camisa branca sobre calça preta à maneira do arquetípico
criado-de-mesa daquele tempo em que o Tempo era de
quatro-estações-certinhas-quatro. Óscar, o elevado Óscar, vencedor da mais crua
pobreza, fez-se médico ninguém sabe como nem à custa de quê, o grande Óscar dos
passes milimétricos à beira do não-pode-ser, sei lá, cá não sei, o belo Óscar
que afinal matou a mulher & a filha naquela quarta-feira em que a Mishima
apareceu a Senhora-das-Dores. Ou Reis, história parecida, negra também.
Sim, o Reis, aquele de bigode
nigérrimo agrafado à cara pequenina de rato, não, que digo que tão maldigo?,
não Reis mas sim o ruivo Romeu, uxoricida ele também, só que magistério,
perdão, ministério-público nenhum houve por a lei & por a grei prova-lo à saciedade
& à sociedade para lá de qualquer dúvida razoável.
Estes nomes rangem como móveis
avoengos tanto na minha casa escurecida como na minha causa escura. Sim:
Fraguito-Barros-Toninho-Arménio-Melo-Raul-Baltazar-Bastos-Laranjeira-Botelho-Manoel-Seminário-Nelson-todos-mais-Peres
I & Peres II, todos operários da cerâmica, da bolacha, da cerveja, da
metalurgia, da carne, dos camiões, sim, vinde todos & deixai-vos ficar um
pouco, fervi de fresco uma cafeteira alta, torrei pão-de-centeio, a manteiga é
como a daquele soneto do Correia Garção, “O
louro chá no bule fumegando”, sim, estes nomes que rangem como ossos em
petrificação de leite, toco a ilharga de uma sensação, recebo de imediato outra
galeria onomástica, fantástica, (fant)asmática, outra caderneta cruel:
Martinho-o-das-bexigas-doidas, Cavém-o-da-mulher-preta-que-no-Algarve-viu-a-Virgem-encarrapitada-num-galo-de-Barcelos,
Carvalho-o-que-se-cativou-de-Vítor,
Bento-o-que-sofria-de-lembranças-alheias-como-um-repetidor-de- sonhos, Fidalgo-o-que-era-verd’azul-encarnado-no-campo-roxo-da-heráldica-matinal,
Delgado-o-que-estudou-para-padre-mas-acabou-escrivão-da-puridade,
Faria-o-que-recitava-na-penumbra-da-caserna-versos-puros-como-cisnes-de-cristal-que-o-segundo-furriel-Dinis-dizia-serem-de-Goethe-nisto-sendo-contrariado-pelo-cabo-miliciano-Tomé-berrando-este-que-eram-de-Rilke-mas-nem-outro-deram-na-mosca-posto-que-os-versos-cisn’alinos-eram-de-Faria-ele-mesmo.
Acabo por sorrir sem espelho (nem
boca) à vista: meti-me a isto, não me menti isto, sim: os nomes já brilham, os
dos vivos nem tanto, os dos mortos muito mais, não é hoje o dia interessante,
sê-lo-á o que & quanto este lápis, tinta por vezes, puder. Olhai Camolas
achegando-se à praceta, ou Nunes, recém-viúvo, dado à Igreja; e Eduardo,
sardinheiro & jovial como um lírio todo sal-de-prata; ou Brito, uma vez na
vida, dando de comer ao esfarrapado Isaías.
Podem os
pseudofelizes acautelarem-se o futuro ontem. Coitados. Dependem menos da
poupança-reforma do que do subo-ou-não-m’-atrevo-? ante a figueira da infância
mais baldia (ou bal-de-nuit, mas não
quero ir por ’í).
Idílio
disse-me gostar muito da terra que mais ajude um homem a dar fruto. Já Carlos,
esse poupou-se a demagogias, casou-se cedo com uma fortuna de mamas
ambulatórias. Sim: abri a caderneta – ei-la colando-me de reverso-rosto ao que
já-fui-antes-de-morto.
Morto não é
ainda Peres? I ou II, se sim? Nem Malta. Nem Jorge Melhor. A minha esperança
terá sido depois de tanta falta-de-comparência-ao-jogo, digo: fui ter com o
homem, boatardei-o, disse-lhe – O senhor
não conte mais comigo a partir de Outubro, eu vou-me em vindo as primeiras
chuvas.
E assim
foi, e fui, deveras. Vitalino, que do balcão mal disfarçava estar
ouvindo-me-nos, relatou depois – Aquele
gajo pode ser doido, mas não esgana nem engana o parceiro.
Isto foi no
British Bar, o das putas-de-luxo geridas por um tal Cardoso que era de Setúbal.
Sim: já
resma a esmo se me vem fazendo o conto. Nem em meu auto-infligido desamparo me
creria – ou quereria – outra coisa. Então, Moinhos(-o-Verde, o-da-Serra,
o-da-Perna-Partida-em-Três-Sítios) diz-me lá das profunduras que ninguém sitia
– Tu seguras essa caneca de faiança forte
munida de chá-preto abelhado a mel-amargo, tu inquietas o nome, os nomes, pões
a ferver a caderneta.
A um canto,
Asdrúbal ri-se com as grandes mãos quadradas abertas no ar rarefeito da
literatura – C’um carago,
habi-ós-mas-era-de-bos-ber-a-dar-serbentia-na-zobras-ma-za-bergar-a-mola-mêma-sério.
O(b)ra isto
é o(b)ra, Asdrúbal: Isidoro ou Pires pela esquerda?, Lobo ao centro, Castanho à
baliza, alguém Moura ou Bonacho ou Nelo ou China ou Carvalho (I ou dois, como
os Peres & os Crispins), sim, ainda onde é quieto até o de-vagar.
Sim,
esses-estes nomes ladrando à chuva como cães-d’água. Teimosos na memória como
quadros de pintores mortos pela fome chamada realidade, aqui no vagar da
espécie, da especiosa humanidade capaz de caderneta.
Também pode
ser que alguma mentira haja nisto: digo: caderneta: digo: nomes que ser já não
possam senão por essa funda ingénua maravilhosa mentira chamada literatura. E então? Então, Valdemar.
Arménio, então. Restritos paraísos de filhos-sós, órfãos à nascença, órfãos à
hora crematória. Desconhecer a multidão silenciosa que com a literatura
partilha cemitério & lista telefónica? Eu não.
Sair daqui?
Sair daqui,
nada.
Sair daqui
nada – outra, última, vez.
Falta-me
para sempre o n.º 114, esqueci o nome, era do Boavista.
2 comentários:
Muito bom
● eu era mais Rebuçados Victória
Bem bons, bem bons.
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