31/12/2018
30/12/2018
25/12/2018
24/12/2018
23/12/2018
21/12/2018
20/12/2018
18/12/2018
17/12/2018
07/12/2018
04/12/2018
22/11/2018
05/11/2018
21/10/2018
20/10/2018
Quatro poemas de BASHÔ traduzidos por JORGE DE SENA
BASHÔ (Japão, 1644-1694)
“Amigos, adeus:
tal como os gansos selvagens
perdidos nas nuvens.”
“Um branco narciso
e um branco biombo se reflectem
na sala quieta.”
“Bendito este vale
onde o vento suave cheira
vagamente a neve.”
“Recordação de Edo:
este vento frio e fresco
que guardo no leque.”
19/10/2018
18/10/2018
17/10/2018
16/10/2018
14/10/2018
11/10/2018
28/09/2018
Outro soneto de sexta-feira, 28 de Setembro de 2018
Inscreve mansidão por ruas
breves
O cavalheiro firme & calado.
Sustenta demoradamente aves
E, do que sobra, obra ele dá ao dia.
Domingos há queimado sem remédio,
Conhece o carnaval mais solitário.
Em sono, reconquista as origens
E da morte se serve imitação.
Mansarda com vasos de sardinheiras,
Latadas de cachos gordos suspensos,
Cães serenos guardando a própria sombra:
O cavalheiro é grato à conquista
De horas sem mensagem nem destino
– E assim tem sido sempre de menino.
O cavalheiro firme & calado.
Sustenta demoradamente aves
E, do que sobra, obra ele dá ao dia.
Domingos há queimado sem remédio,
Conhece o carnaval mais solitário.
Em sono, reconquista as origens
E da morte se serve imitação.
Mansarda com vasos de sardinheiras,
Latadas de cachos gordos suspensos,
Cães serenos guardando a própria sombra:
O cavalheiro é grato à conquista
De horas sem mensagem nem destino
– E assim tem sido sempre de menino.
Soneto de sexta-feira, 28 de Setembro de 2018
Tantos anos volvidos – plena
bruma
Adoça amarga a interioridade
Do ser que vai estando na
passagem
À bolina de dias repensados.
Já inclinada mais está a
ladeira
Que outrora subiu arborizada.
Panos de relva mui estendem
sombra
De que aves invisíveis tomam
posse.
Silêncios mores estend’ em
lençol o céu
Que a névoa sequestrou por
estas horas.
Laurindo chega à obra, pousa
o saco,
Confere em torno d’ontem os
despojos.
Em vinte anos, tudo
resolvido:
Nem sonetos, nem doce
amargura.
22/09/2018
19/09/2018
Um soneto de segunda-feira, 26 de Julho de 2010
Nem tudo o que vem
do coração está certo,
nem tudo errado é quão
coração parece.
Ele há coisas que a
razão reconhece,
mais longe são umas
& outras mais perto.
A gente assim faz:
vive. Passam as viaturas,
derredor há sol que
esbraseia peles.
Queima-as à boa gente
& a outra mais reles,
mas todas de Deus são
as criaturas.
O mais que não digo,
vem só da verdade,
que ela é ser a
mesma vontade
de menos ser que
viver, está certo, está certo.
Nem tudo é erro,
nem a razão conhece
o que o coração quer
e apetece:
está perto, é
longe; está longe, é perto.
14/09/2018
13/09/2018
11/09/2018
07/09/2018
05/09/2018
03/09/2018
30/08/2018
28/08/2018
Duas sentenças judiciosas
Recentemente, chegaram-me ao saber duas sentenças judiciosas.
Da primeira, desconheço o autor.
Da segunda, sei que foi proferida pelo grande contista britânico H:H: Munro (pseud. Saki, (18 December 1870 – 14 November 1916)).
1 - Se partires um braço, não te faltará quem queira assinar melhoras no gesso.
Se sofreres de depressão, todos fugirão de ti.
2- Acho os Americanos grotescos quando tentam falar francês. Felizmente, nunca tentam falar inglês.
22/08/2018
“Nem a luz da música tive” - Coimbra, 14 de Agosto de 2018
Eduardo V. N., 64 anos, no Largo do Pôço, Coimbra
“Nem a luz da música
tive”
–
diz o cego Eduardo,
a
quem o pai não quis oferecer,
menino,
um
acordeão-de-pedir.
19/08/2018
18/08/2018
14/08/2018
09/08/2018
07/08/2018
Soneto pela finimanhã de Terça-feira, 31 de Julho de 2018
O
harmonioso moço semblante da menina vi,
era
em um autocarro que ao Calhabé nos levava.
Humana
síntese de gladíolo & codorniz senti
naquel’
aparato feminil que, ’li, se m’apresentava.
Era
de curtas roupas, quási porém longas pernas:
mas
não dessas que se encontra pelas tabernas,
isso
não, antes sim por bibliotecas de honesto estudo
onde
a vergonha é nada & a honra é tudo.
Senti-me
de pronto o mais juvenal senil,
que,
enfim, juvenil não, tal me há muito passou.
Fiz
de discreto mirone, colector de vãos sonetos.
Pode
ser que um dia, à face de meus netos,
à
lareira lhes conte daquela que viajou
em
noviço julho, ante meu extinto abril.
05/08/2018
02/08/2018
25/07/2018
14/07/2018
13/07/2018
05/07/2018
ADEUS, PAPEL - Rosário Breve n.º 562 e ÚLTIMO EM PAPEL in O RIBATEJO de um destes dias de Julho de 2018 - www.oribatejo.pt
Adeus, papel
Na
passada segunda-feira, 2 de Julho de 2018, o telefonema de um Amigo
anoiteceu-me a manhã. Reservo-me por enquanto o entristecedor motivo. Narro-Vos,
todavia, o que se seguiu a tal.
Saí,
a sós como toda a vida, às minhas vielas natais. Escolhi uma esplanada discreta
para acampar a tristura portátil que me é própria. Perto, num largo
embolorecido pelos séculos perdidos, soava o realejo electrónico de um cego
esmoler tão pobre, mas tão pobre, que nem macaco tinha. No chão, a escudela de
baquelite acolhia dezassete centavos, perdão, cêntimos. Demasiado porosa a
estas merencórias & lacrimosas realidades, a matéria virtual da mente azedou-se-me
mais ainda um bocadito. Pior: pus-me a reler Camões. Não reli muito: fechei
depressa o canhenho de sonetos desse glorioso desgraçado. Viver atrapalhava-me
o existir. Pus-me a assobiar baixinho. Foi então que, a páginas tantas só agora
aqui escritas, passou uma senhora mais formosa ainda do que o sol de Inverno.
Deveria
ser da minha idade. Não era de corpo nado mas esculpido. Aquilo nem era andar –
era florescer. Ou: era flores ser. De zénite a nadir: cabelo lambido a luz,
fiado aqui & ali a encanecida prata natural; olhos feitos de cinza de
lareira em que refulge ainda a queimadura do ouro; nariz perfeito, cleopátrico,
mortífero; boca única, de um vermelho biológico sem tinta francesa; dentes que
morderam a maçã do Éden; colo de hipnótica simetria sustentando o alabastro do
pescoço; braços de mármore respiratório; mãos impossíveis, com algo de aranha
uma, de mariposa outra; ventre nunca tocado; pernas de cisne próspero; e
pèzitos de tal insignificância volumétrica, que me causaram o desejo de
ofertar, à dona deles, framboesas que não posso & versos que não sei.
As
coisas, portanto & afinal, recompunham-se: a beleza alheia é paliativa da
nossa íntima feiura. O meio-dia já era. Eu não almoçara ainda, nem de seguida o
fiz: o pão-nosso-de-cada-dia é contra as hipersensibilidades doentias como a
minha. A passagem da dita senhora tivera todavia para comigo a bondade & o
condão de desempobrecer a hora amargada pelo tal telefonema do tal Amigo. Nisto,
o telemóvel guinchou de novo. Era o meu mui querido sobrinho Zé Daniel. Ele
fazia anos, eu mandara-lhe uma festiva lembrança de amor. Sequência &
consequência: foi ele afinal a dar-me uma prenda. Esta prenda: vai ser Pai em
Dezembro próximo, tornando-me tio-avô pela quinta vez na vida. Muito
provavelmente, de uma menina. Quinta sobrinha-neta, aliás: os meus sobrinhos
& as minhas sobrinhas parecem avessos a gerar rapazio macho.
Definitivamente, a segunda-feira volvera-se-me vitoriosa, poalhada de grácil
glória, nimbada mesmo de uma algo desaforada ilusão de perpetuidade.
E
quanto ao tal telefonema matinal de tal Amigo? Era a dizer-me que O RIBATEJO acaba em papel a partir desta
mesma edição. Mágoa & impotência: foi o que senti (e sigo sentindo). Este
Jornal foi o meu mais seguro porto, o meu mais hospitaleiro abrigo – durante
onze anos, um mês & nove dias (a partir, precisamente, de 25 de Maio de
2007). Um mero riscar de fósforo à chuva. De mil pequeninas mortes, enfim, se
faz cada existência. Mais: o mundo não pertence aos sérios, pertence aos
espertos; a realidade não se pauta pela honestidade, mas pela manha; e o tal
pão-nosso-de-cada-dia não é de quem o trabalha, mas de quem o usurpa.
Em
papel ao menos, O RIBATEJO acaba hoje
& aqui. Só posso, agora, deixar aqui um derradeiro sinal de gratidão às
pessoas que ao longo de quase 33 anos fizeram o Jornal, honrando-me
profundamente ao me considerarem como uma delas. A esses grandes profissionais
sou todo grato – a eles e aos/às Leitores/as, que alguns tive por & para
minha boa-sorte. Saudades de Coimbra a todo o Ribatejo.
A
senhora muito bela passou sem deixar nome – mas a minha novel Sobrinha-Neta
nasce em Dezembro. Oxalá que a 25.
30/06/2018
PEDRO CANAVARRO: UM ESPELHO PARA O FUTURO - Rosário Breve n.º 561 in O RIBATEJO de 28 de Junho de 2018 - www.oribatejo.pt
Pedro Canavarro: um
espelho para o futuro
Como
prometido, a crónica desta semana resulta da minha leitura do livro intitulado A Única Coisa que Fiz Foi Viver. A obra
é, estruturalmente, um diálogo; essencialmente, é uma memória autobiográfica.
As voltas do diálogo acontecem a mote das perguntas que Yann Araújo (nascido em
1979) houve por bem colocar a Pedro Canavarro (nascido em 1937). A leitura do
resultado de tal encontro entre estes dois homens é muito branca, digo, muito
clara – digo mais: e, não-raro, luminosa.
Posto
isto, retomo da sabença popular um
adágio assaz empírico: “Não há bela sem
senão.” Assim sendo, passo a referir de imediato o único senão com que esta publicação me
confrontou. Ele é: apesar da promissora nota
constante da ficha técnica do livro (“O
autor não adopta o novo acordo ortográfico”), o texto final está infestado
de barbarismos acordistas. Tal
profusão de incorrecções macula inapelavelmente a elegância das palavras
memoriais do entrevistado. Os exemplos são, infelizmente, mais do que muitos.
Enumerá-los aqui truncaria, em espaço tipográfico, esta crónica. Digo apenas:
na eventualidade muito desejável de uma segunda edição da obra, deve ser tida
como primacial uma revisão total & cabal do texto. Repare-se que até por
isto: há gralha gravíssima na página
62. O “Professor” nela referido não pode ser Luís Miguel Cintra. Não pode. É
grande actor e grande encenador, mas não pode ser ele. Trocaram o filho pelo
pai. Só pode ser Luís Filipe Lindley Cintra, este sim, figura gigante da história
pedagógico-cultural portuguesa. Errar é
humano, enfim.
Quanto
à bela, o livro é deveras uma beleza.
Este homem Pedro Manuel Guedes de Passos Canavarro, ribatejano de íntegra &
ínclita gema, discorre sem soluços a propósito de seus/dele primeiros oitenta
anos de vida. O fio narrativo é linearmente cronológico – Infância e Juventude; Percurso Académico; Do Japão à Docência, da
Museologia ao 25 de Abril; XVIIª Exposição de Arte, Ciência e Cultura; Política
Nacional – PRD; Política Internacional – Parlamento Europeu; Arte, Ciência e
Democracia – Fundação e Casa-Museu Passos Canavarro.
Do
tudo disto, que pouco não é, ressalta a evidência de Pedro Canavarro
configurar, a olhos tão vivos quão nus, uma espécie de numismática efígie – que
no caso, e para mim, é moeda de uma perpendicular dignidade senatorial. É um
campeão moral. Ou por outras palavras: o homem é de forte delicadeza, de
desassombrado espanto, de orientalizado ocidentalismo, de irmanado conluio
entre Beleza & Perigo – e nostálgico de um porvir que,
trazendo embora a morte, só pode (por)vir a reiterar a autoritária & serena
concertação de um amador da vida em paz com ela.
Pedro
Canavarro é homem que não desconhece o espelho: Narciso não lhe é estranho. Mas
se todo o dom da memória é autobiográfico, não será narcísica toda a lembrança?
Será. É. Não há nisso pecado. Todos certamente morremos – mas deveras vivemos
todos? Posso garantir-vos que Pedro sim.
Esteta
da tranquilidade, acalmado epicurista. Alma que se não esqueceu de ser corpo.
No fundo como à flor, um conservador de periferia esquerdo-humanista. Mordomo
só de si mesmo, amo de sua casa, benigna reencarnação talvez de um Wenceslau de
Moraes. Cultor de benignos fantasmas, apreciador de vagaroso chá na
contiguidade de roseirais.
Concluo:
o livro é bom, a obra é útil, a vida é muito meritória. A página 23 é modelar.
Nela se evoca a primeira recordação vital de Pedro quando menino. A uma janela
de rés-do-chão, numa praia do Norte, assiste em deslumbramento a “Uma festa, uma procissão, com banda, flores
e andores.”
Esse
menino tem hoje 81 anos, completos que foram a 9 de Maio último. Tudo me leva a
crer que, daqui a mais 19 anos, Santarém e o País terão tudo para comemorar o vivo
centenário de uma criança que, desde sempre, tem preferido pessoas a brinquedos.
E com tal não se brinca. Assim seja.
MANHÃ TODA SCALABITANO-COIMBRÃ - Rosário Breve n.º 560 in O RIBATEJO de 21 de Junho de 2018 - www.oribatejo.pt
Manhã toda
scalabitano-coimbrã
1
Às 9h33m da manhã de sexta-feira, 15 de Junho de 2018, cheguei à paragem-de-autocarros que fica ali ao sopé do restaurante chinês e da escola de dança. (Nota: a mesma paragem do desmaio da rapariga grávida que consta da crónica de 7 de Junho passado.)
Às 9h33m da manhã de sexta-feira, 15 de Junho de 2018, cheguei à paragem-de-autocarros que fica ali ao sopé do restaurante chinês e da escola de dança. (Nota: a mesma paragem do desmaio da rapariga grávida que consta da crónica de 7 de Junho passado.)
Abordou-me
então uma senhora já outonal, já provecta, já mais lembrança do que
planeamento: “ – O senhor sabe dizer-me
se temos autocarro daqui a pouco?”.
Eu
sabia: “ – Só daqui a dezassete minutos,
minha senhora.”
E
ela, muito expedita: “ – Então vou indo a
pé, que tenho consulta no centro de saúde para renovar as receitas na minha
médica, fui há dois meses operada à tiróide, sabe?”
Eu
não sabia. A dita paragem alcandora-se a um íngreme cimo de ladeira, pelo que
todos os santos nos ajudaram, a ela & a mim, a ir descendo. A senhora não
era tagarela – era interessante, pelo contrário. Muito interessante, aliás:
antes dos primeiros semáforos, já em terreno plano, aprendi ser ela uma senhora
nascida & criada em Santarém (“ –
Perto da Escola Agrícola, sabe? ”) mas radicada em Coimbra há para cima de
quarenta anos. Eu quis saber porquê.
E
ela: “ – Ora, porque o meu marido era de
cá, morreu muito novo, tinha 57 anos só, foi do cancro no pulmão, mas em novo
foi interno dum colégio em Tomar, nas licenças vinha aos bailaricos em Santarém
– e foi assim.”
Aprendi
mais: viúva ainda não velha, trabalhou muito para criar os três filhos como
manda a sapatilha – dois são formados e estão bem postos na Função Pública, o
terceiro trabalhava com o pai mas pela morte deste decidiu ir para Londres, onde
também se acha senhor da própria vida com casa, mulher & filhos. Fiquei a
saber ainda duas coisas mais.
Primeira coisa – Certa vez, ela
foi a um médico-especialista (não perguntei de que especialidade, há sempre que
ser cavalheiro). Vai o médico gentilmente assim para ela: “ – Então que faz uma senhora scalabitana cá por Coimbra?”.
E
ela: “ – Ora, senhor doutor, o meu marido
era de cá, morreu muito novo, tinha 57 anos só, foi do cancro no pulmão, mas em
novo foi interno dum colégio em Tomar, nas licenças vinha aos bailaricos em
Santarém – e foi assim.”
E
o gentil doutor assim para a gentil viúva: “
– Sabe a senhora?, também sou de Santarém, sou filho do doutor Manuel(…), que
toda a gente do seu tempo conhecia por lá.”
Claro
que ela reconhecia o dito clínico santareno, garantiu-lho. E ambos se sentiram
migrantemente felizes pela coincidência natalícia que em terra emprestada os
reunia.
Segunda coisa – Aos dezassete
anos, esta jovem hoje antiguecida esteve para ser toureira. Teria sido fresca
novidade, à época. Por pouco não rompeu o marialvismo macho da cornúpeta
tradição. O senhor Celestino G. achou muito bem. Chegou a correr publicidade
por jornais e rádios a estreia da menina lidadora de redondel. Só não aconteceu
porque o senhor pai dela, pretextando não lhe poder (ou querer) comprar os
sapatos mágicos indispensáveis ao toureio, a ter na prática interditado de tal
brava aventura. Todavia, foi sem lágrima coagulada na voz que me relatou isto
assim: “ – Foi o que foi, passou-se
assim, está & é passado.”
Chegáramos
entretanto à porta do centro de saúde. Agradeceu-me a companhia & a
audição. E saiu-se-me com esta matadora
finalização: “ – Agora veja lá de que
maneira vai o senhor apresentar isto nO RIBATEJO…”
2
Julgais que o scalabitanismo da minha manhã coimbrã se ficou por aqui? Se sim, mal julgais. É que, já pela hora de almoço, vim a casa saber se me sobrara sopa da véspera. Antes, abri a caixa-de-correio. Suave maravilha: dentro, morava um envelope grande & fofamente blindado. Era um livro. Este livro: A Única Coisa que Fiz Foi Viver, memória autobiográfica do Dr. Pedro Canavarro (em diálogo com Yann Araújo). Ainda não chegara a tarde e já o meu dia estava duplamente ganho.
Julgais que o scalabitanismo da minha manhã coimbrã se ficou por aqui? Se sim, mal julgais. É que, já pela hora de almoço, vim a casa saber se me sobrara sopa da véspera. Antes, abri a caixa-de-correio. Suave maravilha: dentro, morava um envelope grande & fofamente blindado. Era um livro. Este livro: A Única Coisa que Fiz Foi Viver, memória autobiográfica do Dr. Pedro Canavarro (em diálogo com Yann Araújo). Ainda não chegara a tarde e já o meu dia estava duplamente ganho.
Da
minha minuciosa leitura desta obra V. darei conta na próxima edição.
Palavra-da-salvação.
15/06/2018
FALA O ENFERMO - Rosário Breve n.º 559 in O RIBATEJO de 14 de Junho de 2018 - www.oribatejo.pt
Fala o enfermo
Tenho
sido por estes dias (com suas precárias noites) o alvo involuntário mas
resignado de um episódio febril mancomunado com um foco infeccioso em
determinada reentrância do corpo, muito jeitosos ambos. Fui às cordas mas não
atirei a toalha ao chão. Na mesinha-de-cabeceira, o costume: chá, comprimidos
anticoiso, uma carrada de lenços-de-papel amarfanhados de muco & de vagidos,
canjas repetidas como ideias fixas & a pagela do Santo Irmão Doutor Souza
Martins – tudo através da minha vaga desesperança dos dias saudáveis consolidada
no egoísmo-coitadinho-do-doentinho.
Isto, é claro, incha, desincha & passa. Há tão-só que aguentar com pachorra
de santo estas veleidades do diabo. E há que ser homem vertebrado – o que aliás
nem é grande ideia, já que me doem & rangem quase todos os ossos do corpo.
Consequência
fatal: nestas condições, o corpo dá ainda muito menos trela ao mundo exterior.
Quero dizer: como já sou, em estado são a 37.4 Cº, um pessimista relativizador
dos absolutos absurdos do famigerado politicamente-correcto,
não é por agora estar com quase 39 graus que vou dar importância à rábula dos compères Croquete de Washington & Batatinha
de Pyongyang. Do Sporting pelas ruas-da-amargura, já disse o que tinha a
dizer. Pior: só na terça-feira passada tive acesso postal à edição em papel
deste V.º Jornal.
Foi
na cama que o recebi e assimilei. Não é porém o meu comentário dele que
interessa – é o que ele suscita de reflexão aos Leitores mais esclarecidos, que
os há e felizmente não tão poucos quanto isso. Marcelo na Feira? Passo.
Barreiras/EN 114? Ninguém passa. Benavente/Quercus/nove autarcas? Não me
surpreende. Falta de enfermeiros em Santarém? Pois. Sumiço do tartan de Riachos? Se não fosse triste,
daria para rir. Só espero que não o tenham transformado & levado para
Alcanena, onde apareceu um sintético dado como novo. Para piorar tudo (mais
ainda), temos o sinapismo do Mundial
à porta: Cristiano, Cristianinho, Dolores Aveiro, treinos da Selecção ao mais
enjoativo milímetro, mordomias de hotel, fait-divers
parolos sobre aquele rincão da Rússia a partir do qual os nossos jogadores recebem uma escandalosa batelada de euros por dia
etc. etc. etc.
Sim,
estou doente. Reitero: a paciência, que nos dias normais me é já tão pouca, só
me dá para vir aqui enfermar, não para informar. Tenho canja nova ao lume.
Consegui um ramito de hortelã para ela. Todavia, a própria água-mineral me sabe
a xarope rançoso. Os professores deste País são roubados pelo Governo do mesmo.
Ainda tenho mel para a infusão de camomila. Desconheço qual foi o bocado de
parede que tenha caído hoje no centro velho da Capital do Ribatejo. Caio eu. De
cama, claro – e tendo por única luzinha-ao-fundo-do-túnel a vela acesa ante o
benévolo & milagreiro rosto do Santo Irmão Doutor Souza Martins, esse sim nosso, muito mais nosso do que Marcelos
feirantes de cá perto e do que Croquetes
& Batatinhas de lá, felizmente, longe.
08/06/2018
ANDAMENTO DO RESULTADO (SEM TEMPO PARA DESCONTOS) - Rosário Breve n.º 558 in O RIBATEJO de 7 de Junho de 2018 - www.oribatejo.pt
Andamento do resultado
(sem tempo para descontos)
Foi
há quarenta anos. Era partida de futebol a contar para a Zona Centro da Segunda
Divisão Nacional. No entretanto demolido estádio municipal cá do sítio, União
de Coimbra 0 – União de Santarém 0. Resultado justo para o que se passou em
campo. Estive na bancada. Começava eu então a deixar de ser menino. Foram
noventa minutos contemporâneos do princípio do (meu) mundo – pois que ninguém
grave me havia então morrido.
Dezoito
anos volvidos sobre esse manso empate, fui eu a deslocar-me à capital do
Ribatejo. Movia-me lá o propósito de uma entrevista com determinado familiar
directo do maravilhoso doutor António Martinho do Rosário, vulgo Bernardo
Santareno. Obtive a entrevista, que depois radiodifundi para memória, que eu
saiba, de ninguém. Santarém 1 – Coimbra 1.
Bem.
Passados que foram oito anos mais, e algures nas imediações da tão
mal-aproveitada Scalabis, jantei com
& a convite de duas jovens senhoras muito bem-postas: Santarém 3 – Coimbra
2. Nesse mesmo anuário, comemorei livrescamente o 30.º aniversário do 25 de
Abril no jardim-feito-Casa do doutor Pedro Canavarro (cujo recente livro ainda
não tenho mas hei-de ter). Tal foi lá em cima, onde o Sol abre de si as Portas
– Santarém 4 – Coimbra 3.
Do
tudo disto, (re)tiro & (res)guardo o pequeno-nada de ser verdade tudo. Não
me acrescento nem me subtraio: são coisas que, minhas, a outros pertencem
também. O ponto está em esta crónica me devir rectilineamente da edição passada
(31-5-18) dO RIBATEJO. A manchete desse
fértil & festivo número foi: “A Feira
está mais ribatejana”. Bom. Ainda bem. Entretanto, e na página 14 da mesma
publicação, o meu amigo Arnaldo Vasques cronicava, a benigno preceito como
sempre, sob este título: “A nossa Feira”.
Como na comum & global vida, presente & pretérito mesclaram-se. Ninguém
conhece o porvir – mas o presente é iluminável sem dor mercê de lâmpadas
passadas, cuja luz é incapaz de fazer mal a quem não ande aqui só para usar na
moleirinha um daqueles chapéus-há-muitos-ó-palerma!
Eis pois que, portanto, Santarém 5 – Coimbra 4.
A
presente & corrente crónica poderia, já & por aqui, dobrar a finados de
si mesma – mas não dobra, que eu não deixo. Tenho mais dela, e por ela, a
dizer. Digo: não fui este ano à Feira do Ribatejo. Não pôde ser. Outro ano
será, espero. Perda minha: Santarém 6 – Coimbra 4. O facto é eu viver, hoje em
dia, outras feiras. Mormente, a feira-do-quotidiano. Hoje mesmo, ao
rés-vés (e ao revés) do primeiro autocarro da manhã, uma rapariga branca como
um lírio & grávida como um pote deixado à chuva, desmaiou na paragem dos
autocarros. Socorremo-la todos, atrapalhando-nos de aflição uns aos outros. A
em-breve-mãe recuperou sangue, tensão & consciência, agradecendo-nos a todos
o susto & o préstimo. Santarém 6 – Coimbra 6 (o feto também conta).
Termino
sem cansativo prolongamento. Assim: pela mesma edição passada deste V.º Jornal,
fiquei a saber, a páginas 41, que a União Desportiva de Santarém (UDS) “segue em frente rumo à subida”. Muito
bom. Muito bem. Já o recorrente, atento & atencioso leitor Rudi B.
comentava, a propósito, que “vamos lá a
ver se será desta que a UDS ganha asas para pousar nos campeonatos nacionais”.
Oxalá. Nota daqui: o meu emblema local foi rebaptizado Clube União 1919. Tem a ver com a bancarrota a que alguém (ou alguéns) levou o mui formoso & mui
operário Clube de Futebol União de Coimbra. Ainda não temos equipa sénior, só
camadas jovens – mas lá iremos. Cá estarei, nos entretantos, para novo
vitorioso empate entre a Santarém que é minha & a Coimbra que faço Vossa.
Parafraseando: cidades que, minhas, vos a Vós pertencem também, ainda, desde
& para sempre. Ninguém perde. Ganhamos todos.
02/06/2018
31/05/2018
FARTO DE SANTARÉM (?) - Rosário Breve n.º 557 in O RIBATEJO de 31 de Maio de 2018 - www.oribatejo.pt
Farto de Santarém
(?)
Em
uma manhã que só não se fez perfeita por cometer, ela, o pecado de parecer
perpétua, fui feliz como um passarito saciado. O caso foi que, a tempo &
horas, me remuneraram generosamente por certo trabalho de escrita algo
trabalhosa, pois que de muita letra. Massa
no bolso, fui logo almoçar fora. Enfardei toda uma gamela de
cozido-à-nossa-pátria-maneira, atulhando-me de enchidos que, garantiu-mo outrora
um médico sisudíssimo, são o terror das próstatas cinquentenárias, como é o
caso da minha. O serviço foi-me feito pelo Manel, empregado-de-mesa que sofre
muito da hérnia inguinal no lado esquerdo do coxear. Sim, foi uma manhã radiosa,
durante a qual estar vivo não me pareceu tão mal quão de costume.
À
saída da casa-de-pasto, e aquecida a algibeira pelo troco da nota gorda, passei
por uma pandilha de corvos perpendiculares que são os capas-&-batinas cá da parvónia. Passei também pela praça: no
mercado coberto, benignamente infestado do acre perfume do peixe quási-vivo,
zoava a humana algaraviada colectiva de vendedores & compradores, zoeira
que me lembrou aquela frenética, aquela eufórica chilreadeira dos pardais nos
plátanos do entardenoitecer, hora a que Deus os obriga a algaraviar gratidão
& louvor a Ele mesmo, Sumo Criador das Asas Canoras.
Ainda
de palito mordido ao canto da beiça, ambulei erraticamente pelo deserto do
centro dito histórico (mas afinal velho apenas, por incúria dos mandantes
da urbe & por inércia dos mandados do orbe): sapatarias descalças,
relojoeiro-ourivesarias ora sem ouro nem hora, mercearias assombradas por
fantasmas de fregueses que já vieram mas não voltam já, igrejas encerradas ao
culto, ao turista & à beata local, amailos
Cafés às moscas – resultando o tudo disto no todo arrasado a quási-nada.
Todavia, não permiti que tal ermo me melancolizasse: nem sequer ante a visão de
um sem-abrigo que vasculhava abutremente as entranhas de um contentor de lixo.
De facto, eu, pleno como um odre, só pretendia ajudar a digestão cirandando aos
ziguezagues pelas ruas ainda mais estreitas por obra & desgraça dos carros
estacionados nos passeios esburacados. Assim fiz.
Para
ajudar ao flato & ao arroto, entrei numa das derradeiras tabernas à
portuguesa do mundo, nela mamando um alto quartilho de gasosa. Comovi-me,
então: nas prateleirinhas ingenuamente esmaltadas a escarlate, a verde & a
amarelo republicanos, refulgiam, à sombra do boneco Zé-Povinho-do-Manguito-Queres-Fiado-Toma, o terno pacotilho de
bolacha-baunilha, a pragmática latita de sardinhas-em-molho-de-tomate, a
botelha de ginja e a de anis e a de ponche e a daquele porto mais barato que
sabe sempre a vinagre com açúcar-amarelo. Ante tais, tantas & tão singelas
maravilhas, apeteceu-me logo ser português até morrer. De tanto sentir-me, acabei
por sentar-me um pouco. O mesmo é dizer que acabei por comer qualquer coisita a pretexto de beber qualquer coisona. Davam já as quatro da tarde
quando me refiz às ruas, de novo pós-prandial que nem roxo & grosso abade.
Impusera-se
entretanto à Cidade uma daquelas “tardes
claras em que a humidade serve de lente”, como em 1908 escrevia o senhor
Conde de Sabugosa, esse mesmo que aludiu à “prata
líquida do Tejo”. S. por S., ocorreu-me então o bom Sá, o humaníssimo Sá de
Miranda: “Isto que ora ouvis de mim / Não
sei se ouvireis de alguém. / Buscai, perguntai sem fim / No desejado Almeirim /
No farto de Santarém.”
Excelente
ocorrência me foi essa. Contentemente fatigado das gâmbias, sentei-me à borda-d’água para, em sossego, fumar pela
minha rica saúde. Escrevi ali duas linhas: Passo
o tempo a ver o rio. / O rio vê o tempo a passar-me. Recordei outra já
ontem antiga: Sou mais um de nós num
convosco de ninguéns. Escrevi mais duas frescas: Felizes, os que podem ser esquecidos. / Felizes mais, aqueles que não
lembram. E mais uma ainda: A saudade
é uma fome que nunca dá em fartura. Todavia, reciclei esta última sentença
no seguinte decassílabo: Saudade é fome
que não dá fartura.
E
foi assim que dei por mim ante o profundo sentido de “farto” que Sá de Miranda deu, como eu uma vez por semana intento dar,
por e de mim, a Santarém & a Almeirim.
24/05/2018
LEIAM SÓ O PONTO 4 - Rosário Breve n.º 556 in O RIBATEJO de 24 de Maio de 2018 - www.oribatejo.pt
Leiam só o ponto 4
1 Só os presidentes camarários de Alpiarça e do Cartaxo, na
companhia de um vereador do PS da edilidade de Santarém, estiveram, a par de
mais de uma centena de cidadãos eleitores-mas-não-eleitos, em recente
apresentação pública do Projecto Tejo.
TODOS OS OUTROS (perdoe-se-me a maiúscula exclamação) autarcas democraticamente
eleitos do & pelo Ribatejo houveram por bem os pecados de falta, omissão,
indiferença & deixa-te-andar. Ajunto possibilidades de explicação para tão
gritante realidade: a) Não havia comezaina; b) Não havia procissão com
foguetório; c) Não vinha “o” Marcelo.
Ou então mais estas três, mas pela afirmativa: d) Estava bom-tempo, bom de mais
para coisas demasiado importantes para todos; e) O novo Alqueva é uma seca; f) Os cívicos
e os politécnicos percebem pouquíssimo disto. Não lavo no/nem do Tejo as
minhas mãos – mas sei quem politicamente eu crucificaria sem sequer olhar para
os ladrões do lado.
2 Menino & moço, gostei muito de futebol. Cheguei a
praticá-lo, só não tendo chegado a Cristiano Ronaldo por ser Hermínia a minha
Mãe e não Dolores. Já não gosto. Deixou de ser desporto, passou a indústria.
Poluente, ainda por cima. O futebol de que eu gostei? Mesmo e até com este
Clube enorme & meu adversário
agora pelas ruas da amargura? Posso dar umas dicas. Sou do tempo de o seguro
Carvalho ter tido (que remédio…) de dar lugar a essa gloriosa promessa tão
gloriosamente cumprida chamada Vítor Damas (paz à sua alma). Manaca. Nelson
(ex-Varzim). Manoel. Keita. Fraguito. Festas. Laranjeira. Bastos. Baltazar.
Manuel Fernandes (ex-CUF). Jordão (ex-SLB). Caló. Tomé. Hilário. Lourenço. Marinho.
Chico. Ernesto. Dinis, o angolano cujo pé esquerdo tornava invisível a bola.
Etcetríssimo. Tantos, verdade? Mentira que tão bons? E logo comigo, comigo que
até sou do Benfica por do Benfica ter sido o meu Pai. Não, já não gosto de
futebol. A passada semana disse-me que tenho todas as razões para desgostar de uma
coisa que foi bonita mas entretanto desastrosamente prostituída por uma espécie
de proxenetismo se calhar genético-nacional. E quando tenho razão, ninguém ma
dá – mas também ninguém ma tira.
3 O Rio Tejo & e
o Sporting Clube de Portugal estão ambos por resolver. Não hão-de ser
águas-passadas a solucionar as crises gravíssimas de um nem de outro. Quanto
àquele (o grande Rio), autarcas ineptos & inaptos, não. Quanto a este (a
grande Instituição de um Francisco Stromp, de um José Roquette/Alvalade),
cachopos de esquisita patologia mimalhóide
também não. Digo isto sem precisar de ensanguentar o coração nas mãos. Digo
isto por ter carradas de razão.
(4 E o Tejo é o Rio do Baptista Pereira. E o
Sporting é o Clube do Yazalde.)
17/05/2018
DEZASSEIS MICROFILMES NESTE ROSÁRIO BREVE N.º 555 - Rosário Breve n.º 555 in O RIBATEJO de 17 de Maio de 2018 - www.oribatejo.pt
Dezasseis
microfilmes neste Rosário Breve n.º 555
Por
uma esplêndida manhã de Maio, assentei praça, por assim dizer, em um
particularmente diáfano recanto da urbe a fim de escreviver o que (Vos) desse
& (me) viesse. Fui feliz na escolha: dezasseis microfilmes verbais (já
revelados à nascença da obturação) impuseram-se de imediato & sem esforço
ao meu lápis. Assim pois:
1. Mulher pobre de criança ao colo – por ter mãe, é de
copiosa fortuna a criança;
2. Camisas a enxugar em estendal – crucificados cristos têxteis;
3. Fila de deserdados à porta da sopa-dos-pobres –
untado, seráfico, pançudo, freirático angelismo das sopeiras serventes;
4. Gato à janela de quarto-andar – Napoleão desterrado na
Ilha de Santa Helena.
Continuei
(escrevi)vendo, permeado de uma espécie de êxtase sereno. Eu dormira muito bem
a noite, despertando sem amargura nem esperança tolas. Considerando que se, de
Lobsang Rampa, que diziam ter três olhos, nada de especial, e que de Camões,
com um só, tanto & tão bom – propus-me usar os meus piscos dois a ver o que
dava. E é que deu:
5. Semáforos abertos no vermelho franqueando passagem
livre a duas ambulâncias & a um carro-funerário – a primeira, rumo à
maternidade; a segunda, direita ao hospital; o terceiro, soma das duas;
6. Mulher com braçada de cravos ao colo – nenhuma
revolução é órfã;
7. Crente consultando o horóscopo (“Viagem inesperada na
sua vida!”) – o azar é que, sufocado por um pedaço mal mastigado de courato, acabaria
por esticar o pernil quando desse, como veio a dar-se, o meio-dia a esta
crónica, pronto a sepultar na quinta-feira da saída d’O RIBATEJO;
8. Canteiro municipal polvilhado de amores-perfeitos
& tomado de assalto por miríades esterlinas de borboletas, essas pétalas
erráticas, ébrio-aladas, trémulo-volantes, cuja efémer’eternidade dura quatro
dias há milénios.
Dei
por mim eram quase dez horas. Extra-caderno, a realidade fulgurava como o
diadema de uma palavra oportuna, ou de uma sentença justa, ou de uma ideia
clara, ou de um Amigo-para-sempre, ou de uma menina am(atern)ando a sua boneca,
ou de um rio não poluído pela ganância dos criminosos.
Longe,
a cúpula do Seminário arredondava o céu de-cá-baixo.
A
meia-distância, a álea de plátanos conspirava muito muita sombra da mais
fresca.
Perto,
9. Carrinha de nove lugares pejada de pessoas idosas, mas
tão idosas, que a infantilidade retomada as fazia pasmar de miúdo espanto ante a
fabulosa novidade do mundo;
10. Homem de fato-completo-três-peças perambulando a
merecidíssima aposentação de professor-primário – o que me comoveu muito, por
me recordar Elias Rodrigues Faro, esse senhor meu segundo Pai;
11. Quiosque-tabacaria cujo escaparate estourava frondosamente
de publicações multicolores que me pareceram as borboletas do microfilme 8. e a cujo minibalcão velava uma rapariga
avelhentada & endurecida pelo calo do celibato involuntário – o que também
me comoveu muito, por me lembrar aquela canção da dupla Rui Veloso / Carlos Tê,
Saiu para a Rua;
12. Jovem agente da PSP indicando, num inglês fluente, a
um casal de holandeses o itinerário mais acessível para o velhinho Mosteiro que
foi dos Crúzios.
Nos
por-enquantos, porém, volvera-se provecta a minha manhã. Davam já as 11h35m,
faltando apenas, por conseguinte, um quarteirão de minutos para que morresse
engasgado o fulano astrozodiacómano do microfilme 7. Sem como nem por nem para
quê, recordei essoutro meio-dia de 10 de Dezembro de 2004 (uma sexta-feira) em
que adquiri a tradução portuguesa de The
Figure on the Carpet de Henry James (trad. de Luzia Maria Martins, ed.
Relógio D’Água, Lx., 1988). Foi em Lisboa, metrópole também de si mui capaz de
microfilmes. Eis quatro dessa matina dezembrina de vai-para catorze anos:
13. Em um degrau da Igreja de Santa Isabel, aquela pomba
morta – morta & esventrada – morta & esventrada & cravejada de varejeiras
semelhantes a rubis verdes azulzumbindo;
14. Na farmácia do Largo do Rato, um mocito
envergonhosamente ciciando à farmacêutica: “Uma caixa de preservativos dos mais
baratos, fàxavôr”;
15. No Largo do Carmo, reencontrei, em
corpo-sempre-presente, o capitão Salgueiro Maia: vestido à paisana, parecia-se
muito com o homem que eu de menino sempre quis ser quando chegasse a homem;
16. E numa rua a que chamei Rua da Princesa, amei, sem remédio & com cegueira
voluntária, um porvir imediatamente desmentido pela força irreparável da
(a)parição alheia.
Agora,
calma. Tanto microfilme seguido já vai dando longa-metragem. Acabo a projecção da
seguinte maneira: como consta do título, esta é a crónica número
cinco-cinco-cinco da série Rosário Breve.
Dedico-a, com gratidão muito minha, à memória viva de três pessoas que
douraram, nele brilhantemente cronicando muitos anos, este Voss’O RIBATEJO: Eurico Heitor Consciência,
Luís Eugénio Ferreira & José Niza. Sem misticismos tolos, sinto-os
connosco. E tal sentimento dá, a meu ver, um bom filme.
10/05/2018
SÓ ME FALTA O LIVRETE - Rosário Breve n.º 554 in O RIBATEJO de 10 de Maio de 2018 - www.oribatejo.pt
Só me falta o
livrete
Há já muitos anos
que não tenho automóvel. Não o digo por choramingona auto-lamentação. Digo-o
como reiteração da ironia da vida. E a ironia está no que se segue: cimentei
amizade com uma viúva rica. Melhor da festa – não tem filhos nem irmãos, nem
sobrinhos sequer: apenas & tão-só uns vagos afilhados não de sangue. Idade
de senhora, não se pergunta nem se escarrapacha em crónica. [E não, não poderia ser minha mãe – não exageres na
descúnfia, ó Leitor(a).]
Disse
mal: a ironia não está propriamente na amizade com a viúva. Está nisto:
meteu-se-lhe na cabeça oferecer-me uma roulotte.
Em vão lhe redargui que não possuo carro que a puxe. Com a tenaz obstinação dos
portadores de ideias-fixas, contestou-me ela: “Uma coisa de cada vez, menino. Roma e Pavia…” Ou seja: passei por
ganancioso, quando a verdade purinha é eu ser o mais humilde desinteresseiro
dos homens – pelo menos dentre aqueles que raspam a barba ao espelho da minha
casa-de-banho.
Eis-me,
pois & assim, futuro possuidor (que não utente) de uma roulotte com matrícula de 1972. Comprou-a então, novinha em folha,
o dinheiroso falecido dela. E com ela, o casal fez peripatéticos gerêses,
ibizas, côtesd’azures, pompeias, odessas, florestasnegras, vienas – e
figueirasdasfozes. O carro que a tractorava, esse espatifou-o mortalmente o
marido ao cabo de infortunada noite no Casino do Estoril. Desencarcerou-se da
vida encarcerado nesse glamoroso Opel
Manta de fatal memória.
Nota
importantíssima: não é de cariz pornográfico – mas gráfico sim – a relação que
tenho & mantenho com a dita dama de copiosa abastança. É gráfica porque ela
adora sonetos à Bocage, que eu imito, até nem mal de todo, com caralheira
brejeirice. Recebo dela uma nota de cinquenta por cada posta tonitruante de
catorze versos, o que não é mesmo nada mal pago. Modos que ando poupando em sonetos no fito de comprar uma carroça
em segunda ou terceira-mão que me ponha a roulottar
por aí afora à guisa do caracol de choupana às costas. E já matuto numa coisa
maravilhosa.
Maravilhosa,
sim. Esta aqui: plantar o carro, a roulotte
& o meu “cadáver adiado” algures
no troço da EN 114, a desditosa via há tantos anos estrangulada. Como o mais
certo é não ser reaberta ao livre trânsito antes de 2100, o sossego da minha
nova residência parece-me sobejamente garantido. Até me proponho plantar
gerânios em vasos em cerca ao acampamento. E ter cá fora um cão-de-louça. E
andorinhas-de-barro agarradas às janelas. E um estandarte altíssimo do Sport
Lisboa e Benfica. E bustos em plástico do Cristiano Ronaldo, do Che Guevara, do
Ricardo Gonçalves, da Madre Teresa de Calcutá & do Leitor e/ou da Leitora
que lá me for esmolar conservas & garrafões.
De
resto, muito agradecido, ando feliz da vida. Faço os sonetos soezes,
alimento-me em tascos de bifanas, atiço inglesas velhas à mercê da machíssima
desenvoltura dos meus aparatos musculares, durmo sem remorsos & acordo sem
lembranças.
A
viúva telefona-me às terças, adora-me com comichosas palavrinhas pejadas de uma
emurchecida lubricidade, ameaça-me de novo com o carago da roulotte & encomenda-me mais uns quantos sonetos geni(t)ais, a
Deus graças.
Não
tenho ido ao médico nem à farmácia. Prefiro ir pela mata para assistir ao
voejar alucinatório das andorinhas de Maio. Também me costuma dar para ficar
descalço até ao pescoço estirado na varanda que dá para o cemitério hebraico.
São gozos inócuos mas cá muito meus. Bem pior seria drogar-me com lixívia.
De
quando em vez, perco os óculos. Passo então dias de visão aquária, as pessoas
tornam-se peixinhos glaucos, o sol fere-me termonuclearmente, é uma porra das
antigas. Logo que arranjo uns novos, a realidade readquire o teor absurdo de
que é primaz absoluta.
Escrevo
isto a uma terça-feira. E não, a viúva ainda me não telefonou hoje. Vou
lapijando sonetos entre cigarros rimados & cálices de tinto da Quinta do
Falcão. Nos entrementes, coco as mulheris formosuras que o bom-tempo despe
pelas ruas. Tento não me arrepender das más escolhas que a minha inconsciência
fez por mim. Mas olhai: a vida é só enquanto cá estamos. Só me turva o sossego
uma coisa. E tal coisa é – toparei eu sítio, algures na EN 114, onde ligar cabo
a tomada eléctrica? Vou precisar de frigorífico, computador, máquina-cafeteira,
ventoinha refrigéria etc. Nesse aspecto tão técnico, a minha viúva não pode
ajudar-me. Nem ela, nem o Ricardo Gonçalves. Ou seja: nem Roma, nem Pavia.
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