Dezasseis
microfilmes neste Rosário Breve n.º 555
Por
uma esplêndida manhã de Maio, assentei praça, por assim dizer, em um
particularmente diáfano recanto da urbe a fim de escreviver o que (Vos) desse
& (me) viesse. Fui feliz na escolha: dezasseis microfilmes verbais (já
revelados à nascença da obturação) impuseram-se de imediato & sem esforço
ao meu lápis. Assim pois:
1. Mulher pobre de criança ao colo – por ter mãe, é de
copiosa fortuna a criança;
2. Camisas a enxugar em estendal – crucificados cristos têxteis;
3. Fila de deserdados à porta da sopa-dos-pobres –
untado, seráfico, pançudo, freirático angelismo das sopeiras serventes;
4. Gato à janela de quarto-andar – Napoleão desterrado na
Ilha de Santa Helena.
Continuei
(escrevi)vendo, permeado de uma espécie de êxtase sereno. Eu dormira muito bem
a noite, despertando sem amargura nem esperança tolas. Considerando que se, de
Lobsang Rampa, que diziam ter três olhos, nada de especial, e que de Camões,
com um só, tanto & tão bom – propus-me usar os meus piscos dois a ver o que
dava. E é que deu:
5. Semáforos abertos no vermelho franqueando passagem
livre a duas ambulâncias & a um carro-funerário – a primeira, rumo à
maternidade; a segunda, direita ao hospital; o terceiro, soma das duas;
6. Mulher com braçada de cravos ao colo – nenhuma
revolução é órfã;
7. Crente consultando o horóscopo (“Viagem inesperada na
sua vida!”) – o azar é que, sufocado por um pedaço mal mastigado de courato, acabaria
por esticar o pernil quando desse, como veio a dar-se, o meio-dia a esta
crónica, pronto a sepultar na quinta-feira da saída d’O RIBATEJO;
8. Canteiro municipal polvilhado de amores-perfeitos
& tomado de assalto por miríades esterlinas de borboletas, essas pétalas
erráticas, ébrio-aladas, trémulo-volantes, cuja efémer’eternidade dura quatro
dias há milénios.
Dei
por mim eram quase dez horas. Extra-caderno, a realidade fulgurava como o
diadema de uma palavra oportuna, ou de uma sentença justa, ou de uma ideia
clara, ou de um Amigo-para-sempre, ou de uma menina am(atern)ando a sua boneca,
ou de um rio não poluído pela ganância dos criminosos.
Longe,
a cúpula do Seminário arredondava o céu de-cá-baixo.
A
meia-distância, a álea de plátanos conspirava muito muita sombra da mais
fresca.
Perto,
9. Carrinha de nove lugares pejada de pessoas idosas, mas
tão idosas, que a infantilidade retomada as fazia pasmar de miúdo espanto ante a
fabulosa novidade do mundo;
10. Homem de fato-completo-três-peças perambulando a
merecidíssima aposentação de professor-primário – o que me comoveu muito, por
me recordar Elias Rodrigues Faro, esse senhor meu segundo Pai;
11. Quiosque-tabacaria cujo escaparate estourava frondosamente
de publicações multicolores que me pareceram as borboletas do microfilme 8. e a cujo minibalcão velava uma rapariga
avelhentada & endurecida pelo calo do celibato involuntário – o que também
me comoveu muito, por me lembrar aquela canção da dupla Rui Veloso / Carlos Tê,
Saiu para a Rua;
12. Jovem agente da PSP indicando, num inglês fluente, a
um casal de holandeses o itinerário mais acessível para o velhinho Mosteiro que
foi dos Crúzios.
Nos
por-enquantos, porém, volvera-se provecta a minha manhã. Davam já as 11h35m,
faltando apenas, por conseguinte, um quarteirão de minutos para que morresse
engasgado o fulano astrozodiacómano do microfilme 7. Sem como nem por nem para
quê, recordei essoutro meio-dia de 10 de Dezembro de 2004 (uma sexta-feira) em
que adquiri a tradução portuguesa de The
Figure on the Carpet de Henry James (trad. de Luzia Maria Martins, ed.
Relógio D’Água, Lx., 1988). Foi em Lisboa, metrópole também de si mui capaz de
microfilmes. Eis quatro dessa matina dezembrina de vai-para catorze anos:
13. Em um degrau da Igreja de Santa Isabel, aquela pomba
morta – morta & esventrada – morta & esventrada & cravejada de varejeiras
semelhantes a rubis verdes azulzumbindo;
14. Na farmácia do Largo do Rato, um mocito
envergonhosamente ciciando à farmacêutica: “Uma caixa de preservativos dos mais
baratos, fàxavôr”;
15. No Largo do Carmo, reencontrei, em
corpo-sempre-presente, o capitão Salgueiro Maia: vestido à paisana, parecia-se
muito com o homem que eu de menino sempre quis ser quando chegasse a homem;
16. E numa rua a que chamei Rua da Princesa, amei, sem remédio & com cegueira
voluntária, um porvir imediatamente desmentido pela força irreparável da
(a)parição alheia.
Agora,
calma. Tanto microfilme seguido já vai dando longa-metragem. Acabo a projecção da
seguinte maneira: como consta do título, esta é a crónica número
cinco-cinco-cinco da série Rosário Breve.
Dedico-a, com gratidão muito minha, à memória viva de três pessoas que
douraram, nele brilhantemente cronicando muitos anos, este Voss’O RIBATEJO: Eurico Heitor Consciência,
Luís Eugénio Ferreira & José Niza. Sem misticismos tolos, sinto-os
connosco. E tal sentimento dá, a meu ver, um bom filme.
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