Farto de Santarém
(?)
Em
uma manhã que só não se fez perfeita por cometer, ela, o pecado de parecer
perpétua, fui feliz como um passarito saciado. O caso foi que, a tempo &
horas, me remuneraram generosamente por certo trabalho de escrita algo
trabalhosa, pois que de muita letra. Massa
no bolso, fui logo almoçar fora. Enfardei toda uma gamela de
cozido-à-nossa-pátria-maneira, atulhando-me de enchidos que, garantiu-mo outrora
um médico sisudíssimo, são o terror das próstatas cinquentenárias, como é o
caso da minha. O serviço foi-me feito pelo Manel, empregado-de-mesa que sofre
muito da hérnia inguinal no lado esquerdo do coxear. Sim, foi uma manhã radiosa,
durante a qual estar vivo não me pareceu tão mal quão de costume.
À
saída da casa-de-pasto, e aquecida a algibeira pelo troco da nota gorda, passei
por uma pandilha de corvos perpendiculares que são os capas-&-batinas cá da parvónia. Passei também pela praça: no
mercado coberto, benignamente infestado do acre perfume do peixe quási-vivo,
zoava a humana algaraviada colectiva de vendedores & compradores, zoeira
que me lembrou aquela frenética, aquela eufórica chilreadeira dos pardais nos
plátanos do entardenoitecer, hora a que Deus os obriga a algaraviar gratidão
& louvor a Ele mesmo, Sumo Criador das Asas Canoras.
Ainda
de palito mordido ao canto da beiça, ambulei erraticamente pelo deserto do
centro dito histórico (mas afinal velho apenas, por incúria dos mandantes
da urbe & por inércia dos mandados do orbe): sapatarias descalças,
relojoeiro-ourivesarias ora sem ouro nem hora, mercearias assombradas por
fantasmas de fregueses que já vieram mas não voltam já, igrejas encerradas ao
culto, ao turista & à beata local, amailos
Cafés às moscas – resultando o tudo disto no todo arrasado a quási-nada.
Todavia, não permiti que tal ermo me melancolizasse: nem sequer ante a visão de
um sem-abrigo que vasculhava abutremente as entranhas de um contentor de lixo.
De facto, eu, pleno como um odre, só pretendia ajudar a digestão cirandando aos
ziguezagues pelas ruas ainda mais estreitas por obra & desgraça dos carros
estacionados nos passeios esburacados. Assim fiz.
Para
ajudar ao flato & ao arroto, entrei numa das derradeiras tabernas à
portuguesa do mundo, nela mamando um alto quartilho de gasosa. Comovi-me,
então: nas prateleirinhas ingenuamente esmaltadas a escarlate, a verde & a
amarelo republicanos, refulgiam, à sombra do boneco Zé-Povinho-do-Manguito-Queres-Fiado-Toma, o terno pacotilho de
bolacha-baunilha, a pragmática latita de sardinhas-em-molho-de-tomate, a
botelha de ginja e a de anis e a de ponche e a daquele porto mais barato que
sabe sempre a vinagre com açúcar-amarelo. Ante tais, tantas & tão singelas
maravilhas, apeteceu-me logo ser português até morrer. De tanto sentir-me, acabei
por sentar-me um pouco. O mesmo é dizer que acabei por comer qualquer coisita a pretexto de beber qualquer coisona. Davam já as quatro da tarde
quando me refiz às ruas, de novo pós-prandial que nem roxo & grosso abade.
Impusera-se
entretanto à Cidade uma daquelas “tardes
claras em que a humidade serve de lente”, como em 1908 escrevia o senhor
Conde de Sabugosa, esse mesmo que aludiu à “prata
líquida do Tejo”. S. por S., ocorreu-me então o bom Sá, o humaníssimo Sá de
Miranda: “Isto que ora ouvis de mim / Não
sei se ouvireis de alguém. / Buscai, perguntai sem fim / No desejado Almeirim /
No farto de Santarém.”
Excelente
ocorrência me foi essa. Contentemente fatigado das gâmbias, sentei-me à borda-d’água para, em sossego, fumar pela
minha rica saúde. Escrevi ali duas linhas: Passo
o tempo a ver o rio. / O rio vê o tempo a passar-me. Recordei outra já
ontem antiga: Sou mais um de nós num
convosco de ninguéns. Escrevi mais duas frescas: Felizes, os que podem ser esquecidos. / Felizes mais, aqueles que não
lembram. E mais uma ainda: A saudade
é uma fome que nunca dá em fartura. Todavia, reciclei esta última sentença
no seguinte decassílabo: Saudade é fome
que não dá fartura.
E
foi assim que dei por mim ante o profundo sentido de “farto” que Sá de Miranda deu, como eu uma vez por semana intento dar,
por e de mim, a Santarém & a Almeirim.
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