Pedro Canavarro: um
espelho para o futuro
Como
prometido, a crónica desta semana resulta da minha leitura do livro intitulado A Única Coisa que Fiz Foi Viver. A obra
é, estruturalmente, um diálogo; essencialmente, é uma memória autobiográfica.
As voltas do diálogo acontecem a mote das perguntas que Yann Araújo (nascido em
1979) houve por bem colocar a Pedro Canavarro (nascido em 1937). A leitura do
resultado de tal encontro entre estes dois homens é muito branca, digo, muito
clara – digo mais: e, não-raro, luminosa.
Posto
isto, retomo da sabença popular um
adágio assaz empírico: “Não há bela sem
senão.” Assim sendo, passo a referir de imediato o único senão com que esta publicação me
confrontou. Ele é: apesar da promissora nota
constante da ficha técnica do livro (“O
autor não adopta o novo acordo ortográfico”), o texto final está infestado
de barbarismos acordistas. Tal
profusão de incorrecções macula inapelavelmente a elegância das palavras
memoriais do entrevistado. Os exemplos são, infelizmente, mais do que muitos.
Enumerá-los aqui truncaria, em espaço tipográfico, esta crónica. Digo apenas:
na eventualidade muito desejável de uma segunda edição da obra, deve ser tida
como primacial uma revisão total & cabal do texto. Repare-se que até por
isto: há gralha gravíssima na página
62. O “Professor” nela referido não pode ser Luís Miguel Cintra. Não pode. É
grande actor e grande encenador, mas não pode ser ele. Trocaram o filho pelo
pai. Só pode ser Luís Filipe Lindley Cintra, este sim, figura gigante da história
pedagógico-cultural portuguesa. Errar é
humano, enfim.
Quanto
à bela, o livro é deveras uma beleza.
Este homem Pedro Manuel Guedes de Passos Canavarro, ribatejano de íntegra &
ínclita gema, discorre sem soluços a propósito de seus/dele primeiros oitenta
anos de vida. O fio narrativo é linearmente cronológico – Infância e Juventude; Percurso Académico; Do Japão à Docência, da
Museologia ao 25 de Abril; XVIIª Exposição de Arte, Ciência e Cultura; Política
Nacional – PRD; Política Internacional – Parlamento Europeu; Arte, Ciência e
Democracia – Fundação e Casa-Museu Passos Canavarro.
Do
tudo disto, que pouco não é, ressalta a evidência de Pedro Canavarro
configurar, a olhos tão vivos quão nus, uma espécie de numismática efígie – que
no caso, e para mim, é moeda de uma perpendicular dignidade senatorial. É um
campeão moral. Ou por outras palavras: o homem é de forte delicadeza, de
desassombrado espanto, de orientalizado ocidentalismo, de irmanado conluio
entre Beleza & Perigo – e nostálgico de um porvir que,
trazendo embora a morte, só pode (por)vir a reiterar a autoritária & serena
concertação de um amador da vida em paz com ela.
Pedro
Canavarro é homem que não desconhece o espelho: Narciso não lhe é estranho. Mas
se todo o dom da memória é autobiográfico, não será narcísica toda a lembrança?
Será. É. Não há nisso pecado. Todos certamente morremos – mas deveras vivemos
todos? Posso garantir-vos que Pedro sim.
Esteta
da tranquilidade, acalmado epicurista. Alma que se não esqueceu de ser corpo.
No fundo como à flor, um conservador de periferia esquerdo-humanista. Mordomo
só de si mesmo, amo de sua casa, benigna reencarnação talvez de um Wenceslau de
Moraes. Cultor de benignos fantasmas, apreciador de vagaroso chá na
contiguidade de roseirais.
Concluo:
o livro é bom, a obra é útil, a vida é muito meritória. A página 23 é modelar.
Nela se evoca a primeira recordação vital de Pedro quando menino. A uma janela
de rés-do-chão, numa praia do Norte, assiste em deslumbramento a “Uma festa, uma procissão, com banda, flores
e andores.”
Esse
menino tem hoje 81 anos, completos que foram a 9 de Maio último. Tudo me leva a
crer que, daqui a mais 19 anos, Santarém e o País terão tudo para comemorar o vivo
centenário de uma criança que, desde sempre, tem preferido pessoas a brinquedos.
E com tal não se brinca. Assim seja.
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