30/06/2018

PEDRO CANAVARRO: UM ESPELHO PARA O FUTURO - Rosário Breve n.º 561 in O RIBATEJO de 28 de Junho de 2018 - www.oribatejo.pt






Pedro Canavarro: um espelho para o futuro



Como prometido, a crónica desta semana resulta da minha leitura do livro intitulado A Única Coisa que Fiz Foi Viver. A obra é, estruturalmente, um diálogo; essencialmente, é uma memória autobiográfica. As voltas do diálogo acontecem a mote das perguntas que Yann Araújo (nascido em 1979) houve por bem colocar a Pedro Canavarro (nascido em 1937). A leitura do resultado de tal encontro entre estes dois homens é muito branca, digo, muito clara – digo mais: e, não-raro, luminosa.
Posto isto, retomo da sabença popular um adágio assaz empírico: “Não há bela sem senão.” Assim sendo, passo a referir de imediato o único senão com que esta publicação me confrontou. Ele é: apesar da promissora nota constante da ficha técnica do livro (“O autor não adopta o novo acordo ortográfico”), o texto final está infestado de barbarismos acordistas. Tal profusão de incorrecções macula inapelavelmente a elegância das palavras memoriais do entrevistado. Os exemplos são, infelizmente, mais do que muitos. Enumerá-los aqui truncaria, em espaço tipográfico, esta crónica. Digo apenas: na eventualidade muito desejável de uma segunda edição da obra, deve ser tida como primacial uma revisão total & cabal do texto. Repare-se que até por isto: há gralha gravíssima na página 62. O “Professor” nela referido não pode ser Luís Miguel Cintra. Não pode. É grande actor e grande encenador, mas não pode ser ele. Trocaram o filho pelo pai. Só pode ser Luís Filipe Lindley Cintra, este sim, figura gigante da história pedagógico-cultural portuguesa. Errar é humano, enfim.
Quanto à bela, o livro é deveras uma beleza. Este homem Pedro Manuel Guedes de Passos Canavarro, ribatejano de íntegra & ínclita gema, discorre sem soluços a propósito de seus/dele primeiros oitenta anos de vida. O fio narrativo é linearmente cronológico – Infância e Juventude; Percurso Académico; Do Japão à Docência, da Museologia ao 25 de Abril; XVIIª Exposição de Arte, Ciência e Cultura; Política Nacional – PRD; Política Internacional – Parlamento Europeu; Arte, Ciência e Democracia – Fundação e Casa-Museu Passos Canavarro.
Do tudo disto, que pouco não é, ressalta a evidência de Pedro Canavarro configurar, a olhos tão vivos quão nus, uma espécie de numismática efígie – que no caso, e para mim, é moeda de uma perpendicular dignidade senatorial. É um campeão moral. Ou por outras palavras: o homem é de forte delicadeza, de desassombrado espanto, de orientalizado ocidentalismo, de irmanado conluio entre Beleza & Perigo – e nostálgico de um porvir que, trazendo embora a morte, só pode (por)vir a reiterar a autoritária & serena concertação de um amador da vida em paz com ela.
Pedro Canavarro é homem que não desconhece o espelho: Narciso não lhe é estranho. Mas se todo o dom da memória é autobiográfico, não será narcísica toda a lembrança? Será. É. Não há nisso pecado. Todos certamente morremos – mas deveras vivemos todos? Posso garantir-vos que Pedro sim.
Esteta da tranquilidade, acalmado epicurista. Alma que se não esqueceu de ser corpo. No fundo como à flor, um conservador de periferia esquerdo-humanista. Mordomo só de si mesmo, amo de sua casa, benigna reencarnação talvez de um Wenceslau de Moraes. Cultor de benignos fantasmas, apreciador de vagaroso chá na contiguidade de roseirais.
Concluo: o livro é bom, a obra é útil, a vida é muito meritória. A página 23 é modelar. Nela se evoca a primeira recordação vital de Pedro quando menino. A uma janela de rés-do-chão, numa praia do Norte, assiste em deslumbramento a “Uma festa, uma procissão, com banda, flores e andores.”
Esse menino tem hoje 81 anos, completos que foram a 9 de Maio último. Tudo me leva a crer que, daqui a mais 19 anos, Santarém e o País terão tudo para comemorar o vivo centenário de uma criança que, desde sempre, tem preferido pessoas a brinquedos. E com tal não se brinca. Assim seja.

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Canzoada Assaltante