Só me falta o
livrete
Há já muitos anos
que não tenho automóvel. Não o digo por choramingona auto-lamentação. Digo-o
como reiteração da ironia da vida. E a ironia está no que se segue: cimentei
amizade com uma viúva rica. Melhor da festa – não tem filhos nem irmãos, nem
sobrinhos sequer: apenas & tão-só uns vagos afilhados não de sangue. Idade
de senhora, não se pergunta nem se escarrapacha em crónica. [E não, não poderia ser minha mãe – não exageres na
descúnfia, ó Leitor(a).]
Disse
mal: a ironia não está propriamente na amizade com a viúva. Está nisto:
meteu-se-lhe na cabeça oferecer-me uma roulotte.
Em vão lhe redargui que não possuo carro que a puxe. Com a tenaz obstinação dos
portadores de ideias-fixas, contestou-me ela: “Uma coisa de cada vez, menino. Roma e Pavia…” Ou seja: passei por
ganancioso, quando a verdade purinha é eu ser o mais humilde desinteresseiro
dos homens – pelo menos dentre aqueles que raspam a barba ao espelho da minha
casa-de-banho.
Eis-me,
pois & assim, futuro possuidor (que não utente) de uma roulotte com matrícula de 1972. Comprou-a então, novinha em folha,
o dinheiroso falecido dela. E com ela, o casal fez peripatéticos gerêses,
ibizas, côtesd’azures, pompeias, odessas, florestasnegras, vienas – e
figueirasdasfozes. O carro que a tractorava, esse espatifou-o mortalmente o
marido ao cabo de infortunada noite no Casino do Estoril. Desencarcerou-se da
vida encarcerado nesse glamoroso Opel
Manta de fatal memória.
Nota
importantíssima: não é de cariz pornográfico – mas gráfico sim – a relação que
tenho & mantenho com a dita dama de copiosa abastança. É gráfica porque ela
adora sonetos à Bocage, que eu imito, até nem mal de todo, com caralheira
brejeirice. Recebo dela uma nota de cinquenta por cada posta tonitruante de
catorze versos, o que não é mesmo nada mal pago. Modos que ando poupando em sonetos no fito de comprar uma carroça
em segunda ou terceira-mão que me ponha a roulottar
por aí afora à guisa do caracol de choupana às costas. E já matuto numa coisa
maravilhosa.
Maravilhosa,
sim. Esta aqui: plantar o carro, a roulotte
& o meu “cadáver adiado” algures
no troço da EN 114, a desditosa via há tantos anos estrangulada. Como o mais
certo é não ser reaberta ao livre trânsito antes de 2100, o sossego da minha
nova residência parece-me sobejamente garantido. Até me proponho plantar
gerânios em vasos em cerca ao acampamento. E ter cá fora um cão-de-louça. E
andorinhas-de-barro agarradas às janelas. E um estandarte altíssimo do Sport
Lisboa e Benfica. E bustos em plástico do Cristiano Ronaldo, do Che Guevara, do
Ricardo Gonçalves, da Madre Teresa de Calcutá & do Leitor e/ou da Leitora
que lá me for esmolar conservas & garrafões.
De
resto, muito agradecido, ando feliz da vida. Faço os sonetos soezes,
alimento-me em tascos de bifanas, atiço inglesas velhas à mercê da machíssima
desenvoltura dos meus aparatos musculares, durmo sem remorsos & acordo sem
lembranças.
A
viúva telefona-me às terças, adora-me com comichosas palavrinhas pejadas de uma
emurchecida lubricidade, ameaça-me de novo com o carago da roulotte & encomenda-me mais uns quantos sonetos geni(t)ais, a
Deus graças.
Não
tenho ido ao médico nem à farmácia. Prefiro ir pela mata para assistir ao
voejar alucinatório das andorinhas de Maio. Também me costuma dar para ficar
descalço até ao pescoço estirado na varanda que dá para o cemitério hebraico.
São gozos inócuos mas cá muito meus. Bem pior seria drogar-me com lixívia.
De
quando em vez, perco os óculos. Passo então dias de visão aquária, as pessoas
tornam-se peixinhos glaucos, o sol fere-me termonuclearmente, é uma porra das
antigas. Logo que arranjo uns novos, a realidade readquire o teor absurdo de
que é primaz absoluta.
Escrevo
isto a uma terça-feira. E não, a viúva ainda me não telefonou hoje. Vou
lapijando sonetos entre cigarros rimados & cálices de tinto da Quinta do
Falcão. Nos entrementes, coco as mulheris formosuras que o bom-tempo despe
pelas ruas. Tento não me arrepender das más escolhas que a minha inconsciência
fez por mim. Mas olhai: a vida é só enquanto cá estamos. Só me turva o sossego
uma coisa. E tal coisa é – toparei eu sítio, algures na EN 114, onde ligar cabo
a tomada eléctrica? Vou precisar de frigorífico, computador, máquina-cafeteira,
ventoinha refrigéria etc. Nesse aspecto tão técnico, a minha viúva não pode
ajudar-me. Nem ela, nem o Ricardo Gonçalves. Ou seja: nem Roma, nem Pavia.
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