Fala
um pobretuguês
A vida – ou é politécnica ou dá em ser
chilra como as águas de bacalhau. Já quanto a tal não engordo o bacorinho da
dúvida. Por teologia portátil, sou tão-só um não-católico praticante. Não sofro
Deus lá em cima nem temo do Diabo o baixio. O que se acha no fundo de cada copo
é o desencontro. O desencontro e o desencanto, que o retorno à sobriedade pune
e agrava.
Longamente esperei Junho – para isto. Isto
sendo: na abcissa do paladar, o abcesso do couro molhado em a malvasia da
melancolia. Isto é um País que nem Junho melhora. Deve ser porque a minha
doença se chama Portugal. Ou Pobretugal. O amor é uma doença, ninguém com dois
dedos de testa e duas unhas de coração raciocinante (m)o negará. Padeço de me
serem portuguesas, ou pobretuguesas, a vida e a condição. Acontece que
convalesço mui mal de tal enfermidade. Entardenoitece-me o espectáculo
reiterado da estupidez mineral de um ex-Povo. O nosso. Portador embora de uma
Língua superlativa e como nenhuma outra milionária de sílabas do mais fino
quilate áureo, multissecular já, a Malta continua a dar o crânio por mesa de
onde lhe comem as papas. Entenebrece-me que os mandadores planetários (amailos
seus lacaio-caudatários locais) possam impunemente condenar a comum gente a
trincar areia por pão. Por extensão, desfanica-me a coragem que o meu País se
veja, à maneira titular de Irene Lisboa, com uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.
Entanto, a terça-feira para que renasço, 25
de Junho, é de uma limpidez prístina que até dói. A Luz é maiúscula como um
avesso de Lua – e de redundante quididade. O esplendor é prodigioso qual um
trecho camoniano (um qualquer). Como vela à bolina fresca, a aragem empluma
levezas de pele que se dá ares. Fragrâncias de limoeiro confirmam da passarada
a condição de porta-perfume. Tudo se aguarela muito, tudo se me afigura recente
de si mesmo. Junho floresce perigosamente como a esperança. A esperança seja do
que for. A esperança que é perigosa por consistir em usança da espera. Mas esta
Luz ajunhada, esta claridade que dá perfeitamente para perceber, por essas ruas
& praças, quais os cônjuges que pela noite se refizeram eroticamente
sudoríferas branduras e quais os que não.
Despertar para a legibilidade humana sempre
me permitiu, até hoje, a não, por assim dizer, d-existência. Nasce-se com
defeito e morre-se perfeito. Há quem se minta o contrário. É talvez porque a
morte torna anterior até o futuro. E porque ela já (nos, a todos) começou nos
lugares onde estivemos e a que não voltaremos. É por isso que tanto faço por
voltar. Voltar por voltar. Voltar para viver. Ainda. Um pouco. Mais. Ainda que
não física ou geograficamente, voltar para e em frente da lembrança. Tenho
(temos todos) uma máquina-do-tempo para o efeito. Chama-se Memória.
O
amor é cego.
A
memória é o cão do cego.
Assim pude escrever, resgatando-me, mercê
deste dístico, há uns poucos anos e em sítio e para gente a que não voltarei, de
uma manhã parda, vivia eu então numa merdaleja qualquer certas minhas horas más
de anos não bons.
Fora de portas, a Realidade rosnava ameaças
peremptórias: pobreza, desemprego, álcool a mais, fins-de-linha. Ainda rosna,
mas retorquindo-lhe lhe vou, a instantâneo prazo, em, por assim dizer,
r-existência. Escoro-lhe de livros bons as horas más. Esturrico-lhe de versos
tónicos as veleidades materiais. E desminto dela, em paleta arco-irisada, o
pretobranquismo de suas práticas e feias fauces.
Estragou-se-me ontem o telemóvel, não tenho
dinheiro para outro e não quero saber. Quem quiser falar comigo, que me
escreva. Outra coisa não tenho feito estes já tantos anos todos. Tenho andado
mais macambúzio que de costume por causa de um documentário que há dias revi
pela TV. Era sobre a breve vida (mas perene obra) de um grand’enorme artista:
Mário Botas (1952-1983), português da Nazaré. Morreu aos 31 anos, como o meu
irmão Jorge. Mário e Jorge gostavam ambos de Egon Schiele (1890-1918). Outro
que morreu tão novo.
Por contraponto, acabo saudando o ter
vivido já os meus 49. Ninguém mos tira, por mais torçam Deus e o Diabo os
respectivos rabichos de saca-rolhas de bacorinho. Assim contra os canhões
marcho, afinal, no esplendor de Junho, se não de Portugal.
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